terça-feira, junho 14, 2005

Um Santo António de desaparecimentos

Álvaro Barreirinhas Cunhal 1913-2005



Por muito que represente o marxismo-leninismo mais dogmático, o comunismo mais ortodoxo e seja um defensor dos que reprimiram a Primavera de Praga ou dos que pretenderam instalar em Portugal um regime proto-soviético em 75, é impossível não ficar alheio ao carisma do líder comunista que hoje desapareceu. Dois dias depois, curiosamente, do "companheiro" Vasco Gonçalves, pelo que se poderia bem dizer que com eles o PREC morreu definitivamente.

A intransigência de Cunhal e a extrema defesa dos seus ideais comunistas são algo que perturbam o comum dos mortais. O afastamento de outras correntes mais avançadas de diversos PCs na Europa ocidental, como os de Espanha e Itália (e em menor medida o de França), na direcção oposta à da lealdade para com Moscovo, é outro elemento de marca com carga menos positiva, assim como as purgas verificadas em fins dos anos 80/ princípios dos anos 90, que coincidiram com a liquefação dos glaciares soviéticos. Mas o que atrai em Cunhal é exactamente a sua coerência e a força com que assistiu à queda do mundo em que acreditava, e que o ajudou a resistir às inúmeras torturas físicas e psicológicas durante a clandestinidade, assim como a vários anos de isolamento na prisão.

Para além do sua rígida leitura do marxismo, fica-nos também a sua aura mais romântica: a clandestinidade, as idas à URSS ainda muito novo ou o acompanhamento in loco da Guerra Civil Espanhola, a prisão em Peniche durante largos anos (nos quais traduziu obras de Shakespeare, desenhando as respectivas ilustrações), a sua faceta de romancista e desenhador, a defesa extrema que fazia da reserva da sua vida privada, bem como da família, etc.

A sua morte não constitui surpresa, até porque há muito que não saía de casa, provavelmente com estado de saúde precário. Ver-se-à se a profecia de que "quando o Cunhal desaparecer o PCP vai ao ar" se cumpre, embora já não acredite tanto nisso, já que o líder histórico há muito que se encontrava ausente ( e Jerónimo de Sousa mostra que bebeu directamente dos seus pensamentos), apesar de rábulas como a célebre leitura do discurso por Morais e Castro. Mas ainda que esperada, não deixa de constituir o fim de uma época e de um dos mais carismáticos políticos portugueses do século XX, que abraçou muito jovem a causa do comunismo e não mais a largou até ao fim dos seus dias.

Eugénio de Andrade/ José Fontinha 1923-2005


Outro desaparecimento algo esperado mas nem por isso menos penoso: Eugénio de Andrade, até ontem o maior poeta português vivo (salvo talvez Herberto Hélder), deixou-nos esta madrugada. Natural da Beira-Baixa, vivia há mais de cinquenta anos no Porto, tendo trabalhado como funcionário público. Morou muitos anos perto do jardim de S. Lázaro, até se mudar para a fundação com o seu nome, obra de inúmeros amigos e da Câmara Municipal do Porto, no Passeio Alegre, ao lado de outro homem das letras, Rebordão Navarro, e defronte do preciso espaço onde o rio encontra o mar, que tanto o inspirou enquanto lá viveu.
Lembro-me do dia em que lá fui, numa visita de estudo, no meu último ano do secundário. O poeta, que imaginava mais fechado e avesso a questões, recebeu-nos de forma cordial e simples, no pequeno auditório da fundação, leu-nos alguns dos seus mais recentes poemas da altura e respondeu a todas as perguntas que lhe fizemos (julgo que terei sido o mais insistente, mas sinceramente já não sei o que lhe perguntei). Falou-nos do seu fascínio por alguma poesia de outros autores, como Camilo Pessanha ("Conchas, pedrinhas e pedacinhos de ossos") e das suas impressões gerais da vida. Deixo-lhes um dos textos poéticos da sua autoria, que me lembro de ler na altura da visita, tirado de "O Sal da Língua", seguido de outro poema lindíssimo dedicado à pessoa que mais amou na sua vida.



ACERCA DE GATOS

Em Abril chegam os gatos: à frente o mais antigo, eu tinha dez anos ou nem isso, um pequeno tigre que nunca se habituou às areias do caixote, mas foi quem primeiro me tomou o coração de assalto.Veio depois, já em Coimbra, uma gata que não parava em casa: fornicava e paria no pinhal, não lhe tive afeição que durasse, nem ela a merecia, de tão puta. Só muitos anos depois entrou em casa, para ser senhor dela, o pequeno persa azul. A beleza vira-nos a alma do avesso e vai-se embora. Por isso, quem me lambe a ferida aberta que me deixou a sua morte é agora uma gatita rafeira e negra com três ou quatro borradelas de cal na barriga. É ao sol dos seus olhos que talvez aqueça as mãos, e partilhe a leitura do Público ao domingo.
(O SAL DA LÍNGUA)

Poema à mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe!
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais!
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura!
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos...
Mas tu esqueceste muita coisa!
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -,
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
"Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal..."
Mas - tu sabes! - a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu...
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...
Boa noite. Eu vou com as aves!

(Eugénio de Andrade, Antologia Breve)

3 comentários:

mfc disse...

Cunhal pela sua verticalidade, Vasco por ser um homem bom e Eugénio por ser enorme!

A. Narciso disse...

A literatura portuguesa perdeu um dos seus maiores nomes actuais... Excelentes homenagens.
Abraço

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.