segunda-feira, dezembro 19, 2022

A final

 O Mundial não terá sido memorável por inúmeras razões, mas a Final deve ter sido a melhor desde 1986, e com o mesmo vencedor. Diga-se o que se disser, os argentinos, quando estão bem, trazem emoção e garra ao futebol. E ganharam com mérito (sim, alguns não souberam ganhar, mas não foram os únicos).

Estaria até há dias mais pela França, mas o facto de já serem campeões mundiais em título - ainda por cima com um conjunto muito parecido com o actual - levou-me a apoiar os albicelestes. Há, claro, o facto de haver jogadores benfiquistas no onze, que assim se tornaram os primeiros campeões do Mundo a jogar em Portugal ao tempo da conquista do troféu. Além do mais, esta era uma oportunidade que a Argentina tinha e que dificilmente se repetirá nos próximos anos. Se não ganhassem agora, sabe-se lá quantas mais décadas teriam de esperar. Sim, porque quando Messi se retirar, a selecção argentina será apenas mais uma boa equipa, mas sem nada de transcendente. Já a França irá por certo dominar o futebol na próxima década.

Assim, fica o título bem atribuído. Na disputa para ver quem ficava com a terceira taça, os sul-americanos levaram a melhor aos franceses, mas algo me diz que estes vão conseguir a tripla num dos próximos mundiais, salvo que questões internas de balneário os impedir.







sexta-feira, dezembro 16, 2022

O culto fanático a CR7

Nos últimos dias, mais precisamente no rescaldo da eliminação da Selecção Nacional aos pés de Marrocos, dir-se-ia que boa parte dos país está tomado pelos espírito das manas Aveiro. Parece que o facto de Cristiano Ronaldo não ter sido titular nos últimos dois jogos da Selecção é um crime de lesa-Deus. Da primeira (e tardia) vez que Fernando Santos o colocou no banco, chamaram ao treinador de poltrão para baixo, ingrato, traidor, falso amigo e em certos casos, como nos comentários a este post do JPT, insinuaram que tinha sido pago para o fazer. Não, não se trataram de críticas normais a opções do treinador, mas acusações de um autêntico crime, como "impedi-lo de atingir o recorde de golos de Eusébio num Mundial". E para todos os que ousaram, já nem digo criticar CR7 pelas suas atitudes recentes, mas apenas compreender a posição de Santos, também ouvi coisas como "invejosos", ingratos", etc.

 
Tudo isso porque Ronaldo é "um deus", o Maior do Mundo", "maior que este país de invejosos que tudo lhe deve", e que "já deu milhões a hospitais e a obras de caridade". Isto são meros resumos de tudo o que tenho lido. Houve mais, muito mais, como compete a qualquer fanatismo que não admite réplica.
 
Não tenho a menor dúvida de que Ronaldo é um homem não só com um talento raro e um desportista inacreditável mas também uma determinação que ultrapassa o absurdo. Que há um antes e um depois de CR7 para a Selecção, a começar pela conquista do Euro 2016. Que deu muito a Portugal, incluindo beneficência. E que, com Messi, é o melhor futebolista dos anos 2010, talvez do Séc. XXI até agora.
 
Só que não é uma divindade nem maior que o país. Se deu muito a Portugal, Portugal também lhe retribuiu. Ronaldo há não sei quantos anos que não ia ao banco da Selecção e só esteve ausente uma vez A SEU EXCLUSIVO pedido. Está sempre debaixo dos holofotes da imprensa, assim como a sua família, cujos méritos desconheço. Participou em inúmeras campanhas publicitárias, certamente rentáveis. Recebeu todas as homenagens possíveis e imagináveis. E já agora, sabem de muitos casos de aeroportos ou estátuas em vida dos homenageados, para mais aos trinta e tal de idade? 
 

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CR7 tem inúmeras qualidades mas também imensos defeitos, por muito que isso custe aos fanáticos. Tem tido uma época péssima, com pouquíssimos golos, que era o que ele fazia melhor. Tem quase 38 anos. Neste momento não é de todo o "Melhor do Mundo", nem da Europa nem sequer da Selecção. E tem tido um comportamento na equipa no mínimo dúbio, parecendo estar à parte; acima de tudo faltou ao respeito ao treinador quando saiu no jogo contra a Coreia. Se já havia razões para não o pôr a jogar, essa era a maior de todas e absolutamente inatacável. Ronaldo não pode ser um exemplo se começa com má-criações dignas de miúdos birrentos. Se Fernando Santos não o tivesse tirando do banco, aí sim, haveria razão para críticas a um treinador que não se sabia dar ao respeito. E essa opção é, ao contrário do que a histeria propalou, um sinal de coragem. Uma das poucas que Santos teve nos últimos anos. De resto, viu-se o efeito contra a Suíça, da mesma forma que nada mudou quando entrou contra Marrocos.
 
Por isso, a histeria ronaldística é totalmente injustificada. Se Ronaldo está psicologicamente em baixo por razões familiares, então é mais uma razão para não ser titular. Se é pelas suas acções de beneficência, nesse caso qualquer milionário septuagenário que dê mundos e fundos a boas obras merece ser convocado (não é muito diferente das indulgências pela salvação das almas que levaram à revolta de Lutero, pois não?). Se é para bater recordes, disso já ele tem muito e inverter-se-ia a lógica de que os jogadores devem estar ao serviço da Selecção e não esta a servir um determinado jogador. Se acham que dizer isto é ser "ingrato", "poltrão", "invejoso", etc, eu devolvo: não queriam fazer as mesmas figuras dos tontos da "Igreja Maradoniana" com um culto idêntico numa qualquer "igreja cristianornaldiana". Todos estes episódios serão esquecidos e CR7 ficará na história, mas não façam deste atleta excepcional a divindade que não é.

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quarta-feira, dezembro 07, 2022

A Capital Europeia da Cultura no Alentejo

 Está decidido: Évora será a Capital Europeia da Cultura em 2027, juntamente com Liepajia, na Letónia, ou Latvia, se quiserem. E muito bem. As minhas preferências desde o início eram Évora e Coimbra, mas a Lusa Atenas já estava excluída. As outras opções eram Ponta Delgada, também uma proposta interessante de levar a capital europeia da cultura para o meio do Atlântico, Aveiro, que me parece estar uns furos abaixo, e Braga, que não faria sentido e seria redundante porque duas das outras três capitais portuguesas foram Porto e Guimarães. Haver uma capital europeia da cultura no coração do Alentejo soa-me muitíssimo bem. 

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terça-feira, novembro 29, 2022

 As semanas mais recentes trouxeram-me um ligeiro travo aos anos trinta e quarenta.

As imagens da libertação de Kherson, das ruidosas manifestações de alegria dos seus habitantes e da visita de Zelensky trouxeram-me de imediato à memória as da libertação da França, em 1944, e da chegada de De Gaulle a Paris, recriada na tela e com alguns testemunhos fotográficos. O presidente da Ucrânia tem sido comparado a Chrchill, mas naqueles momentos transfigurava-se mais como a voz da liberdade e da libertação dos ucranianos, aquele que parecia perdido na início da invasão mas cujas palavras soam a esperança diante do temível Inverno que está a chegar. E tal como a libertação de Paris não significou o fim da guerra, a de Kherson está longe do termo do conflito.

 

Entretanto decorre o criticado Mundial do Qatar (embora seja exagero chamar-lhe "o Mundial mais controverso de sempre", se recordarmos o que decorreu na Argentina em 1978, sob o infame regime militar que despejava corpos para o mar a partir de aviões, e que até levou à história, apesar de falsa, de que Cruyff não comparecera em sinal de protesto). Os estádios no meio do deserto tiveram a autoria, entre outros, como Zara Hadid, de Albert Speer. Sim, o filho com o mesmo nome do célebre arquitecto de Hitler e co-autor do estádio Olímpico de Berlim. O descendente não seguiu definitivamente as preferência políticas do pai, apesar de algumas controvérsias, explanadas neste artigo da New Yorker. Mas não deixa de causar algum frisson que um evento tão criticado pelo tratamento local dos Direitos Humanos tenha tido o dedo do filho, com o mesmíssimo nome, de um dos autores dos Jogos Olímpicos de Berlim e do projecto da demencial Germania.

terça-feira, outubro 25, 2022

Memórias de Adriano

 

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Fazendo umas buscas entre datas e calendários antigos, confirmei o que pensava. Neste dia, 24 de Outubro, há já uns bons anos, ouvi pela primeira vez ao vivo o Professor Adriano Moreira, tendo tido o privilégio de falar com ele no fim. Tinha eu chegado a Lisboa poucos dias antes, iniciando uma estadia que se prolongaria por alguns anos, e logo no início, no curso de Política Externa que então realizava no IDN, apanhei logo com um gigante académico desta monta. Escusado será dizer que a aula se constituiu de conhecimento, experiência, ironia, clareza, saber académico e pedagogia. Voltei a ouvi-lo outras vezes, mas a primeira deixou-me uma viva impressão.

Dá-se o infeliz acaso do "aniversário" desse encontro calhar quase na data do seu desaparecimento. Não deve haver notícia mais natural acerca de uma pessoa com cem anos do que a da sua morte, mas esta, para além da tristeza pessoal, para mais quando o centenário tinha sido há tão pouco tempo, significa mesmo, segundo o adágio popular, o fecho de uma biblioteca, neste caso de colossais dimensões.

E de memórias do próprio Adriano Moreira ficou-me o seu afecto pela (e da) família, como se pode ver pelos artigos que os filhos, em particular a filha "rebelde" Isabel Moreira, lhe dedicam, em que mencionam o medo de deixar a sua mulher desprotegida, mas mais ainda, a memória dos pais, como quando realizou a sua primeira visita a Moçambique como Ministro do Ultramar e o seu próprio Pai, ainda polícia, quis ir com ele para assegurar a protecção do filho, ou quando tinha de ir ao cemitério de Grijó, Macedo de Cavaleiros, de onde era natural e onde está o jazigo dos pais, por achar que podiam sentir-se sozinhos. E ainda, quando lhe morreu recentemente um filho, há uns dois anos, a descrição feita por Ribeiro e Castro, na missa de corpo presente: "estava direito: velho e direito. É um carvalho antigo transmontano. Um pouco quebrado, pelo tempo e pelo dia, mas grande, velho e direito".

Tinha também esse característica que muito aprecio: um transmontano que nunca disfarçou as suas raízes, ao contrário de tantas figuras públicas, e que, pelo contrário, fazia questão em recordá-las e em dizer de onde vinha, e a sua cara em traços firmes e recortados, mas não rudes, assim o confirmava. Curiosamente a primeira vez que ouvi falar dele terá sido em Vila Real, ao reparar naqueles cartazes em que surgia com o filho mais novo, que devia ter pouco menos que a minha idade, na campanha em que o seu CDS ficou reduzido a um "táxi" (estranho como os mais preparados líderes nem sempre são os que têm mais sucesso, ou talvez até por isso...).

Este homem, que exerceu funções políticas e académicas neste regime, no anterior e que nasceu no anterior a esse, era o último de uma notabilíssima geração que estaria agora nos cem anos: Agustina, Gonçalo Ribeiro Telles, José-Augusto França, Eduardo Lourenço, que chegaram aos noventa e muitos, e desaparecidos com menos idade, Sophia (e muito mais novo o seu primo Ruben A.), Saramago, os irmãos António José e José Hermano Saraiva ou Natália Correia. Quase todos chegaram a idades bastante avançadas, mas só Adriano conseguiu chegar aos cem. 

sexta-feira, outubro 21, 2022

 Digam o que quiserem, mas estas novas “acções climáticas” têm-se multiplicada de forma particularmente aberrante. Já havia uma líder espiritual, Greta Thunberg, que sabia melhor como governar os povos do que todos os líderes eleitos, conforme se viu naquela reunião da ONU, que a tantos deixou embevecidos (apesar da própria já estar a crescer nalguns aspectos). O seu exemplo de não ir à escola tem feito escola, se me permitem o contrassenso.

Há dias, num especial creio que da RTP, assisti a um conjunto de jovens “activistas” e às suas ideias para aplacar a crise climática. Diziam os frequentadores do ensino secundário que iam fazer jornadas de greve às aulas e exigiam nada menos que a proibição de uso de combustíveis fósseis, imediatamente. Em paralelo, diziam que se o Mundo não tinha futuro, então de nada lhes servia aprender, daí a greve às aulas. E também que o voto era uma coisa desnecessária, que mais importante para a cidadania era “o activismo de rua”. E quando surgiam os seus nomes, reais ou “de guerra”, aparecia também por baixo, à laia de profissão, a palavra “activista”.

Isto preocupou-me, confesso. Sei que dementes, seitas e figuras auto-messiânicas sempre as houve. Como a natureza humana não muda de um século para o outro, a actualidade não havia de ser diferente. A diferença é que a comunicação e as formas de propaganda são hoje infinitamente maiores. E permitem que qualquer grupelho radical espalhe as suas mensagens com o beneplácito de algumas instituições.

Devo desde já dizer que não sou um céptico de mudanças climáticas (embora pense que as previsões a longo prazo são problemáticas e que o homem não é necessariamente o seu único causador) e muito menos da protecção do ambiente. Fiz parte de várias associações ambientalistas e das listas do MPT, justamente o único partido ecologista português sem radicalismos urbanos. Por isso mesmo, sei que as ideias mais nobres redundam normalmente em fanatismos aberrantes. É o caso.

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Temos, portanto, jovens do ensino secundário a fazer o elogio da ignorância, da não aprendizagem e da recusa da democracia, ou pelo menos a defender uma espécie de “democracia de rua”. Coisas tão importantes, como o direito ao voto e à escolaridade, pelas quais tantos se bateram, são postas de lado por imberbes que têm tudo por adquirido. Talvez por isso alguns atentam contra obras de arte com perguntas estúpidas como “o que é que vale mais, este quadro ou o ambiente”, como se fossem comparáveis e a destruição da arte de alguma forma ajudasse o clima, mas perguntar isso seria demasiado complicado a semelhantes amibas. E também querem acabar de imediato com os combustíveis fósseis, ou seja, parar por inteiro a sociedade. Como se deslocariam? Como se aqueceriam? Quem lhes traria os seus produtos vegan? “Ah, mas para se deslocarem há as bicicletas, as trotinetes e o metro”. Brilhante, da parte de quem vive nas cidades com alguma dimensão. Vão perguntar aos agricultores de Trás-os-Montes ou do Alentejo se não se querem deslocar dessa forma. Transportar produtos agrícolas de trotinete em Vimioso deve ser espectacular. E também lhes podiam relembrar que existe uma penosa guerra na Ucrânia que está a conduzir a uma crise energética, económica e financeira. Não se terão dado conta disso? Talvez fosse bom olhar para fora da bolha.

Ainda um efeito nefasto destas novas seitas climáticas: o fanatismo vai levar muitos a afastar-se e a recusar práticas mais favoráveis ao ambiente. Numa altura em que pululam as teorias da conspiração de toda a ordem, já se fala da farsa do ambientalismo”, do “great reset climático”, etc. Esta gente, com as suas acções cretinas que apenas prejudicam, ou visam prejudicar, a vida de tantos, só vai dar mau nome à ecologia, afastando potenciais defensores criando novos inimigos e polarizações. Um enorme tiro de canhão no pé. E, no entanto, são razões de magna importância, que não mereciam ser prejudicadas pelos fanáticos climáticos sem mais nada para fazer (ou por oportunistas conhecidos para fazer aproveitamente político, mal começam a fazer misturas com o anticapitalismo, antiracismo, etc). Mas, quem sabe, mais do que proteger o ambiente, a ideia deles seja mesmo causar polarização extrema, ainda mais. Parece que está na moda. E agora noto que utilizei uma palavra, “ecologia", que passou de moda. E é pena, grande pena.

quinta-feira, outubro 20, 2022

O manicómio britânico

 Já se previa que Liz Truss tremesse e caísse em pouco tempo do cargo de PM que tão desastradamente desempenhou, na senda do seu amigo Kwasi Kwarteng, mas sempre julguei que durasse mais umas semanas. A nova "dama de ferro" revelou-se de latão. E o Partido Conservador já teve melhores dias como máquina política e de poder.




Mas se a situação no Reino Unido já era confusa, pior pode ficar: então não é que Boris Jonhson cogita voltar à liderança do partido e ao cargo que abandonou há apenas três meses, fazendo uma grotesca dança das cadeiras governamental? Isto nem as trocas entre Putin e Medvedev. 

Será pois o quarto PM desde o Brexit, descontando Cameron. E o segundo apenas um mês e meio depois da morte da Rainha. Eu bem dizia, no último parágrafo desta posta, que a morte de Isabel II seria um enorme peso para Truss, embora não imaginasse o quanto. O Reino (por enquanto) Unido parece um manicómio a céu aberto. Quanto à desaparecida Monarca, deve ter pronunciado as célebres palavras de Luís XV: depois de mim, o dilúvio

segunda-feira, outubro 10, 2022

Questões que muito agradeceria que me pudessem esclarecer

Não percebi muito bem. Casillas viu a conta de uma rede social pirateada (onde surgia uma declaração, pretensamente sua, a afirmar "sou gay") e pediu desculpa? Se lhe assaltaram a conta, as desculpas deviam vir da parte do assaltado ou dos assaltantes?


E Puyol, seu antigo companheiro de Selecção, também pediu desculpa por uma piada lá pelo meio que terá incomodado a "comunidade LGBTQ" (uma coisa do tipo "olha, descobriram a nossa relação", com emojis risonhos). Mas pediu desculpa porquê? Se ele próprio não achou piada, então que não a publicasse; se achou, não tem nada que pedir desculpas. E o que significa a tal "comunidade"? Um conjunto de pessoas que vivem em grupo com regras próprias? Quem são os representantes? Foram escolhidos por ela para a representar ou são indivíduos avulsos que se ofenderam com a piada e vieram reclamar sem qualquer legitimidade para representar outros que não eles próprios, individualmente?

E havendo gente que se ofende com isto, que é feito do bordão "Je suis Charlie", relativo a ofensas bem piores?

segunda-feira, outubro 03, 2022

como desmarcarar um farsante

Não sei se tiveram a oportunidade de ver, mas aquela correia de transmissão das ordens de Moscovo, de seu nome Alexandre Guerreiro, levou uma tareia inacreditável do Francisco Pereira Coutinho em todos os aspectos, num debate na SIC Notícias na sexta-feira. Podem - julgo eu - ver o vídeo na íntegra aqui (não consegui transportá-lo directamente para o post por ser muito grande) e avaliar as prestações. O homem do Kremlin a certa altura parecia completamente perdido, repetia incessantemente "o precedente do Kosovo", cujas diferenças aliás o Francisco explicou devidamente, acabou a justificar a anexação da Crimeia com "sondagens" (como se sabe um elemento essencial no direito internacional) e a dizer que a anexação das quatro regiões ucranianas "era legal mas também podia não ser".

Eis a forma como se neutralizam os farsantes: colocá-los perante alguém que efectivamente conhece o terreno para os desmascarar. Acresce que nas horas que se seguiram ao debate, Guerreiro era alvo de chacota pelos twiters watsaps fora

terça-feira, setembro 27, 2022

Por Itália

 Não sei porquê tanta preocupação com o mais que provável governo de Giorgia Meloni em Itália: é mais que sabido que nenhum executivo italiano chega sequer aos dois anos, a não ser que haja uma improvável "Marcha sobre Roma". Além do mais, o que também não ajuda à estabilidade, a coligação vencedora tem três egos gigantes a comandá-la - Meloni, Salvini e Berlusconi - e o de Meloni nem parecer ser o maior.

 

Curioso é que os que estavam no governo Draghi e ajudaram a derrubá-lo caíram muito nas votações. Veja-se o Movimento Cinco Estrelas, agora liderado pelo ex-primeiro-ministro Giuseppe Conte, ao passo que o seu antecessor na chefia do partido e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Luigi di Maio, nem conseguiu ser eleito para as câmaras.
 
E é igualmente interessante observar que os apoiantes de Putin caíram nas votações, começando por Salvini, que se fica por metade da votação, ou o próprio Berlusconi, que viram os seus votos rumarem directamente para os Fratelli d´Italia, de Meloni, crítica explícita da invasão da Ucrânia.
 
Tempos houve em que o sistema político italiano era absolutamente previsível: ganhava a Democracia Cristã sem maioria, o Partido Comunista ficava em segundo, e a primeira formava governo com os liberais, republicanos, sociais-democratas, e, a partir de certa altura, também com os socialistas, ao passo que os neofascistas (do qual provém a formação de Meloni), tal como os comunistas e os radicais, ficavam de fora. Mas de há trinta anos para cá o sistema tornou-se imprevisível, a não ser no que respeita à curta duração dos governos, e os partidos ficaram absolutamente voláteis, apostando mais nas personalidades que os lideram do que em ideias ou ideologias.

quinta-feira, setembro 22, 2022

A importância da homenagem

Tenho visto alguns remoques a tudo o que rodeou as exéquias da Rainha, com o argumento de que o Mundo está a atravessar momentos difíceis, com o pós-pandemia, a guerra na Ucrânia, a ameaça nuclear, a seca, a inflação crescente, as ameaças de recessão, etc, e que era preciso dar mais atenção a tudo isso do que às homenagens a Isabel II.

Eu entendo exactamente o contrário. É precisamente a beleza estética das homenagens, incluindo formalismos que nem imaginávamos, o sentimento de unidade na tristeza, a tradição como ligação entre o passado e o presente e o exemplo de dever, discrição e de supra-politiquice que permitem enfrentar todos esses problemas com esperança e firmeza - e sim, esquecê-los por umas horas. E tratando-se de Isabel II, peguemos em duas imagens, no início e no fim da sua missão: uma em que conduzia ambulâncias durante a II Guerra, e outra, a mensagem no início da pandemia, em que rematava com o "We will meet again". Só esses dois exemplos, nos tempos sombrios que corremos, justificariam toda a homenagem.

sábado, setembro 10, 2022

Ausência de referências e outras considerações

 Às vezes imaginava uma situação caricata, em que uma pessoa morta há umas décadas, aí nos anos 70 ou 80, voltaria à vida e eu teria de lhe explicar tudo o que mudou no mundo desde então, como o fim do confronto Leste-Oeste, por exemplo (se bem que pareça menos longe, hoje em dia), a emergência dos países asiáticos, com a China à cabeça ou o advento da net e das novas formas de comunicação. Para me ajudar, teria de me socorrer de algumas referências ainda existentes. A que me vinha logo à cabeça era a Rainha Isabel II. Diria algo como "tudo mudou menos uma coisa: a Rainha permanece no trono" (ou como o Pedro Correia já aqui afirmou várias vezes, "viu passar todas as modas; só ela nunca passou de moda"). A seguir seria Fidel Castro, que também já lá vai, e outros de quem não me recordo agora.

Agora que a Rainha nos deixou, que referências haveria para uma pessoa de há 40/50 anos? Quem poderia dizer que está no seu lugar? Não me ocorre ninguém. Como se em pouco tempo o Mundo tivesse mudado muito mais depressa do que seria suposto. É mais um dos sinais a indicar-nos que os tempos mudaram mesmo e, sem referências, personalidades ou instituições-âncora, estão mais incertos do que nunca. 

E aproveito para rectificar uma ideia que tenho visto a espalhar-se no último dia. Nos muitos e merecidos encómios a Isabel II, já li por diversas vezes que tinha acabado o reinado mais longo de sempre. Também pensei, aquando do jubileu, que iria bater o recorde. Eram só mais dois anos. Mas não. Isabel II ultrapassou a Rainha Vitória e é a Rainha, no sentido estritamente feminino do termo, com o reinado mais longo de sempre. Mas o monarca que detém o galardão continua a pertencer ao outro lado da mancha e dificilmente será "destronado", perdoem-me o trocadilho fácil. Neste aspecto, o (rei) Sol continuará mesmo a brilhar.


Entretanto recordei-me da colaboração que dei à revista
 Negócios Estrangeiros nos cinquenta anos da primeira visita de Isabel II a Portugal. Ali para a página 197 está o artigo da visita, para o qual colaborei com inúmeras notas sobre o itinerário realizado. Tem o seu interesse. E mais se discorre sobre o significado político da visita, em plena era de descolonizações e Guerra Fria. Sim, Isabel II subiu ao trono numa época igualmente atribulada para o Reino Unido, só que tinha um Winston Churchill para a ajudar. De certa maneira, tenho pena de Liz Truss, pelo tremendo início de mandato. Começar com a morte do monarca é pesado, mas com uma monarca tão marcante é mastodôntico.

sexta-feira, julho 22, 2022

Ceder energia e arder por indiferença

 Felizmente já estão em fase de resolução (espero, porque em dois casos voltaram), mas os grandes incêndios da última semana, tirando o da Guarda e o do Fundão, foram todos em Trás os Montes. E à parte de um perto de Bragança, todos no distrito de Vila Real - Chaves, Vila Pouca, Murça, até o de Baião invadiu o Marão. Entre aldeias habitadas por idosos, que por isso mesmo têm mais dificuldade em limpar as suas propriedades, fragas difíceis de alcançar e pinhais dispersos, arderam milhares de hectares, inúmeras árvores que eram o sustento das populações, algumas casas e morreram inúmeros animais e três pessoas (apesar de tudo muito menos do que em 2017).

 
Tudo isso poderia levar-nos para a discussão do abandono, desertificação e envelhecimento do interior, mas houve um pormenor em que poucos notaram: a não muitos quilómetros dos incêndios, em Ribeira de Pena, António Costa inaugurava esta semana a nova central hidroeléctrica do Tâmega, três albufeiras que se destinam à produção de electricidade. Ou seja, um empreendimento que sacrificando parte das terras em redor, por norma do interior, pretende fornecer energia a parte do país, mas aparentemente sem grandes contrapartidas às populações da região. Vimos o mesmo com as barragens no Planalto Mirandês, vendidas sem que os municípios recebessem o que quer que fosse. Ou com as enormes albufeiras no Barroso, que poucos benefícios palpáveis vieram trazer à região. Os tais "empregos" e "oportunidades" não passaram de ilusões e a população decresceu a olhos vistos.

 
Este é o drama permanente do interior, particularmente de Trás os Montes: continuamente desbastado para fornecer energia ao resto do país, mas esquecido em tudo o resto e notícia apenas quando há tragédias como os fogos, consequência do abandono e do desinteresse por parte de sucessivas administrações que sempre olharam para a região apenas como reserva de energia. E vamos lá a ver se não abrem umas crateras para explorar lítio a mando do secretário de estado Galamba, o perfeito exemplo do governante que se está nas tintas para o território desde que tire de lá benefícios (nem contrapartidas se lhes pode chamar). Suprema e cruel ironia, a da zona que usa a água para o fornecimento de energia necessitar tanto dela para salvar o seu território.



quarta-feira, junho 29, 2022

O S. João voltou

 Houve muitas ausências que se lamentaram durante a pandemia. Aqui em Portugal destacaram-se os santos populares, essas festas colectivas tão queridas e democráticas, que anunciam sempre um novo Verão. Em 2021 houve uns ameaços, mas ainda não seria desta. Em 2022 regressaram, sem impedimentos. O tão desoladoramente falado "novo normal" afinal revelou-se muito parecido com o "velho normal".

O S. João, festa pagã de solstício de Verão adaptada para comemorar o profeta Baptista, que segundo os Evangelhos teria nascido seis meses antes do seu primo Jesus de Nazaré, também regressou, em especial ao Porto, onde, segundo Fernão Lopes, no século XIV já era festejado. Sabia-se que tinha havido um ou outro ano em que por causas bélicas ou de epidemias não tinha havido S. João, mas nunca dois anos seguidos. De tal forma que até a DGS, em 2020, emitiu um patético comunicado no dia 24 a pedir às pessoas que evitassem os festejos. O regresso urgia, por isso.

E regressou. Assim como os manjericos, as sardinhas, o fogo de artifício, as "cascatas", os martelinhos e a animação de rua. O tempo chuvoso da manhã ameaçava ser literalmente um balde de água fria, mas acabou por poupar os festejos. As pessoas voltaram a encher os principais espaços, sobretudo os que se encaminham para o rio. Quem andasse pelo centro da cidade podia ver os concertos "oficiais", mas eram sobretudo os bailaricos típicos que, de Nevogilde às Fontainhas, passando pelo Passeio Alegre, Massarelos e Miragaia, atraíam mais gente, tal como antigamente, com os martelos a fervilhar. Até Marcelo Rebelo de Sousa andou pela cidade, quase de uma ponta à outra. É de questionar como é que ele se terá locomovido da Sé a Nevogilde. Acima de tudo e todos, os balões a polvilhar o céu de luzes. E a noite acaba perto do rio, já com a alvorada. Para alguns puristas resistentes será mesmo na praia.

Não sei se era a noite de S. João esperada por toda a gente durante os dois últimos anos de má memória, mas o essencial estava lá. O S. João voltou com a "velha normalidade" e isso era tudo o que importava. 





Ah, e também há o dia de S. João, com a regata dos barcos rabelos, ainda que o vento possa não ajudar

sexta-feira, maio 27, 2022

Triunfo onde já se dominou


A Roma, clube mais popular da Cidade Eterna, ganhou o seu primeiro título em muitos anos e o primeiro troféu da Conference League, essa nova competição do futebol europeu. E também a primeira final internacional em Tirana, capital da Albânia.

Não deixa de ser uma extraordinária coincidência: é que o estádio, um imóvel vanguardista recente com uma torre lateral que à primeira vista, de fora, nem se percebe ser um recinto desportivo, fica situado numa zona urbana construída por italianos e que alberga grande parte dos edifícios públicos e administrativos da capital. Todas aquelas construções datam do tempo da anexação da Albânia pela Itália, nos anos trinta, e são de típica arquitectura fascista, racionalista e monumental. O exemplo perfeito é o edifício da universidade de Tirana, ao fundo de uma larga avenida, tendo o estádio do seu lado esquerdo, para quem está de costas para a fachada, e as construções das imediações e da dita avenida obedecem ao mesmo plano. Nem o singular regime marxista/maoísta que se lhe seguiu mudou a sua configuração. E a praça de entrada para o estádio chama-se mesmo Praça da Itália.

É muito natural que com tanta construção dos seus patrícios, e parecida com outras que há em Roma, os romanistas nem se tenham sentido no estrangeiro. Até porque na Albânia muita gente fala italiano e não faltam gelatarias.

 
Ah, e Mourinho voltou a ganhar um troféu, continuando 100% vitorioso em finais internacionais. Isso também é familiar.
 








quinta-feira, maio 19, 2022

O regresso de uma Frente Popular?

Vindo de uns dias em Paris, primeira viagem a sério pós-pandemia, não pude deixar de reparar, pelas notícias e pelos cartazes que ainda se colam nas paredes, no clima político vigente, e não eram só os preparativos para a (re)tomada de posse no Eliseu e do Dia da Europa.

Depois das eleições presidenciais francesas, afinal menos renhidas do que se pensava e que representaram novo desvio das sondagens (que eram mais favoráveis a Marine Le Pen), dando um novo mandato a Emmanuel Macron, constituindo, como escreveu o Pedro Correia no Delito de Opinião, uma importante derrota política e estratégica para Vladimir Putin, seguem-se as legislativas. 

A divisão em três blocos políticos, verificada nas presidenciais, tende a repetir-se. A Republique en Marche, de Macron, de ideologia "liberal-social" e basicamente centrista, que arrasou as faixas moderadas dos outrora dominantes Partido Socialista e partido gaullista (que mudou de denominação várias vezes, sendo a última Les Républicains), assim como as últimas legislativas, quando só tinha um mês, deve voltar a ganhar, embora com menos lugares que em 2017. As legislativas na V República, a seguir às presidenciais, tendem a confirmar o voto destas, dando uma maioria na câmara como respaldo do sistema semi-presidencialista, havendo poucos casos de coabitação. O mesmo deve suceder agora, mas com uma maior divisão.

Marine Le Pen, em crescendo, quererá sem dúvida alargar o seu grupo parlamentar, pouco numeroso, já que o sistema uninominal e maioritário francês, baseado em duas voltas (em que por vezes há três partidos na segunda), tem pouca correspondência com o número de votos. Com menos "barreiras sanitárias" poderá aproveitar em muitas segundas voltas os votos do movimento de Erich Zemmour, que não se revelou o concorrente perigoso que prometia ser e que até favoreceu Le Pen, com um efeito de contraste como candidato ainda mais radical. Para além da sua RN (ex-FN), contará com estes votos e de habituais aliados, como Dupont-Aignan. O surgimento meteórico de Macron, ao esvaziar os Republicains,  permitiu que alas mais direitistas e soberanistas deste partido se transferissem aos poucos para o de Le Pen, dando-lhe o suporte eleitoral de que goza hoje. A teoria das "três direitas francesas", de Réné Rémond, assinala existir uma direita legitimista (e mais tarde fascista), pré-revolucionária baseada em figuras como Charles Murras e Pétain, por exemplo; uma liberal e "orleanista", de que uma das figuras de proa mais recentes seria Giscard d´Estaing; e uma direita bonapartista/gaullista, mais centralizada e estatizante, centrada num líder carismático, como Napoleão e principalmente De Gaulle. É esta última a dominante em França, mas Le Pen, que partiu com o seu pai da corrente legitimista, de resto em declínio, acolhe muito do gaullismo mais à direita. E há ainda uma corrente sempre presente que parece ser uma inspiração directa: o poujadismo, em parte sinónimo de populismo, que nos anos cinquenta, sob a liderança de Pierre Poujade, reuniu um bloco de pequena classe média composto de comerciantes, agricultores, artesão e pequenos industriais, sobretudo da "province", e alguns críticos da descolonização, que protestavam contra o poder de Paris. Não por acaso Jean Marie Le Pen começou a sua carreira como deputado por este movimento.

Mas o assunto que actualmente domina a política francesa é a união das esquerdas. Com o cúmulo de votos, que por pouco não o levou à segunda volta das presidenciais, Jean-Luc Mélenchon guindou-se como a mais proeminente e notória figura da esquerda em França. Não só levou a sua France Insoumisse a crescer, ombreando com a RN, como viu a concorrência a mingar: os ecologistas ficaram aquém do que se esperava, os comunistas há largos anos que foram suplantados, e sobretudo os socialistas, que estiveram na presidência até 2017, tiveram o pior resultado de que há memória, com os minúsculos 1,74 conseguidos por Anne Hidalgo, "maire" de Paris. Conseguiram até, suprema vergonha, ficar atrás dos comunistas, numa inversão pobrezinha do que aconteceu nos anos oitenta, quando o PSF de Mitterrand dominou e diminuiu o PCF de Georges Marchais depois de o levar para o governo. 

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A célebre sede do PCF, da autoria do "camarada" Óscar Niemeyer

Curiosamente, nas últimas eleições municipais, os socialistas e ecologistas tinham conseguido grandes triunfos, nalguns casos em conjunto, ao conquistar as principais cidades do país, assim como os Republicanos, deixando as formações de Macron e Le Pen com pífios ganhos, demonstrando uma relação local inversamente proporcional à nacional. 

Os planos de Mélenchon têm como objectivo uma força de esquerda constituída pelo seu movimento, pelos ecologistas, pelo PCF, pelos socialistas e até pelos trotskistas do Nouveau Parti Anticapitaliste, que aqui correspondem à esquerda do Bloco, provavelmente o MAS. Estes últimos recusaram, por considerarem a frente "demasiado social-democrata", mas os socialistas acabaram por aderir oficialmente. Não sem grande contestação interna: face às tendências eurocépticas de Mélenchon, o partido que teve como figuras de proa François Mitterrand, Michel Rocard e Jacques Delors (e recorde-se, na mesma linha partidária, Guy Mollet, Christian Pineau e Maurice Faure, fundadores da CEE), além de outros mais recentes como Laurent Fabius, François Hollande ou Lionel Jospin, dividiu-se claramente, tendo estes dois últimos sido vozes audíveis contra esta verdadeira dissolução de um partido histórico e fulcral na política francesa numa coligação tão longe dos seus valores. É aliás tristemente irónico, uma vez que nos anos noventa Rocard, considerando o PSF já algo ultrapassado, lançara a ideia do "big-bang" político juntando sociais democratas, ecologistas, centristas e até comunistas renovadores. A ideia recebeu muitos aplausos mas nunca germinou, e agora o que se verifica é não um big-bang mas uma implosão para que dos destroços saia algo mais velho.

A imprensa portuguesa referiu-se a uma "geringonça" francesa. Na realidade, nem precisava de ir por aí, porque em França isso já teve um nome: Frente Popular. E para além da de 1936, numa época particularmente sombria, houve a já referida experiência de Mitterrand em 1981, que se revelaria uma armadilha para o PCF, que a partir daí declinou como nunca antes, sobretudo a partir do momento em que o governo socialista a que estava ligado virou o rumo das políticas. 

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Propaganda de esquerda, nas imediações do Tolbiac 

Tanto o governo da Frente Popular como o dos anos oitenta deixaram algumas medida que ficariam para a posteridade, como as férias pagas e a abolição da pena de morte. As ideias de Mélenchon, porém, parecem ser tributárias de um passado que pouco atento à realidade: aumento pronunciado do salário mínimo, recuo da idade da reforma para os 60 anos (a França é dos países da UE com idade de reforma mais baixa, coisa que Macron pretende contrariar subindo-a) ou nacionalizações, principalmente na área dos transportes. E sobretudo, desobediência e incumprimento dos tratados europeus quando considerarem que tal se justifique. Se são bem vindas à democracia novas ideias e novas forças, o que apresenta Mélenchon não parece ser um caminho muito aconselhável num país com um estado social tão vasto e uma burocracia tão pronunciada, e que apesar de alguns problemas sociais que merecem atenção e que têm levado a certa contestação, apresenta um crescimento económico e uma taxa de emprego invejáveis.

O novel movimento já tem sigla e nome: NUPES (Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale). Dificilmente constituirá governo, mas será uma pedra no sapato de Macron e um impulsionador de movimentos de rua, mais influente do que o de Le Pen, porque promete eleger muitos mais deputados. Se terá sucesso duradouro ou não, até porque Mélenchon já tem setenta anos, dependerá igualmente de como Macron conseguir governar a França. Se este não conseguir, adivinham-se retrocessos.

terça-feira, abril 12, 2022

O Kosovo da Rússia

Notícias dos últimos dias dão-nos conta de que a Ossétia do Sul vai “iniciar o processo legal para se tornar parte da Rússia” através “de uma consulta popular”. Não é propriamente uma surpresa. Este é um procedimento que já vamos conhecendo: uma dada população está a ser atacada pelas forças governamentais, as tropas russas intervêm para a auxiliar, ocupam a região “em missão de paz”, organiza-se um “referendo” em poucos dias, e a população vota pela separação e, eventualmente, para se tornar parte da Rússia. Aconteceu antes e volta a acontecer.

Um dos argumentos utilizados é o precedente do Kosovo, saído da esfera da Sérvia, país próximo da Rússia. A região era habitada por uma maioria albanesa que sofreu uma tentativa de limpeza étnica por parte de Slobodan Milosevic e dos seus apaniguados, com currículo na matéria na Bósnia, como tristemente se sabe. A intervenção da NATO impediu-o, expulsando os sérvios e colocando o Kosovo sob protecção da ONU, até que em 2008 os kosovares proclamaram a independência, prontamente reconhecida pelos Estados Unidos e por mais uns quantos estados (Portugal incluído, meses depois, mas não Espanha, por razões óbvias). Criava-se assim, pelo menos de facto, um novo estado, como que uma segunda Albânia, de duvidosas capacidades para se manter e directamente arrancado à Sérvia, que nunca o aceitou (interpondo uma ação perante o Tribunal Internacional de Justiça, que não lhe deu razão). Nem a Rússia, que daí em diante aproveitaria o “precedente do Kosovo” nos casos da Crimeia, Donbass, e, logo em 2008, nos da dita Ossétia do Sul e da Abecásia. Mas estes últimos casos já vinham de longe.

No início dos anos noventa, o desmoronamento da URSS conduziu à independência das suas 15 repúblicas federativas. Algumas já se tinham entretanto separado, o que apressou o fim daquela federação. Era o caso da Geórgia, outrora um reino independente que vinha de tempos imemoriais, e que declarou independência em meados de 1991, depois de um referendo. Mas ao mesmo tempo, aproveitando o caos reinante e fazendo ressurgir velhas questões, outras subdivisões aproveitavam para reivindicar a sua autonomia. Aconteceu isso mesmo na Ossétia do Sul, um exíguo território a norte, separado do resto do resto do Cáucaso por enormes montanhas, e da Abecásia, uma faixa de território do noroeste da Geórgia, ao longo do Mar Negro, parte da “Riviera Soviética” e que se reclamava herdeira da mítica Cólquida, que se separou do território georgiano.

As duas aproveitaram para declarar a independência, o que originou uma reação dos georgianos. Estes, por sua vez, já andavam divididos numa guerra civil desde o derrube do presidente Zviad Gamsakhurdia, primeiro chefe de estado da Geórgia independente, e as suas forças não primavam pela capacidade bélica ou tecnológica. Para mais, as repúblicas rebeldes tiveram apoios externos. A Ossétia conseguiu a sua autonomia depois de meses de dura luta. Com a Abecásia seria mais demorado.

Aquela pequena república declarou a independência no verão de 1992, liderada por Vladislav Ardzinba, um académico especializado em civilizações da antiga Mesopotâmia, e que tentava o reconhecimento por todos os meios, tendo mesmo apoiado o golpe contra Gorbachov em Agosto de 1991. Os georgianos intervieram, sob pretexto de incidentes provocados por independentistas, e controlaram a maior parte do território, remetendo o governo da Abecásia para um pequeno espaço a Norte, perto o suficiente para conseguir receber reforços. Não o fizeram sem que as suas tropas, em parte eram regimentos semi-amadores, cometessem diversos crimes, entre os quais a destruição de preciosos arquivos, como aqui nos relata Thomas de Wall, então jovem jornalista lá estacionado para fazer uma reportagem sobre os gregos do Ponto (que foram  em boa parte resgatados por uma operação naval da Marinha Grega a que sintomaticamente chamaram Operação Velo de Ouro).

Os rebeldes abecásios receberam o apoio activo de uma miríade de guerrilheiros de várias partes do Cáucaso, chamada sintomaticamente Confederação dos Povos de Montanha do Cáucaso, que se deslocou para o território qual guerra santa. A maior parte eram islamitas, e entre os seus comandantes contava-se Shamir Basayev, que começaria aqui a sua carreira de atrocidades antes de se tornar mais conhecido pelos pelo seu papel nas guerras da Tchétchénia e pelos atentados contra a Rússia nos anos 2000, sendo o mais conhecido o massacre da escola de Beslan, vitimando inúmeras crianças, e o atentado ao teatro moscovita Dubrovka.  A estes juntaram-se voluntários arménios locais, que se diziam descriminados pelos georgianos, ossetas, cossacos e militares voluntários russos. Entre combates, avanços e recuos e algumas atrocidades de parte a parte, obteve-se um frágil cessar-fogo, mediado pela Rússia, que tinha um papel dúbio desde o início. Os georgianos baixaram então a guarda, apenas para serem surpreendidos por uma investida dos abecásios e seus aliados, que em poucos dias tomaram a capital, Sukhumi, com apoio indirecto russo, que lhes forneceram boa parte do armamento. Shevardnaze, que tinha ido pessoalmente à capital da Abecásia para dar moral à população, teve de fugir apressadamente de avião, o último a sair em segurança, já que os voos que se lhe seguiram, transportando civis em fuga ou soldados, foram abatidos pelos rebeldes sobre o Mar Negro. Seguiu-se a mortandade da população georgiana, incluindo o assassínio todas as autoridades da cidade, e a fuga de dezenas de milhares de pessoas para a Geórgia (ocasionalmente foram navios russos que levaram alguns civis para Sochi). A limpeza étnica tirou metade da população à Abecásia e a maior parte da população a Sukhumi.  


A guerra da Abecásia não teve grande repercussão no ocidente, já que na altura os acontecimentos eram dominados pela guerra na ex-Jugoslávia e a crise institucional na própria Rússia, que acabaria com o bombardeamento do parlamento, onde estavam barricados inúmeros opositores nacionalistas, estalinistas e o próprio vice-presidente rebelde Rutskoy, pelas forças de Yeltsin, a que se seguiriam eleições atribuladas que dariam a vitória ao ultra-radical Zhirinovsky, morto esta semana. Passou por isso relativamente despercebido o papel dos russos nesta guerra, já que embora só tivessem contribuído com soldados voluntários do lado dos abecásios, deram aos rebeldes não só armamento como todas as condições para progredirem, nunca tendo intervindo, antes pelo contrário, para fazer respeitar o cessar-fogo. Menos evidente são as razões porque o fizeram: se ainda por vingança pela separação da Geórgia, se porque a sua própria situação interna, minada por nostálgicos da URSS, não permitia grandes desvios. A verdade é que permitiu não só a secessão daquelas regiões e a limpeza étnica dos georgianos, de forma trágica, como deu força a que os rebeldes do Norte do Cáucaso iniciassem pouco depois uma guerra sangrenta pela independência da Tchétchénia e inúmeros grupos radicais islâmicos que deixariam um rasto de atentados violentos na Rússia.

Uma dos poucos chamadas de atenção para esta guerra é o filme Tangerinas, nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2013, passado com a guerra da Abecásia em fundo e a comunidade local de letões, e que esteve nos cinemas em Portugal e que já passou na RTP2.


A Geórgia terminaria a sua própria guerra civil no fim de 1993, com a morte, oficialmente por suicídio, do sitiado Gamsakhurdia. Em Agosto de 2008, aproveitando a distração com os Jogos Olímpicos de Pequim, a Geórgia, num período pós-Shevardnaze, liderada por Saakashvili, tentou reaver aqueles territórios, mas os planos foram gorados pelas forças armadas russas, que, agora directamente, rechaçaram os ataques e ainda entraram em território georgiano, num episódio relembrado agora com a invasão da Ucrânia. Logo a seguir, invocando o precedente do Kosovo desse mesmo ano, a Rússia agora de Putin reconheceu a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul. Mais tarde, e para justificar a actual guerra movida contra a Ucrânia, reconheceu a independência das “repúblicas” de Donetsk e Luhansk, que previsivelmente copiarão a “vontade” da Ossétia em se juntar aos russos, tal como aconteceu em 2014 com a Crimeia. Não se sabe se o mesmo poderá acontecer à Transnístria, ocupada por uma guarnição russa, mas é possível. 

Não deixa de ser curioso como a Rússia se queixa constantemente do “cerco” da NATO ao mesmo tempo que durante anos cercou a Ucrânia na maior parte do seu território – a leste e a Norte, assim como a Bielorrússia, a sul, com a base de Sebastopol, cedida aos russos para sediar a base da frota do Mar Negro, a leste, com a dita Transnístria, e até a Noroeste, se considerarmos o enclave armado de Kaliningrado/Konigsberg.

Quanto à Abecásia, tem uma posição diferente: embora agradecida à Rússia, não se pretende juntar a ela. No entanto, está absolutamente dependente do gigantesco vizinho, que tem lá forças estacionadas. A economia depende da produção de tangerinas e do turismo balnear russo, sendo um destino mais barato que a vizinha Sochi. A população ficou reduzida a metade, com a limpeza étnica dos georgianos (e a fuga de outras etnias, como os gregos e os letões). A região parece parada no tempo, quase sem infraestruturas, ao contrário do resto da Geórgia, que progrediu consideravelmente. O próprio parlamento permanece devoluto, mais de 25 anos depois de sofrer estragos de guerra, como uma ferida aberta no centro de Sukhumi, uma ilustração do estado daquela terra. A secessão serviu para retalhar a Geórgia, sem dar um futuro melhor à Abecásia, e para que os radicais islâmicos se espalhassem com os resultados consequentes. Sim, a Rússia já teve os seus "Kosovos". E os seus "Bin-Ladens". A Rússia de Yeltsin permitiu-o. A de Putin, hostil com os vizinhos que querem sair da sua órbita, reafirmou-o, diminuindo a riqueza étnica e cultural da região e condenando os respectivos povos a uma inimizade permanente.



segunda-feira, março 28, 2022

Óscares 2022

Em tempos ainda dei importância os Óscares, classificando os actores pelo número de nomeações e galardões. Nos últimos tempos perdi o interesse pelo título e pela cerimónia, cada vez menos apelativa e crescentemente mais rendida a causas do momento em detrimento da arte.

Ontem, ficando a trabalhar mais tarde, acabei por ficar a ver parte do espectáculo, incluindo a já famosa intervenção de Will Smith. Como muitos, pensei que fosse combinado. Depois percebi que não. Talvez não tenha sido um modelo de racionalidade ou comportamento, mas reconheçamos, deu alguma salero e animação politicamente incorrecta a um evento que bem andava a precisar disso.



E se alguém achou que o gesto do era um murro, desengane-se: se fosse de punho fechado, Chris Rock teria ido ao chão. É que o Will não é propriamente pequeno e até já esteve naquela sala por ter sido nomeado pelo papel do lendário boxer Ali/Cassius Clay, o que implica que saiba jogar ao boxe.

De resto, aproveita-se o sempre importante in Memoriam, que recordou logo dois antigos Melhores Actores, Sidney Poitier e William Hurt (mas que esqueceu lamentavelmente Monica Vitti), ou até Teodorakis, que nem me recordava que tivesse morrido.

PS: entretanto, Cláudio Ramos já pediu que tirassem o Óscar a Will Smith. Aposto que a "academia" já está a analisar a exigência de Ramos. Eu, se fosse ao Will Smith, ficaria preocupado.