sexta-feira, janeiro 28, 2022

António Costa não é nenhum indiano

Para além de todas as críticas a António Costa (merecidas, em grande parte), há uma coisa que francamente não suporto: é quando lhe chamam "monhé", "chamuças", "indiano" ou até "preto". Além de serem "argumentos" de tasco e declaradamente racistas - aqui não há qualquer dúvida - são próprios de gente que ou nunca saiu da terrinha ou não conhece o seu país e a cultura que deu ao Mundo.

António Costa não é indiano. É português, filho de um goês, tal como outros membros do seu governo, de governos anteriores, de outros partidos, como o Prof. Narana Coissoró, e de tantas áreas da sociedade. Só por aí se pode ver a importância de Goa e dos goeses nas elites portuguesas. Não é à toa que se fica mais de 400 anos num território. Goa representa o que de melhor a presença portuguesa deixou no mundo: uma mistura da cultura lusa e indiana, traços sólidos de civilização e uma população preparada, instruída e trabalhadora. É o melhor exemplo do que a lusofilia e a portugalidade podem apresentar. E se poucos que lá moram falam a língua portuguesa, os nomes de família conservaram-se orgulhosamente.

Não tenho propriamente um grande fascínio pela Índia, mas gostava de conhecer Goa. Lá não existe a pobreza confrangedora que se avista noutras partes da Índia. Um dia perguntei a uma rapariga indiana, que me disse ser da costa oeste do país, se era goesa. Ela respondeu, com ar resignado, que não, mas que viver em Goa seria um sonho, tanto para ela como para qualquer indiano.

Os limites da graxa

 

Muitos ficaram eriçados com a expressão que Rosa Mota usou em relação a Rui Rio, chamando-lhe "nazizinho (e isto para não usar uma "palavra feia", que nem quero imaginar qual seria), num encontro de António Costa com "figuras da cultura e do desporto". Não é para menos, porque é um exemplo  cabal do reductio ad hitlerum que coloca sempre a discussão no fundo do poço. Mas o que me chamou a atenção, entre outros elogios e genuflexões a Costa, foram as palavras de Válter Hugo Mãe. Repare-se no tom entre o delicodoce e o piroso: Rui Rio representa o "inverno cultural" e o "sorriso sereno mas seguro" de António Costa "mudou radicalmente o clima em Portugal", trazendo "a Primavera".

Imensas críticas justas poderão ser feitas a Rio pela presidência no Porto, principalmente na política cultural ou na sua ausência. Já se sabe que em campanha eleitoral os "agentes culturais" adoram fazer-se notar junto dos candidatos, quase sempre à esquerda e particularmente com o PS. Influências que vêm de França desde os tempos de Mitterrand e de Lang, e mínguas da cultura, efectivamente. E também é consabido que Válter Hugo (não era com minúsculas que ele assinava?) gosta imenso de se promover e é o autor mais auto-comercial do meio, sem prejuízo do seu talento e da sua escrita. Mas a manteiguice e o graxismo da cultura à política têm limites. Frases como aquela são dignas dos noticiários norte coreanos dedicados ao Supremo Líder, ou lá como lhe chamam. Não sei se Hugo Mãe está assim com tanta dificuldade em vender os seus livros, mas escusava de se rebaixar a este ponto de submissão. É patético, penoso e provoca vergonha alheia, até porque a cultura, com a actual incumbente do ministério, nem se tem portado muito bem e a migalha do orçamento que lhe é dedicada está muitíssimo longe da quimera dos 1%. Mais uma razão para se manter alguma noção do ridículo. Com a agravante de que para um escritor, o estilo não é digno nem para contos de revistas do coração.


quarta-feira, janeiro 19, 2022

Dezoito

Esquecimento imperdoável. Este blogue completou dezoito anos de vida, a 17 último, e eu não dizia nada.

Significa pois que já blogo há 18 anos, desde aquele longínquo Janeiro de 2004, e que A Ágora atinge a sua maioridade. Está de parabéns: é uma bonita idade, até porque acredito que não haja muitos blogues no activo (como se este tivesse uma actividade por aí além, mas pronto) que tenham atingido a maioridade civil. Mas dezoito anos já ninguém lhos tira.




domingo, janeiro 09, 2022

Os psicopatas americanos no Congresso

American Psycho, ou Psicopata Americano, é um romance, chamemos-lhe assim, escrito no início dos anos noventa por Bret Easton Ellis que retrata de forma crua, amoralmente ostensiva e exaustivamente descritiva a idade de ouro dos yuppies na segunda metade dos anos oitenta, no pré-crash de 1987. A narrativa centra-se no modo de vida de Patrick Bateman, um financeiro de Wall Street com menos de trinta anos, de início mais nas suas obsessões materiais - a casa, a decoração, os aparelhos de alta fidelidade, os produtos de beleza e de higiene, o culto do corpo, os fatos, as gravatas, os restaurantes de luxo, as drogas, as amantes e as prostitutas - e mais à frente na sua faceta (ainda) mais negra que justifica o título da obra, tudo entrecortado pelas detalhadas críticas musicais dos músicos favoritos da personagem, que surgem como curiosa Hybris normalmente em situações inesperadas.  

O livro, já de si um sucesso comercial e de crítica, foi adaptado ao grande ecrã em 2000, com Christian Bale a compor um impressivo Bateman num desempenho que projectou a sua carreira. Como já se percebeu, o protagonista espelha uma ganância e uma obsessão materialista tais (de que é exemplo o seu acesso de fúria só porque os correligionários têm cartões de apresentação mais caros e polidos que os dele, o que terá consequências funestas) que é capaz de transformar Gordon Gekko, outra personagem fictícia deste peculiar mundo dos yuppies, num voluntário caridoso. É claro que nem todas as partes das descrições torrenciais de Ellis puderam ser transpostas para o filme, mas o essencial manteve-se.


Uma das alusões na obra a figuras reais, mais presente no livro que na película, é o culto do peculiar universo que rodeia Bateman pelos bilionários ostensivos, em geral, mas com uma especial admiração: Donald Trump. Sim, Trump e as festas que ele dá, os locais que frequenta e os seus carros. Trump é o modelo, a bússola e farol, aquilo que esta mole de gente endinheirada, entediada e amoral pretende ser.

Recordei-me de novo do livro/filme e das suas alusões a propósito do primeiro aniversário da invasão do Capitólio por aquela horda estranhíssima e alucinada, que deixou como resultado cinco mortos e uma imagem de ultraje e vergonha à democracia americana, mais própria de um país do interior de África. Tinham vindo de vários pontos dos Estados Unidos, numa das alturas mais gélidas do ano, para ouvir o discurso de Trump em frente ao congresso. Um discurso aliás de acusação e de incitamento directo contra a câmara legislativa, na senda da não aceitação do resultado das eleições de dois meses antes e das alusões a supostas fraudes. As palavras eram demasiado explícitas para que não se possa ligá-las ao que sucedeu a seguir. Aliás, até parecia que alguns adoradores trumpistas, mesmo deste lado do Atlântico, já o estavam a pressentir, referindo-se a "demonstrações do triunfo do "America First" que iriam surgir em Washington. Até tinham razão, como se viu.


Trump flutua entre um instinto político eficaz e uma mitomania que se torna pública muitas vezes. Era sem dúvida este último sentimento que o dominava naquele dia. Provavelmente, no embalo daquele discurso a meio caminho entre um ditador sul-americano e o general Custer lançando ordens contra os índios, não previu que as consequências pudessem ser tão funestas. Mas foram (por pouco não o foram para o próprio Mike Pence) e são indissociáveis do seu discurso de raiva que levou aquela mole desvairada habituada a "informar-se" no Qanon a cometer um acto tão grotesco.


O contraste entre esta gente e a retratada em American Psycho é gritante, a começar pela forma de trajar e a acabar na capacidade económica. As respectivas mundividências também são abissalmente diferentes. O que as une é a admiração e a confiança quase ilimitada em Trump, embora por razões diversas. Mas é bem mais compreensível vinda dos segundos, já que Trump é ele próprio um símbolo do materialismo (e de muito exibicionismo, como se observa na sua Trump Tower e no seu avião, por exemplo) e da ganância de um lado mais perverso do "sonho americano", além de ser nova-iorquino e de ter vivido quase sempre na Big Apple. Já da parte dos invasores do Capitólio é bem menos lógico, pois falamos de gente mais proveniente do Midwest e do Deep South, menos cosmopolita e mais susceptível a propaganda e com muito menos poder económico. Trump e a fauna de Wall Street estão a anos-luz desta massa de proletários sem rumo, em muitos casos desprezando-os até, e são o oposto aos princípio cristãos (com uma interpretação muito própria do cristianismo, é certo, muito WASP) e aos modelos de família por eles defendidos.

Em suma, Patrick Bateman admira Trump não só pelas suas posses mas sobretudo por não olhar a meios para atingir os seus fins e por possuir um ego do tamanho do mundo - pela fortuna, antes de mais, e depois pelo poder político - o que o faz sentir-se quase uma divindade omnipotente perante os outros seres que o rodeiam. Combina o dinheiro, o poder e o sexo, a avaliar pelas suas bravatas. Aquela frase de que "podia dar um tiro a alguém na Quinta Avenida que não perdia um voto" seria certamente do agrado de Bateman e poderia perfeitamente ser dita por ele. Ao criar a personagem, Ellis pôs muito de Trump nela, embora não pudesse prever que uma tal levaria à invasão do Capitólio. Com a diferença de que Patrick sabe certamente muito mais de música popular contemporânea do que Donald.