quinta-feira, junho 17, 2021

Importações da Hungria

 

Portugal pode ser campeão europeu em título, possuir um punhado de jogadores de imensa qualidade e ser comandada por um homem sedento de quebrar novos recordes. Mas a verdade é que bateu uma selecção húngara que, embora aguerrida e puxada por um estádio inteiro (um luxo único nos dias que correm), não é lá muito talentosa.
Não sei o que aconteceu ao futebol húngaro nas últimas décadas (há uns vinte anos era ainda pior), mas na primeira metade do séc. XX, e ainda mais nos anos 50, os magiares eram do melhor que havia a tratar a bola e o grande expoente deu nome ao estádio do jogo: Ferenc Puskas, um autêntico bombardeiro da área. Os húngaros esmagavam quem lhes aparecesse na frente e causaram grande surpresa ao perder a final do mundial de 1954 com a Alemanha (já tinham perdido outra, com a Itália), um daqueles jogos que quebra a regra do "só os vencedores são recordados".
Um dos sintomas da decadência húngara é ver que o treinador da sua selecção é...italiano. Noutros tempos, os técnicos húngaros deviam ser a maior exportação do país e nos anos 30/40 boa parte dos treinadores dos clubes portugueses provinham da Hungria. O mais famoso de todos era Bela Guttmann, de quem tenho aqui a biografia para ler, mas houve muitos que se naturalizaram portugueses, por aqui ficaram e até se naturalizaram, mudando o dome próprio, casos de Janos Biri (dos técnicos mais longevos do Benfica) e Mihail Siska, que passaram a chamar-se João Biri e Miguel Siska. Um caso curioso é o de Lipo Herczka: primeiro treinador campeão pelo Real Madrid, vem para Portugal, ganha vários títulos pelo Benfica e depois corre o país treinando Porto, Académica, Estoril, Vila Real (será que o meu avô o conheceu?) até acabar em Montemor o Novo, no Alentejo. Literalmente, porque lá morreu e está enterrado, como nos recordou Rui Tovar. E no Alentejo houve mais, talvez porque a paisagem lhes fizesse recordar a grande planície da Panónia.

segunda-feira, junho 14, 2021

Um imortal do 6-3

 

Bem sei que o já saudoso Neno esteve em jogos marcantes, como o 2-0 de César Brito ao Porto, os 3-1 ao Arsenal em Highbury, o 4-4 em Leverkusen ou quando o Vitória de Guimarães bateu o Parma (onde como homólogo tinha um jovem Buffon) por igual resultado. Foram dois jogos em que o "Júlio Iglesias português" não sofreu qualquer golo.

Mas prefiro lembrá-lo num jogo em que nem esteve particularmente bem e até sofreu 3 golos, mas que terá sido, possivelmente, o mais grandioso da sua carreira: o 6-3 ao Sporting. Basta dizer que era um dos homens do 6-3 para ficar desde logo imortalizado. Isso para além de ter nascido na primeira cidade erigida pelos portugueses em África e de ter morrido na cidade-berço de Guimra~es, num triste 10 de junho. Um abraço, Neno.

sexta-feira, junho 11, 2021

Tarzan como comentador

 Há uma epidemia nacional há muito espalhada e que contamina sobretudo comentadores de tv e treinadores de futebol. Não vejo medidas profilácticas, alertas para o contágio, barreiras para impedir a progressão e muito menos curas. O Dez de Junho também devia servir para se falar deste flagelo.


Refiro-me obviamente à mania de começar as frases no infinitivo. Todos os dedos de todas as mãos do país seriam poucos para contar a quantidade de vezes que ouvimos frases começadas por "dizer que...", "afirmar que...", "realçar que...", "assinalar que...", "lembrar que..." e tantos outros verbos no infinitivo seguidos de "que".

Tal como a escrita rápida de sms, o acordo ortográfico e a linguagem neutra para "não ofender", esta forma de falar é mais uma causa de empobrecimento da língua. Há imensas maneiras de se aplicar um verbo no início de uma frase, mas usar o infinitivo é preguiçoso, além de errado, e é mais digno da fala do Tarzan. Ninguém se admire se lá chegarmos.

quarta-feira, junho 02, 2021

Festivais, polémicas e coincidências

 

Regressou na semana passada o Eurofestival da Canção. Pela primeira vez, julgo eu, Portugal apresentou-se com uma canção em inglês. Não percebo porque é que numa prova musicial em que se colocam a julgamento representantes de países não se exige que cantem nos idiomas respectivos, ou se houver mais do que um, nalgum deles. A verdade é que os suecos Abba já ganharam por cantar em inglês, e depois de ter visto alguns concorrentes, os representantes portugueses deste ano, comandados por um senhor com pinta e nome artístico de índio norte-americano, estavam longe de envergonhar. 

O que me pergunto é se em tempos de políticas identitárias, culturas de cancelamento e revisões da História, os representante portugueses poderiam ser os Da Vinci, que há cerca de 30 anos, e com assinalável notoriedade, puseram um país a cantar "já fui ao Brasil, Praia e Bissau..." no tema "Conquistador", em cujo videoclip surgiam em destaque o Padrão dos Descobrimentos, o navio Sagres, a Cruz de Cristo e outros elementos capazes de espalhar o horror na convenção do Bloco de Esquerda e em boa parte do festival (não digo todo porque as diferentes sensibilidades surpreendem-nos). Tenho sérias dúvidas que começasse por passar no crivo do festival nacional, antes de ir ao internacional. A verdade é que os Da Vinci, que até aí eram um grupo pop-electrónico-futurista, seguiam o caminho traçado pelos Heróis do Mar, e tal como a banda de Pedro Ayres de Magalhães e Pregal da Cunha, tiveram amplo sucesso, embora mais efémero.


A música e respectivo video recordaram-me a polémica de há poucos meses, lançada por Ascenso Simões e as suas diatribes violentas sobre o Padrão dos Descobrimentos e outros monumentos com o cunho do Estado Novo (numa, particularmente infeliz e que ele se apressou a corrigir, dizia que no 25 de Abril "devia ter havido mortos"). 

E recordaram-me outra coisa, não sei se por coincidência ou não: os primeiros padrões, possivelmente os mais conhecidos, foram erguidos por ordem de Diogo Cão, na exploração à foz do Zaire e à costa do que é actualmente Angola. O próprio Diogo Cão (e um padrão) estão entre as personagens do Padrão dos Descobrimentos. E de onde é que Diogo Cão era originário? De Vila Real, onde tem justamente uma estátua erguida em pleno Estado Novo, com estética própria da época. Mais abaixo, na principal praça da cidade, fica a casa onde se supõe que terá nascido o navegador, mesmo ao lado da câmara municipal. Câmara essa que foi nos anos noventa disputada duas vezes por...Ascenso Simões, ele mesmo, no arranque da sua carreira política. Diga-se que as duas tentativas, aliás contra o mesmo candidato vencedor do PSD, redundaram em insucesso, se bem que da primeira tivesse ficado perto, fruto da troca de autarcas, mas só vinte anos depois é que o PS conseguiria finalmente ganhar na capital transmontana. 




Mas fica-se a pensar se estas ideias recentes de Ascenso terão sido uma forma de chamar protagonismo - não seria a primeira ocasião - ou se já as teria antes. Podemos então imaginar que, caso tivesse chegado à presidência da câmara, teria tentado derrubar a estátua de Diogo Cão, legado do Estado Novo que era, e  no mínimo disfarçado a casal natal do explorador. E por arrasto, imbuído de ideias revolucionárias radicais, podia-lhe ter dado para mandar abaixo a casa vizinha: é que mesmo ao lado do imponente difício onde nasceu o navegador, uma placa, numa habitação bastante mais modesta, avisa-nos que ali nasceu o capitão de Abril e chefe operacional do 25 de Novembro Jaime Neves, embora a sua família vivesse numa aldeia a uns quilómetros, Anta (vizinha da mais "urbana"S. Martinho de Anta, de Torga). Sabe-se lá se Ascenso Simões, para quem o 25 de Abril pecou por defeito e por excessiva complacência, ao qual o 25 de Novembro não teria trazido nada de bom, não se lembraria de arrasar também esta. Mas a democracia (municipal) não o permitiu. Lá está, a democracia, outra consequência funesta dessa revolução tão festivazinha sem sangue nem justiça popular.


PS: a reboque de Vila Real e dos acontecimentos em Ceuta, ia dizer que aquele território precisava era que voltassem os Menezes, condes e depois marqueses de Vila Real e governadores daquela praça no Norte de África. Diz a lenda que D. Pedro de Menezes estava a jogar um jogo de bola com um taco chamado aleu, quando o Rei lhe perguntou se defenderia Ceuta, ao que o Menezes respondeu que com aquele aleu defenderia a cidade. Hoje o aleu figura no brasão de Vila Real. Mas dizem-me que o Embaixador Seixas da Costa já se lembrou disto há dias, nas redes sociais, e de qualquer maneira, a (antiga) Casa dos Marqueses de Vila Real já se extinguiu há muito, a mando da Casa de Bragança quando ascendeu ao trono.