segunda-feira, dezembro 31, 2018

Um dia para os refugiados


Todos os números demonstram que de ano para ano chegam menos refugiados à Europa. De 2015 em diante, os números são claramente mais baixos. E no entanto ainda são pretexto para discursos inflamados de ódio e publicações em páginas manhosas de autores não identificados nas redes sociais (ou de oportunismos descarados pela barricada adversária, aquela que escreve "refugiados bem vindos, turistas vão-se embora").  

Este ano o Prémio Nobel da Paz coube, e muito justamente, a Denis Mukwege, um médico congolês que ao longo dos anos tem tratado milhares de mulheres violadas nas terríveis e quase ignoradas guerras que assolam a região dos Grandes Lagos de África; e Nadia Murad, uma rapariga iraquiana yazidi que se viu escravizada e vítimas das maiores sevícias pelos membros da seita conhecida como "Estado Islâmico", depois de ver a sua família massacrada pelos mesmos, e que conseguiu fugir do seu cativeiro para a Alemanha. Um médico tratando de mulheres refugiadas no seu próprio país (ou dos vizinhos mais pequenos) e uma refugiada vítima de uma das maiores pragas dos últimos anos. A distinção que lhes coube relembra como os refugiados nem sempre são "invasores" nem migrantes económicos, mas sim, na maior parte dos casos -  daí o estatuto que detêm - pessoas que fogem da guerra e da morte quase certa, sempre em condições dramáticas e difíceis de suportar para a maioria dos que vivem na Europa ocidental. Por vezes ficam e até se superam. Eles ou os descendentes. 
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No mesmo dia do anúncio dos prémios, a 6 de Outubro, decorriam as cerimónias fúnebres de Charles Aznavour, na catedral arménia em Paris, com honras de estado na presença das mais altas figuras de França e da Arménia. Aznavour era uma das grandes figuras da música francesa, um resistente e uma voz que parecia eterna, e também uma das grandes figuras da francofonia. Mas era igualmente filho de refugiados, que como milhares de outros arménios, se refugiaram em França fugidos do genocídio do povo arménio perpetrado pelos turcos durante e depois da I Guerra, designação ainda hoje negada no país. O cantor apoiava a diáspora dos arménios e as suas causas e entrou mesmo em filmes que recordavam a desdita de que foram alvo (em Ararat, por exemplo). 
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Assim, no mesmo dia em que o Nobel da Paz era atribuído a refugiados e seus protectores, assistiu-se à despedida de um filho de refugiados que se tornou num dos mais queridos artistas do país que acolheu os seus pais. Uma coincidência feliz e simbólica, que podia e devia ter sido mais realçada.
Um bom ano de 2019 para todos

sábado, dezembro 29, 2018

Nomes tradicionais


Ele há coisas esquisitíssimas: então não é que os nomes próprios mais atribuídos em 2018 foram João e Maria? As pessoas lembram-se de cada uma…

Mas felizmente ainda há pessoas normais. Segundo as últimas notícias, a filha recém-nascida da actriz Rita Pereira chama-se Lonô, nome de uma divindade havaiana. Haja quem preserve as boas e velhas tradições portuguesas.

quinta-feira, dezembro 13, 2018

E uma greve de chico-espertos?


Este ano a época natalícia confunde-se com a época grevista. Há dias, um noticiário começou falar das greves em curso e só aos vinte minutos é que mudou de assunto. Havia-as de enfermeiros, estivadores, guardas prisionais, oficiais de justiça, bombeiros, funcionários da RTP, transportes públicos (como não podia deixar de ser), etc, etc, etc. Para além desta vaga grevista toda ao mesmo tempo - depois da aprovação do Orçamento, note-se -  reparei que a maior parte era às sextas e segundas-feiras, e nalguns casos em dias de ponte. Caros grevistas, bem sei que esse é um direito que lhes assiste, mesmo que que por vezes abusem dele. Mas logo nesses dias? Isso já ultrapassa largamente a falta de vergonha. Para quando uma greve ao chico-espertismo?

sexta-feira, novembro 30, 2018

Um desporto francês


Muita gente fica admirada com a "violência" das manifestações dos "Coletes Amarelos" em França, como se fosse um fenómeno raro por aqueles lados. O caso é sério, mas não é exactamente o Maio de 68 e menos ainda a Revolução Francesa. Manifestar-se com certa agressividade é uma velha tradição no hexágono: desde a Jacquerie da Idade Média, continuando com a Fronda, a Comuna, e claro, as referidas Revolução Francesa, que realmente mudou o país, e o Maio de 68, e muitíssimas outras pelo meio, é quase um desporto nacional, ao lado do ciclismo e do futebol.
Aí em meados da década passada assisti a uma manifestação bem no centro de Paris., perto da Ópera Garnier Eram bombeiros, com umas exigências quaisquer. Vinham de uniforme, capacete, e em alguns casos de machado em punho. A impedir a sua marcha, barreiras policiais e camiões de água. Quando se lançaram os jactos de água actuaram e conseguiram travá-los por uns momentos. Mas logo os bombeiros voltaram à carga e aí a polícia não esteve com meias medidas e usou o gás lacrimogêneo. Eu andava a fotografar os acontecimentos e apanhei em pleno com aquilo. Garanto-lhes que a experiência não é nada aconselhável. Refugiado no átrio de um edifício vizinho, a lavar a cara num bebedouro que julguei na altura oportuno (pior a emenda que o soneto), junto a uns japoneses atemorizados, ouvia ao lado um veterano com ligeiro ar tardo-anarquista, desdenhoso: "isto não é nada, jeunne homme. Eu estive no Maio de 68, e aí é que era".

Os jornais do dia seguinte deram umas breves notícias ao acontecimento. Era mais um entre tantos outros semelhantes.


quarta-feira, novembro 21, 2018

O inclusivo



Pedro Filipe Soares, o infeliz líder parlamentar do Bloco, escreveu ontem no Público um artigo a louvar a "linguagem inclusiva", sendo exemplo disso a expressão que ele usou na convenção do seu partido: "camaradas e camarados". A esse tipo de linguagem, para "mudar mentalidades", já George Orwell lhe deu um nome no "1984": chamou-lhe novilíngua. Seja como for, não deixa de ser estranho vermos alguém afirmar-se "inclusivo" dias depois de afirmar que "não fala da direita porque esta não conta para o futuro do país". E Pedro Soares, conta para o quê, para além da invenção de novos termos?

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quarta-feira, novembro 14, 2018

Cobras e bonsais


Tocar nos clássicos é tarefa delicada. Fazer sequelas muitos anos depois é um caminho provável para a catástrofe. Mas se forem retomados sem se levarem demasiado a sério, para mais com os protagonistas originais, e se estes envelheceram bem (ou o suficiente para voltar ao sítio onde foram mais ou menos felizes), podem surgir daí resultados interessantes. Ah, e se os papeis do "herói" e do "vilão" levarem ali umas voltas e se confundirem, melhor ainda.

Trinta e tal anos depois do início, Karaté Kid está de volta, agora em forma de série do Youtube. Com os protagonistas agora cinquentões (finalmente o Ralph Macchio tem um aspecto parecido com a real idade dele), as filosofias de vida e de guerra, e todos os paradoxos ligados à pertinente questão "afinal quem é o bom e quem é o mau".


quinta-feira, novembro 01, 2018

Voluntariado ao frio


À porta do cemitério, já perto da hora do fecho, e no alto da escadaria de granito na base da qual estão inúmeras bancas de venda de flores, três ou quatro voluntárias da Liga Portuguesa contra o Cancro cumprem a sua missão, pedindo donativos em "troca" do autocolantezinho da instituição. Estão claramente enregeladas, porque está um tempo desagradável de quasi-chuva, mas mesmo assim não perdem o sorriso e a modéstia, enquanto conversam e vão mostrando os seus smartphones umas às outras (também é preciso passar o tempo). Já ali estão há umas horas e não recebem nada por isso, excepto gratuitidade nos transportes públicos (só hoje e ontem, desde que com identificação da campanha). E lembra-me quando há muitos anos passei pela mesma experiência, antes de achar que tinha outras coisas que fazer, porventura bem menos importantes.
Ao contrário do que dizia a outra, o voluntariado não é treta nenhuma. Treta é inventarmos muitas vezes desculpas para não o cumprirmos.

domingo, outubro 28, 2018

Tentar compreender o Brasil político


Nas últimas semanas tenho andado febrilmente a ler e reler coisas sobre a vida política no Brasil. Não somente nos jornais e noticiários actuais, mas também na net (não tanto as redes sociais, embora também sejam importantes para se perceber os humores, mas mais artigos antigos, jornais online, vídeos preciosos que se encontram no Youtube, dados wikipedianos, opiniões), e na biblioteca possível. Voltei aos tempos de Vargas e JK, passei pela ditadura militar, pela redemocratização e pelo percurso efectuado desde então. Para tentar perceber enfim o que o Brasil político, porque é que se prepara para eleger uma personagem tão inquietante como Bolsonaro e porque é que a alternativa que sobra é o agora tão detestado PT (esta última premissa ajuda a perceber a segunda).

A primeira ideia que vem à memória, tal como dizem algumas publicações do país, é que estas eleições não são exactamente inéditas e trazem memórias de há uns tempos. A disputa de 1989, as primeiras presidenciais em quase trinta anos no novo regime democrático, surgia numa altura negra para a economia brasileira, não tanto o desemprego que se observa hoje, mas uma hiperinflação e a consequente recessão económica, com um presidente impopular (Sarney), tal como agora (Temer), e que só acedera ao Planalto por ser vice do presidente anterior (naquele caso, a morte de Tancredo antes da tomada de posse, agora, a destituição de Dilma pelo Congresso). Nas eleições, disputadas por um grande número de candidatos, surgiu um jovem turco de direita, Collor de Mello, por meio de um pequeno e pouco relevante partido, com uma enorme e eficacíssima rede de propaganda e um discurso alertando para o "perigo vermelho"; a postura agressiva e o discurso pré-ditatorial diferenciam-no de Bolsonaro, mas as outras características estão lá; com ele passou à segunda volta o carismático líder de um partido de esquerda "de massas", com base na cintura operária de S. Paulo, mas que ainda atemorizava muitos pelas associações com o comunismo, que naquele tempo fazia a sua espectacular derrocada; sim era Lula da Silva, e não é preciso  mostrar as semelhanças com a actualidade (mesmo que a personalidade seja muito diferente, Lula não é Haddad e vice-versa?). Em terceiro, e fora da segunda volta, ficou o candidato do PDT, de centro-esquerda, um experiente político com uma carreira executiva de respeito, mas desbocado e abrasivo, e então como agora tentou em vão tentou superar o PT; a descrição de Brizola de 1989 aplica-se a Ciro Gomes; Ulysses Guimarães, o "pai" da Constituição brasileira, na altura candidato pelo proeminente PMDB, é comparável a Geraldo Alckmin, do PSDB, pelos apoios que teve e pela fraca votação que recolheu (e que pelo seu passado executivo e pelos partidos que o apoiam tem muito também de Mário Covas e); Marina, a candidata ecológica, teve um antecessor chamado Fernando Gabeira (cuja filha, Maya Gabeira, é uma conhecida surfista que por pouco não desapareceu nas ondas da Nazaré). E assim sucessivamente. Falta saber se Bolsonaro também se envolverá em moscambilhas e verá o movimento que o apoia voltar-se contra ele, como sucedeu a Collor.


A outra conclusão que se retira é que ainda que haja imensos partidos no Brasil - no congresso são uns vinte e tal, com siglas e nomes parecidos - a sua real força é apenas formal. Bolsonaro ganhou dezenas de milhões de votos com o apoio de dois "nanicos" partidários. Por outro lado, Geraldo Alckmin, ex-governador de S. Paulo, o candidato apoiado pelo PSDB (até agora o grande partido de oposição ao PT, e que em tempos esteve no poder), pelo PP  pelo DEM - os dois grandes partidos da direita tradicional - teve menos de 5%. E Henrique Meirelles, apoiado pelo grande partido kingmaker do centrão, o velho PMBD, teve pouco mais de um por cento. Ou seja, a ideia de partidocracia no Brasil não existe, porque são sobretudo votos de ocasião ou barrigas de aluguer para muitas candidaturas, o que se prova pela velocidade com que a maioria dos políticos muda de sigla - Bolsonaro e Ciro, por exemplo, já estiveram em meia dúzia de formações diferentes. Paradoxalmente, e na altura da sua derrota, o PT provou que é o único partido brasileiro com uma máquina estruturada e com um apoio fiel do eleitorado, mesmo sem Lula estar presente, o que poderá ser importante no jogo político dos próximos anos.

Os brasileiros votam sobretudo em caras e em personalidades fortes. Collor, Lula, FHC, como tem tempos votaram em Getúlio e em JK de Oliveira. Agora preparam-se para votar em Bolsonaro. O ex-capitão tem apoios corporativos fortes, dos sectores militares aos grupos de jovens turcos da nova direita, como o Movimento Brasil Livre. E a aposta nas redes sociais e nos meios de comunicação instantânea e de massas, como o WhatsApp, tem-se revelado uma mina num país em que as pessoas lêem poucos jornais e acham que a informação "está na internet". Tudo isso num panorama em que as pessoas se cansaram da corrupção extrema, da violência sem fim, da queda da economia. Claro que o PT não é o único culpado, como se comprova pelo mandato Temer. Mas  está igualmente na origem desses problemas, e obviamente grande parte da população não quer votar em quem não sabe sequer fazer um mea culpa e continua com a tese única do "golpe". além disso,  aquelas manifestações sempre a bater nas mesmas teclas "direitos LGBT" e sei lá que letras mais, a "transfobia", as minorias, etc, pouco dizem à esmagadora maioria dos brasileiros, mais preocupados com problemas gerais do país. Por cada uma dessas manifs, Bolsonaro devia ganhar mais uns milhares de votos. E pouco se ouviu falar de temas ecológicos, como o perigo que ameaça a Amazónia. E também não se subvalorizar deve o factor "desilusão": o partido e o homem que anunciavam uma nova era (e que durante uns anos lá se ia cumprindo) revelaram-se afinal iguais aos outros.

E no meio desse turbilhão, há cento e quarenta milhões de eleitores - 14 vezes a população portuguesa - que podiam colocar do avesso todas as análises feitas sobre as eleições e mostrar que estes escritos são tão válidos como muitos outros. Aguardemos.

sexta-feira, outubro 12, 2018

Um esclarecimento e três reflexões


Considerando que é digna de reflexão por mais do que um motivo, não resisto a escrever sobre uma das notícias que, entre um turbilhão de outras mais, varreu os noticiários e as páginas da net. Falo do questionário feito a alunos do ciclo preparatório da escola Francisco Torrinha, que tanta celeuma deu.

Antes de mais, há que dizer que o questionário não é uma "fake new", como já ouvi dizer.  O tal documento foi mesmo distribuído como "ficha sociodemográfica" a alunos do 5º ano (ou 1ª ano do ciclo preparatório, como quiserem), com 9 a 10 anos, perguntando logo à cabeça o sexo e a identidade de género (homem, mulher ou "outro"), se namorava actualmente ou se já tinha namorado antes e se se sentiam atraído/as por "homens, mulheres ou ambos". Repito, isto era o questionário a crianças de 9 e 10 anos. Por acaso sei quem são os pais da criança em questão, e sei também como começou e se espalhou a notícia: numa mera conversa de Whatsapp de amigos, em que se discutem os mais variados assuntos, na sequência da qual o amigo que tinha revelado o questionário a colocou na sua página de Facebook, explicando o seu contexto. O post teve imensos comentários, começou a ser partilhado de forma crescente, qual bola de neve, e no dia seguinte já tinha centenas de partilhas, algumas aproveitadas abusivamente por forças políticas. Não demorou muito até que os jornais se referissem ao assunto, as televisões fizessem directos em frente ao Torrinha, o Ministério da Educação "apurasse informação" e as redes sociais prolongassem a discussão (como quase nenhuma aprovação do documento). A notícia chegou mesmo à Catalunha, com uma breve notícia no La Vanguardia. 
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Mas o caso merece reflexão por três razões: a primeira é saber porque que é que estas perguntas foram feitas nesta fase escolar a alunos desta idade que previsivelmente nunca namoraram e que não fazem ideia do que é a "identidade de género" ou "atracção por ambos". Qual é a finalidade do mesmo? Para que serve? E que dados ou resultados práticos se podem extrair daqui? Se é para confundir as crianças, provavelmente acertaram no alvo; se o propósito é mais ideológico, então é caso para preocupação; falava aqui há dias desta tendência para a sexualização da infância, como se se estivesse a formar um exército de autómatos programados e não a tratar de pessoas cujas fases etárias deviam ser acauteladas; e a propósito, é caso para pedir que o Torrinha não organize, no âmbito da "estratégia nacional para a Cidadania e Igualdade de Gênero", visitas guiadas dos alunos do 5º ano ou de outro à exposição de Mapplethorpe, em Serralves, ali a poucas centenas de metros, na outra ponta da "Marechal". A demonstração prática do questionário teria certamente efeitos desastrosos.

A segunda é recordar que no ano em que entrou em vigor uma nova lei de protecção de Dados Pessoais - que deu origem, aliás, a um bombardeamento maciço de emails de tudo quanto era empresa ou associação, a pedir consentimento para o tratamento dos dados - possa haver uma interferência tão visível nestes dados, mais a mais sendo crianças e tocando em elementos absolutamente íntimos e que ainda nem sequer estão devidamente desenvolvidos.

A terceira é, mais uma vez, a velocidade a que certos assuntos se propagam nas redes sociais: este começou num grupo de whatssap que nem sequer é muito grande, e colocado no Facebook, formou uma vaga surfada depois pela comunicação social tradicional, até fora de Portugal. Tudo isto em menos de 24 horas. Não tinha testemunhado tão de perto estes efeitos, mas é suficiente para causar admiração, e porque não dizê-lo, alguma apreensão. De qualquer maneira, e ao contrário do que ouvi nalguns comentários, não é preciso nenhum Bolsonaro nem nenhum candidato a protoditador para se fazer ouvir: basta a sociedade civil reagir, sem notícias falsas, e colocar as questões devidas em casos de suspeitas de abuso de poder.

domingo, outubro 07, 2018

Saudosistas da Espanha de 1936


Enquanto no Brasil há muitos que desejariam o retorno da ditadura militar, entre os quais o candidato mais bem classificado nas sondagens das presidenciais da próxima semana, em Espanha há quem sonhe com o regresso da 2ª República dos anos trinta e a sua política anticlerical e antirreligiosa (a que chamam eufemisticamente "laicismo"). Não contente com a já aprovada exumação de Franco da basílica do Vale dos Caídos, o Podemos veio agora apresentar ao governo minoritário de Pedro Sánchez o seu plano urbanístico para o local: nada mais nada menos do que demolir a grande cruz de pedra que encima o conjunto (que consideram "simbologia fascista"), tirar dali os restos mortais de José António Primo de Rivera (fuzilado no início da guerra, pelo que faz parte das vítimas da mesma), arrebatar a basílica que ali existe para o controlo público para que sirva de "memória democrática" e "dessacralizar o espaço", obviamente mandando embora os monges beneditinos que por lá se encontram.



A ideia não é exactamente nova e já teve outras variantes, como a do movimento que pretendia que o estado se devia apoderar da mesquita-catedral de Córdova para a transformar num "espaço de cidadania laico". Todos estes grupinhos, com o Podemos à cabeça, são legatários directos dos movimentos anticlericais que, em especial nos anos trinta, foram responsáveis pela morte de milhares de clérigos e pela destruição de monumentos religiosos, incluindo catedrais (como a Sagrada Família, em Barcelona), igrejas, mosteiros, seminários ou qualquer outro tipo de simbologia cristã, de que o "fuzilamento" do monumento ao Sagrado Coração de Jesus no Cerro de los Angeles se tornou exemplo cabal. Aliás, não é invulgar vermos alguns elementos do Podemos, alguns com responsabilidades de destaque, com simpáticos cartazes com igrejas a arder acompanhados das palavras "ardereis como en el 36". Por isso, os planos apresentados não são propriamente de espantar.



Parece que o governo não está muito para aí virado, mas nunca fiando. Para aguentarem o escasso apoio parlamentar, podem ceder nalguns pontos. Mas aí comprariam uma severa guerra com boa parte da sociedade espanhola e dariam novo lastro a um PP enfraquecido. Com o problema da Catalunha nas mãos, não é muito aconselhável arranjarem sarilhos vindos de outro lado.



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sexta-feira, setembro 28, 2018

Eu puritano etário me confesso


Passei finalmente pela tão afamada como polémica exposição de Robert Mapplethorpe, em Serralves - embora estivesse até mais interessado em acabar de ver a de Anish Kapoor, espalhada por todo o parque. Sempre achei que este polémicas só mereciam que se opinasse sobre elas depois de se comprovar o seu grau de relevância, dado que muitas vezes são meros tiros de pólvora seca. Mas aqui eram verdadeiros tiros de bombarda.

Mapplethorpe era no mínimo ousado. Escandaloso era também um adjectivo que lhe colavam. Com razão. E o choque sempre esteve ligado às artes, pelo que a polémica à volta da obra do artista americano de novidade não tem nada. Resta saber se o choque pode ser levado a toda a gente, sem distinções. A tal parte reservada e com restrições a menores de 18 anos (que creio que no início lhes estava pura e simplesmente vedada) é bastante mais ousada do que pensava. Pode-se afirmar, sem medo de exageros, que é realmente hardcore. Não são exactamente apenas nus artísticos, mas imagens mais que explícitas e muito agressivas. Demasiado agressivas sobretudo se estivermos a falar de crianças. Restringir aquela parte por razões de idade nem devia ser discutível. Afinal de contas, se temos limites de idade no cinema, por exemplo - e nesse caso nem sequer é suprível pelo acompanhamento de um adulto - onde se passam coisas bem mais pacíficas, porque é que não há de haver restrições pela mesma razão noutras áreas, como exposições? Sim, eu sei, hoje em dia a net e os seus conteúdos vieram complicar esta questão. E que 18 anos talvez seja um pouco demais. Mas nem por isso devemos adoptar aquele tom relativista de que é uma causa ultrapassada e de que agora qualquer pessoa deve estar exposta a todo o tipo de imagens. 

Chamem-me puritano, moralista, censor, etc. Um dos limites à livre expressão é o incitamento ao ódio. Mas era bom que nos lembrássemos de outro: o limite etário. Esta coisa de expôr uma criança a um ambiente que não é para a sua idade, e de aos poucos estarmos a sexualizar completamente a infância, é prova não só de um niilismo muito pouco saudável como de um egoísmo quase inconsciente, como se os filhos fossem carteiras de tiracolo que pudessem acompanhar os adultos em todas as ocasiões. Quanto à questão de "cada um educa os filhos como quiser" e de instituições como Serralves serem um espaço de liberdade e de debate, nada em contrário; mas remeto para situações análogas, como a supracitada dos cinemas, que até são privados; Serralves também é uma fundação em boa parte patrocinada pelo Estado, e tem uma administração que tem o dever e o direito de tomar decisões deste calibre, mesmo que desagradem aos trinta manifestantes que vieram indignar-se há dias à entrada do museu, quando os contornos da coisa ainda bem nebulosos. Parece que é "interferência nas escolhas do curador" e que nada da lei fala explicitamente em exposições. Pois não, mas as lacunas legais colmatam-se com recurso à analogia de situações idênticas; e que eu saiba a liberdade do curador também se submete a regras gerais. Sim, eu sei, condenámos o moralismo e o puritanismo, permitimos a liberdade de expressão e artística quase sem limites e vivemos numa era perigosa em que qualquer ofensa se pode tornar numa proibição e numa censura. Mas se achamos que a água suja deve ficar, lembremo-nos também do bébé que lá está. E desculpem lá a ousadia aparentemente contraditória, mas um tudo de nada de puritanismo nestes casos só  faz bem.
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Quanto ao resto, demissão de Ribas, acusações à direcção (incluindo a micro-manifestação dos indignados culturais), resposta desta, contradições do curador, declarações de funcionários anónimos e tudo o mais, pertencem ao grupo da eterna novela das polémicas culturais e das invejas mesquinhas dos "agentes culturais". Talvez daqui a um tempo se possa falar melhor disso. Até lá, Serralves merece bem uma visita. E se por acaso forem ver a obra de Kapoor, cuidado com a "Descida para o Limbo".

sexta-feira, setembro 14, 2018

Ferro e fogo no Brasil


No último 7 de Setembro o Brasil comemorou mais um aniversário. Dificilmente poderia ser mais atribulado. Poucos dias antes tinha ardido o seu Museu Nacional, a memória de duzentos anos de acervos e colecções de paleontologia, etnologia, geologia, etc, espalhados pelo velho Palácio de S. Cristóvão, a morada da família real portuguesa aquando da sua prolongada estadia no Rio. Naquele edifício moraram seis monarcas ou futuros monarcas (entre os quais uma futura Rainha de Portugal e um futuro Imperador do Brasil, que aliás eram irmãos), e ali se delineou o futuro de Portugal e a independência da gigantesca colónia, entretanto promovida a Reino. O estado de degradação e negligência do edifício e do seu conteúdo, divulgado após o desastre, chocam pelo terceiro-mundismo da coisa. Sabe-se que já se tinha assinado um acordo que libertaria fundos para obras de fundo, o que só avoluma a tragédia do caso: afinal os meios existiram, mas a salvação chegou tarde demais. O caso, como seria de esperar, despoletou acusações e discussões políticas de todo o tipo, incluindo manifestações frente à carcaça fumegante do edifício, com bandeira empunhada e tudo, acusando os actuais poderes instituídos. A verdade é que o último chefe de estado brasileiro a visitar o Museu e a casa dos seus longínquos antecessores reais e imperiais fora Juscelino Kubischek de Oliveira - esse mesmo, J.K, o construtor de Brasília. Desde então mais nenhum tinha visitado, oficialmente, ao que se sabe, aquelas salas. Nem seque Fernando Henrique Cardoso, um reconhecido intelectual. É uma triste metáfora do desinteresse a que os dirigentes do Brasil votaram a memória histórica e a cultura do país, e por sua vez, o incêndio é ele mesmo uma metáfora e uma lição do momento que vive o país.


Poucos dias depois, o candidato Jair Bolsonaro, à frente nas sondagens para a primeira volta das presidenciais de Outubro, é esfaqueado por durante um comício em Minas Gerais, ao que parece por um desequilibrado que já militara no PSOL (o equivalente ao Bloco no Brasil). À primeira vista parece quase uma ironia eleitoral, já que Bolsonaro não se cansa de apelar à violência contra os seus adversários e é um saudosista da ditadura militar. É daquelas figuras que se pode apelidar de "fascista" sem provocar grandes reclamações, além de  ter demonstrado nos debates televisivos que não dá muito mais do que aquele discurso básico. Pessoas que elogiam Marine LePen dizem cobras e lagartos dele. Só que o Brasil já não é uma ditadura e o candidato teve a devida autorização para se apresentar a eleições. O normal seria poder andar pela rua sem receio de sofrer atentados. Se eventualmente apela ao ódio, isso é responsabilidade das autoridades competentes, eleitorais, policiais ou outras, não de pobres  diabos armados.


Não se sabe se o atentado terá o efeito "Marinha Grande", mas é bem possível que tenha acrescentado mais uns votos ao militar. De qualquer maneira, é mais um capítulo do ódio que percorre a política e a sociedade brasileira. Vale a pena lembrar que este ano já tivemos tiros dirigidos à caravana de Lula (tal como aconteceu com Bolsonaro, não faltaram as teorias de "fingimento") e o assassínio da vereadora Marielle Franco, no Rio. E ainda os episódios da prisão de Lula, da sua politização e dos desgaste que isso provocou ao PT e aos seus apoiantes. Só mesmo no último minuto é que o partido que durante anos governou o Brasil confirmou o ex-prefeito de S. Paulo e ex-ministro Fernando Haddad como candidato presidencial. Ao menos os "petistas" livram-se de ver o seu candidato acusado de ser "analfabeto" (esta parcela será mais facilmente preenchida por Bolsonaro). No meio deste carrossel de intriga, ódio, e violência que mina o Brasil, temos ainda dois candidatos minimamente decentes, que se chegarem à segunda volta terão a eleição quase garantida. São eles os repetentes Ciro Gomes (que tem aquele pequeno defeito dos políticos brasileiros de ter feito parte de não sei quantos partidos, parando agora no clássico PDT, fundado por Leonel Brizolla) e a ecologista evangélica Marina Silva. Junte-se-lhes Geraldo Alckmin, político experiente mas também algo desgastado, pelo PSDB, e apoiado pela direita clássica, Henrique Meirelles, até agora ministro das finanças de Michel Temer e primeiro candidato do hegemónico MDB desde ha mais de vinte anos, e mais os habituais candidatos de partidos minoritários, formações de esquerda radical ou evangélicos lunáticos. A eleição da primeira volta promete. A da segunda está para se ver. Uma coisa é certa: o vencedor já não irá a tempo de visitar o Museu Nacional do Brasil. JK foi mesmo o último. Se alguma coisa se tentar fazer ali, será um pastiche entre as paredes do velho Palácio de S. Cristóvão. A maior missão será impedir que o Brasil, para mais encurralado entre uma Argentina entre grave crise económica e o êxodo de venezuelanos fugidos à tirania de Maduro, pegue fogo.


sexta-feira, agosto 31, 2018

Agosto passou


Agosto acaba. Para além de ter chegados aos meus quarenta anos, não teve novidades de maior. Um ou dois imprevistos que se resolveram, algum trabalho, a "silly season" política e o Mundo que não para (infelizmente com mais tragédias do que boas notícias) e a habitual temporada do Alto Minho, na qual, como sempre, não deu para tudo o que se queria. Mas nunca dá. Agosto é aquele "querido mês" que de tão precioso escorre pelos dedos num ápice. Esperamos por ele o ano inteiro e ele passa num instante. O meu mês de naturalidade (tal como pertencemos a um local, pertencemos também a uma data) é sempre aquela utopia de Verão que promete sempre muito, não raras vezes desilude na altura, mas deixa sempre saudades. Até ao próximo. Venha agora um Setembro, esse mês que muito perde por estar encostado a Agosto mas que tem tanto para dar.

quinta-feira, agosto 30, 2018

Notas de um Verão a Norte - o regresso a Paredes de Coura.


Os jornalistas musicais portugueses costumam dividir a humanidade em dois grandes grupos: os que estiveram no concerto dos Arcade Fire no festival de Paredes de Coura de 2005 e os que não estiveram. Eu insiro-me numa terceira via: os que estiveram lá nesse mesmo dia e não viram os Arcade Fire.

Julgo que já aqui contei. Em 2005, por uma hora, dadas as recusas de última hora de dilectos amigos meus em seguir comigo, que já tinha bilhete, perdi o concerto dos estreantes Arcade Fire, que ao que asseguram os assistentes, ficou para a história como uma "epifania", o "espectáculo da década" que "catapultou o festival", etc. À época conhecia o grupo e já tinha ouvido algumas canções de Funeral, o álbum inicial, e ainda hoje Rebellion (Lies) continua a ser a minha faixa favorita dos canadianos. Mas como a minha ideia era ver os Pixies, precedidos dos Queens of the Stone Age, não liguei muito, mas ficou um travo de pena. Vi depois os Arcade Fire em Lisboa, num espectáculo memorável ao lado da ponte Vasco da Gama. Mas ainda havia uma lacuna por cicatrizar. Este sábado, finalmente, encontrei os canadianos em Paredes de Coura, treze anos depois de eles se terem ido embora antes de eu chegar. Com mais discografia em cima, e a entrega e a emoção de sempre. Talvez as expectativas que estavam muito lá em cima ficassem ligeiramente goradas, até por não ser a primeira vez que os via. E o último álbum, em destaque, é o mal amado da discografia dos Arcade. Mas começaram logo com ele, com uma bem disposta Everything Now (o vídeo atrás traduzia como "tudo agora"), seguida dos hinos do costume - Rebbelion, pois claro, e ainda faixas de Neon Bible, The Suburbs e Reflektor, tudo a acabar num muito celebrado Wake Up, com a plateia literalmente iluminada. No dia com mais público de sempre do festival, os Arcade Fire regressaram a terras do Alto Minho. 2005 está enfim vingado.
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