Nas últimas semanas tenho andado febrilmente a ler e reler coisas sobre a vida política no Brasil. Não somente nos jornais e noticiários actuais, mas também na net (não tanto as redes sociais, embora também sejam importantes para se perceber os humores, mas mais artigos antigos, jornais online, vídeos preciosos que se encontram no Youtube, dados wikipedianos, opiniões), e na biblioteca possível. Voltei aos tempos de Vargas e JK, passei pela ditadura militar, pela redemocratização e pelo percurso efectuado desde então. Para tentar perceber enfim o que o Brasil político, porque é que se prepara para eleger uma personagem tão inquietante como Bolsonaro e porque é que a alternativa que sobra é o agora tão detestado PT (esta última premissa ajuda a perceber a segunda).
A primeira ideia que vem à memória, tal como dizem algumas publicações do país, é que estas eleições não são exactamente inéditas e trazem memórias de há uns tempos. A disputa de 1989, as primeiras presidenciais em quase trinta anos no novo regime democrático, surgia numa altura negra para a economia brasileira, não tanto o desemprego que se observa hoje, mas uma hiperinflação e a consequente recessão económica, com um presidente impopular (Sarney), tal como agora (Temer), e que só acedera ao Planalto por ser vice do presidente anterior (naquele caso, a morte de Tancredo antes da tomada de posse, agora, a destituição de Dilma pelo Congresso). Nas eleições, disputadas por um grande número de candidatos, surgiu um jovem turco de direita, Collor de Mello, por meio de um pequeno e pouco relevante partido, com uma enorme e eficacíssima rede de propaganda e um discurso alertando para o "perigo vermelho"; a postura agressiva e o discurso pré-ditatorial diferenciam-no de Bolsonaro, mas as outras características estão lá; com ele passou à segunda volta o carismático líder de um partido de esquerda "de massas", com base na cintura operária de S. Paulo, mas que ainda atemorizava muitos pelas associações com o comunismo, que naquele tempo fazia a sua espectacular derrocada; sim era Lula da Silva, e não é preciso mostrar as semelhanças com a actualidade (mesmo que a personalidade seja muito diferente, Lula não é Haddad e vice-versa?). Em terceiro, e fora da segunda volta, ficou o candidato do PDT, de centro-esquerda, um experiente político com uma carreira executiva de respeito, mas desbocado e abrasivo, e então como agora tentou em vão tentou superar o PT; a descrição de Brizola de 1989 aplica-se a Ciro Gomes; Ulysses Guimarães, o "pai" da Constituição brasileira, na altura candidato pelo proeminente PMDB, é comparável a Geraldo Alckmin, do PSDB, pelos apoios que teve e pela fraca votação que recolheu (e que pelo seu passado executivo e pelos partidos que o apoiam tem muito também de Mário Covas e); Marina, a candidata ecológica, teve um antecessor chamado Fernando Gabeira (cuja filha, Maya Gabeira, é uma conhecida surfista que por pouco não desapareceu nas ondas da Nazaré). E assim sucessivamente. Falta saber se Bolsonaro também se envolverá em moscambilhas e verá o movimento que o apoia voltar-se contra ele, como sucedeu a Collor.
A outra conclusão que se retira é que ainda que haja imensos partidos no Brasil - no congresso são uns vinte e tal, com siglas e nomes parecidos - a sua real força é apenas formal. Bolsonaro ganhou dezenas de milhões de votos com o apoio de dois "nanicos" partidários. Por outro lado, Geraldo Alckmin, ex-governador de S. Paulo, o candidato apoiado pelo PSDB (até agora o grande partido de oposição ao PT, e que em tempos esteve no poder), pelo PP pelo DEM - os dois grandes partidos da direita tradicional - teve menos de 5%. E Henrique Meirelles, apoiado pelo grande partido kingmaker do centrão, o velho PMBD, teve pouco mais de um por cento. Ou seja, a ideia de partidocracia no Brasil não existe, porque são sobretudo votos de ocasião ou barrigas de aluguer para muitas candidaturas, o que se prova pela velocidade com que a maioria dos políticos muda de sigla - Bolsonaro e Ciro, por exemplo, já estiveram em meia dúzia de formações diferentes. Paradoxalmente, e na altura da sua derrota, o PT provou que é o único partido brasileiro com uma máquina estruturada e com um apoio fiel do eleitorado, mesmo sem Lula estar presente, o que poderá ser importante no jogo político dos próximos anos.
Os brasileiros votam sobretudo em caras e em personalidades fortes. Collor, Lula, FHC, como tem tempos votaram em Getúlio e em JK de Oliveira. Agora preparam-se para votar em Bolsonaro. O ex-capitão tem apoios corporativos fortes, dos sectores militares aos grupos de jovens turcos da nova direita, como o Movimento Brasil Livre. E a aposta nas redes sociais e nos meios de comunicação instantânea e de massas, como o WhatsApp, tem-se revelado uma mina num país em que as pessoas lêem poucos jornais e acham que a informação "está na internet". Tudo isso num panorama em que as pessoas se cansaram da corrupção extrema, da violência sem fim, da queda da economia. Claro que o PT não é o único culpado, como se comprova pelo mandato Temer. Mas está igualmente na origem desses problemas, e obviamente grande parte da população não quer votar em quem não sabe sequer fazer um mea culpa e continua com a tese única do "golpe". além disso, aquelas manifestações sempre a bater nas mesmas teclas "direitos LGBT" e sei lá que letras mais, a "transfobia", as minorias, etc, pouco dizem à esmagadora maioria dos brasileiros, mais preocupados com problemas gerais do país. Por cada uma dessas manifs, Bolsonaro devia ganhar mais uns milhares de votos. E pouco se ouviu falar de temas ecológicos, como o perigo que ameaça a Amazónia. E também não se subvalorizar deve o factor "desilusão": o partido e o homem que anunciavam uma nova era (e que durante uns anos lá se ia cumprindo) revelaram-se afinal iguais aos outros.
E no meio desse turbilhão, há cento e quarenta milhões de eleitores - 14 vezes a população portuguesa - que podiam colocar do avesso todas as análises feitas sobre as eleições e mostrar que estes escritos são tão válidos como muitos outros. Aguardemos.
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