sábado, julho 11, 2009

A nossa Fitzcarraldo


Falou-se muito nos últimos dias sobre Maria João Pires, a sua intenção de abandonar Portugal e a situação de Belgais. Entre as opiniões mais diversas e como não conhecia a fundo o caso e as suas motivações, abstive-me de falar dele. Agora consigo distinguir melhor os seus contornos.


Maria João Pires é das pessoas que mais têm prestigiado o país nas últimas décadas. Sempre colheu aplausos sinceros de muitos quadrantes, e de há muito tempo (um amigo de meu avô, que morreu no início dos anos setenta, vivia no andar por baixo do dela, e sentava-se por vezes a ouvir as suas récitas de piano). Tem reconhecimento internacional e uma extensa obra gravada, sobretudo interpretações de Chopin. Também já tive oportunidade de assistir a um espectáculo seu, apesar de não ser um verdadeiro melómano, e gostei realmente do que vi e ouvi. E para além de todas as qualidades artísticas, ergueu o projecto de Belgais. Não é coisa pouca.


O facto de determinada pessoa ser um(a) incontornável artista não faz dela automaticamente objecto de veneração. Gente de todas as artes há e houve que foram autênticos trastes e insuportáveis pavões. Bem sei que as críticas aos artistas mais reconhecidos são muitas vezes mal vistas com os costumeiros "esta terra não o merece" ou "quem o critica não vale um centésimo". É a velha dificuldade de não pensar que génio ou talento não correspondem necessariamente ao carácter.


Muitas destas críticas surgem agora no episódio da decisão de Maria João Pires em abandonar definitivamente Portugal e instalar-se no Brasil. Já há uns anos a pianista tinha falado em "torturas" no seu país, e agora pretenderá renunciar à nacionalidade portuguesa por causa dos "coices e pontapés recebidos do Governo português". Tudo por causa dos problemas financeiros de Belgais e do recente arresto dos seus bens, porque ao que parece não tem recebido dinheiros públicos.

A sua atitude tem todos os traços dos caprichos das prima-donnas musicais. Em não lhe fazendo as vontades, amua e lança declarações ribombantes. Belgais poderá ser um projecto interessantíssimo, original e a todos os títulos louvável, mas não se pode tornar um mero sorvedouro de dinheiro. Nunca fui daqueles que acham que a cultura não pode ser subsidiada por dinheiros públicos. Os projectos que tenham interesse para o país podem e devem ser apoiados pelo Estado e demais entidades públicas. Mas tanto quanto sei, entre 2000 e 2006 o centro de Belgais recebeu cerca de dois milhões de euros do Ministério da Cultura. Não é coisa pouca. Além do mais, houve protocolos assinados com o Estado, por isso só haveria razões de protesto caso as obrigações não fossem cumpridas. Não parece ser esse o caso. O que transparece deste penoso processo é que Pires não tem grandes habilidades administrativas e de gestão. Não é vergonha nenhuma, já que a maioria das pessoas também não as tem. Mas ao lançar-se a um projecto daquela natureza, deveria ter pensado nisso melhor. Para mais, um centro de formação musical em plena campina de Idanha, no meio da Beira Baixa, uma das zonas mais desérticas do país, seria sempre tarefa hercúlea (ainda que louvável igualmente por se afastar do litoral e dos habituais centros urbanos, numa luta inglória contra a desertificação).


Por causa dessa incapacidade administrativa, Belgais está em queda e Pires prestes a instalar-se definitivamente no Brasil, desta feita a olhar para um projecto hoteleiro. Está no seu absoluto direito. Contudo, se alcançou a projecção que tem e se Belgais existe também se deverá sem dúvida ao país que agora pretende abandonar. Aqueles de quem se queixa proporcionaram-lhe o estatuto e os meios. A partir daí, caberia a si própria administrá-los. Não o soube, mesmo que as responsabilidades possam não ser exclusivas. Os projectos mais difíceis são assim mesmo, nascem (alguns nem isso) e por vezes soçobram.



Também me espanto com a preferência pelo Brasil. Será que lá há mais apoio cultural do Estado e mais mecenato? Tenho reais dúvidas sobre isso. Imagino Maria João Pires a tentar uma coisa ainda de maior envergadura, uma escola de música em plena Amazónia. Não seria ideia original: Werner Herzog já se lembrou de coisa parecida. Teríamos então uma espécie da Fitzcarraldo de saias e com sotaque português, sustentando Nova Belgais entre os cursos dos rios e a densa floresta.

A crítica à pianista não me impede no entanto de achar absolutamente estapafúrdias e (embora reveladoras) as ideias de alguns dos "liberais" do costume, autênticos néscios que lhe chamam"parasita",e que entre outras coisas sugerem que se podia dedicar à prostituição, na sua habitual incapacidade de ver na cultura algo mais que um retorno financeiro. A resposta é bem dada pelo soberbo artigo de Pedro Picoito.

Um comentário:

cristina ribeiro disse...

Boa leitura do caso, João Pedro.