terça-feira, setembro 17, 2019

Jornais e causas fracturantes não assumidas: o (mau) exemplo do Público


O consumo e a leitura de jornais têm caído imenso, e não é só o modelo em papel. As redes sociais ocuparam grande parte do seu lugar e ameaçam a imprensa tradicional. É algo preocupante, porque a informação torna-se selectiva, superficial, quando não falsa, reduzindo-se a títulos ou a agit-prop, e mesmo que a imprensa não seja isenta, ao menos sabemos quem escreveu os artigos e quem responsabilizar. O problema é que os jornais também não fazem grande esforço para a sua credibilização e continuam a cavar a sua própria cova.

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Miguel Sousa Tavares escrevia há dias no Expresso, com mira afinada e não pela primeira vez, que o Público se tem tornado numa tribuna por excelência do politicamente correcto. E não é preciso procurar muito para provar até que ponto isso é verdade. O diário fundado por Vicente Jorge Silva, que tão bons trabalhos já proporcionou aos seus leitores, estafa-se em colocar artigos parciais sobre as novas questões fracturantes. O suplemento semanal Y e demais páginas culturais passam o tempo a apresentar os novos valores feministas, trans, negros, etc, vindos em grande parte do Brasil, e "que estão a mudar a face da música", mas quando se quer ver a crítica a um filme acabado de chegar, ou, como procurei em vão, a um festival pop-rock como o de Vilar de Mouros, é o vazio total.

Nos últimos tempos é a defesa da "diversidade de gênero" que o jornal da SONAE tem empreendido, qual Duarte de Almeida a defender o pendão real em Toro. No dito Y, no dia 30 de Agosto, logo na segunda página, vemos um dos guardiões mais encarniçados destas questões, António Guerreiro, a falar da ideologia "atávica e obscurantista" que condena a ideologia de gênero (que curiosamente não considera uma ideologia, colocando-a entre aspas). De resto, os inúmeros artigos publicados no jornal sobre o assunto falam sempre dos seus opositores com um tom de mal disfarçado desprezo e dão apenas a palavra à parte contrária, normalmente os prestimosos especialistas em diversidade de gênero, uma disciplina que parece que tem boas saídas de emprego, além de artigos de opinião semanais de representantes do Observatório de Justiça, do professor Boaventura Sousa Santos, como uma investigadora de seu nome Ana Cristina Santos, que neste exemplo cabal acusa Ricardo Araújo Pereira de "ridicularizar a inclusão social na linguagem", de "defender o pendor autoritário do senso comum", porque " se há pessoas que se sentem excluídas pelo uso do universal masculino...considerandos estéticos deixam de ter cabimento". Ou como alguém, se se sentir incomodada com a língua, esse mero "considerando estético", pode exigir a sua mudança. A autora até ajuda e dá como exemplo o "tod@s" ou "tdxs" como linguagem inclusiva. Ou seja, a "inclusão" não é mais que um uma novilíngua infantil que desvirtua algo que devia ser superiormente protegido, mas que para alguns não passa de "considerandos estéticos". Já se sabe, nada de ideologia.

Nas últimas semanas tem sido um sem fim de artigos que referi em cima. Podia ser uma discussão proveitosa se se colocassem dois pensamentos e dois grupos de argumentos e confronto, mas não. Neste outro artigo lá vem a costumeira reportagem com "os jovens do futuro", em que avulta um rapazinho que critica os professores «que partem do princípio que os alunos são todos homens "cis"», e que "as associações de estudantes deviam representar as lutas sociais dos estudantes negros, comunidade LGBT ou questões feministas...sem qualquer tipo de preconceito ou conservadorismo". O jovem é identificado como militante do Bloco, coisa bastante crível dado o tipo de linguagem e de causas. Mas é pena que o jornal, uma vez que lhe dá voz, não lhe pergunte se as associações não deviam defender todos os estudantes, e não apenas as minorias que o BE estabelece (que podem nem existir em tantas escolas), ou se não percebe a contradição de, achando que não deve haver "conservadorismo", como se não pudesse haver estudantes conservadores, isso ser um preconceito da sua parte.

Por fim, mais uma peça apresentada quase como um estudo, mas de novo apenas com uma parte, sobre a questão "há ou não ideologia de gênero", a que o jornal generosamente responde que não, recorrendo de novo a uma parte da barricada, que acusa todos os que acham que se trata realmente de uma ideologia de serem "uma sombra (…) que ameaça direitos das pessoas LGBTI, saúde sexual e reprodutiva das mulheres e estudos de gênero". Nada de diferente, excepto talvez uma maior radicalização da linguagem. Mas aqui expõe-se tremendamente. É que o artigo online é só para assinantes, mas na versão em papel pode-se ler, mesmo no fim, que "as despesas da viagem foram pagas pela ILGA-Europa. Sim, isto é um problema. Ao aceitar ser custeado por uma organização que tem todo o interesse que o jornal escreva aquilo só com a "sua" versão, o Público prostitui-se declaradamente. Não está a apresentar um artigo de discussão, ainda que pendendo mais para um lado, mas a sua verdade com a patrocínio de uma entidade externa longe de ser neutra.

Assumir posições políticas inequívocas é não só aceitável como desejável. Os leitores sabem ao que vão. Em Portugal, como é sabido, a maioria dos jornais não assume qualquer posição política, à excepção dos jornais partidários, como o Avante!, ou de uma ou outra publicação, como o extinto Independente. Mesmo o Observador, claramente à direita, é muito ambíguo no seu estatuto editorial. O Público sempre pendeu para uma esquerda moderada. Porque estará tão freneticamente empenhado agora em questões tão ostensivamente fracturantes? Vontade de agradar a um certo público? Seja o que for, só contribui para que se diga que tem uma agenda política mal disfarçada, porque aparentemente tem mesmo - e como é sabido, o termo "agenda" hoje em dia é entendido de forma pejorativa, como uma conspiração maléfica. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. Os jornais ou se assumem ou então que deixem de ser tão explicitamente implícitos, sobretudo em questões que não são pacíficas. E é por coisas como estas, como diria Manuel Alegre, que aparecem os Bolsonaros. Prontos a apoucar a imprensa e a espalhar sem filtro tudo o que lhes sirva nas redes (as)sociais fora.

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