Nas reacções aos elevados números alcançados pelo Chega nas legislativas veio logo à memória o PRD - que, em 1985, acabado de nascer, teve logo 18% e 45 deputados - seguido de numerosas negações das semelhanças, começando, como seria de esperar, por elementos do próprio Chega ou terceiras figuras do PSD que desejam a coligação com este último, mas também da parte de colunistas, como um recente artigo de João Miguel Tavares.
E, de facto, há inúmeras diferenças: o tempo é outro, a ordem internacional é completamente diversa, o PRD era uma organização muito personalizada no General Eanes (que aquando desse estrondoso resultado nem podia estar no partido por ser o Presidente da República em exercício), ideologicamente pouco consistente (andaria ali pelo centro-esquerda e muitos elementos vinham do PS) e surgiu em pleno governo do Bloco Central, que tinha de gerir mais uma intervenção do FMI e uma austeridade talvez pior que a dos anos 2011-2014. Além disso, o PSD entrou em ruptura com o dito governo, de que fazia parte, com um novo e disruptivo líder, Cavaco Silva.
Mesmo nos resultados há diferenças, já que o Chega teve números ligeiramente melhores. Além disso, o crescimento do Chega insere-se numa onda de partidos nacionais-populistas de direita, ainda que com objectivos e dinâmicas diferentes, coisa que os renovadores não tinham nos anos 80. André Ventura, antigo comentador de futebol, não tem a aura de Eanes, do militar que enfrentou e venceu o PREC, mas tem uma vantagem: a de querer conquistar mais votos e não se fazer de rogado. O General, quando finalmente liderou o PRD, como que se intimidava no apelo ao voto. Talvez por ser demasiado honesto para o fazer. O PRD podia talvez ser considerado radical, mas de centro, como mais tarde o seria o italiano Movimento Cinco Estrelas, hoje também em refluxo.
Sim, vivemos num tempo e em circunstâncias diferentes e o Chega é programática e ideologicamente muito diferente do PRD. Mas também tem semelhanças óbvias. Começa logo na excessiva personalização do partido na figura do "líder", apesar das diferenças entre Eanes e Ventura atrás mencionadas. Depois, o voto de ambos é extremamente heterogéneo: no Chega cabem saudosistas do Estado Novo, adeptos de um sistema presidencialista à americana, exilados oportunistas do PSD e do CDS, elementos de "boas famílias" ligados a correntes mais conservadoras do catolicismo e aficionados aos touros, e muitos, muitos descontentes e muitas pessoas frustradas, sobretudo nas áreas suburbanas e no sul do país, que não olhando para Ventura como um salvador, votam mais por raiva, dizendo, nalguns casos mais lúcidos, que votam não para dar o poder ao Chega mas para pressionar os partidos do "centrão" à prática de melhores políticas.
No PRD votavam trânsfugas do PS ou ex-reformadores da AD, antigos esquerdistas, adeptos de um regime mais presidencialista e muitos descontentes com a terrível fase de austeridade e desesperança que se vivia. Ou seja, tirando as referências ideológicas, que aqui são as que menos contam, o tipo de eleitorado é muito parecido. Mesmo geograficamente não andam longe um do outro: se o Chega conseguiu lugares em Trás-os-Montes e na Beira Interior, ganhando no Algarve, o PRD, sendo mais fraco no interior Norte, tinha grande predominância no Ribetejo (como o Chega) e na Beira Baixa, de onde provinha o General Eanes, e ambos ganharam muitos votos nos subúrbios de Lisboa, do Porto e na Margem Sul do Tejo.
Ou seja, o grosso dos votos vem por descontentamento das políticas seguidas e dos políticos que exercem o poder e menos por razões doutrinais. Vejam-se outras semelhanças, embora talvez mais por coincidência: o PS, antes no poder, é o que mais perde, vendo fugir boa parte do eleitorado; o PSD, agora em versão AD redux, ganha novamente com menos de 30% e terá de governar na corda bamba da minoria. E dizer-se que os eleitores já não prezam a estabilidade é uma falácia: há pouco mais de dois anos, quando o BE e o PCP chumbaram o orçamento do PS, deram-lhe uma inesperada maioria absoluta, perdendo inúmeros votos e lugares.
O apreço pela estabilidade e a "paga" em menos votos por quem derruba governos por perrice continua a ser norma. André Ventura sabe isso e por essa razão vem dizendo que tudo fará para conservar um governo estável e de quatro anos. Pedro Nuno Santos, embora na oposição directa, também dá mostras de não querer ficar com a culpa de um derrube precoce. Ainda assim, se o futuro governo se mostrar minimamente competente e Montenegro gerir a situação com habilidade, qualquer passo em falso vindo da oposição poderá ser fatal.
É por isso que não acredito que numas próximas eleições o Chega caia para os 4,9% e os escassos sete deputados que calharam ao PRD em 87, com Eanes na liderança directa, nem parece que Montenegro tenha o êxito de Cavaco (que colheu os frutos da austeridade e da entrada na CEE). Ainda assim, e com 50 deputados, alguns deles de duvidoso préstimo e comportamento, o Chega não só pode não subir mais como pode mesmo levar uma queda apreciável. Demasiado tacticismo e sede ao pote do poder conduzem a erros. Por isso, o Chega não é o PRD, mas também o é em parte.
Já agora, tecendo comparações com os partidos de meados de 80 e aproveitando a nova biografia de Francisco Lucas Pires, de Nuno Gonçalo Poças, recordo que o então líder do CDS foi o pioneiro do liberalismo político do pós-25 de Abril, e, depois dos mini-estados gerais da direita liberal que foram as sessões do Grupo de Ofir, viu o seu projecto diminuído e secundarizado pela entrada de rompante do PRD e, mais importante, de Cavaco Silva. Isto devia fazer pensar a Iniciativa Liberal, um pouco herdeira desse pensamento (embora Lucas Pires fosse mais liberal-conservador), que também estagnou nesta eleição e se encontra também ela num caminho incerto.
Sim, não estamos em 1985, mas 1985 não é assim tão completamente diferente.
Adenda: de qualquer forma, no lançamento do livro, estará um dos herdeiros políticos mais directos de Lucas Pires, Paulo Rangel, seu antigo assistente universitário em Ciência Política, e que me lembrou agora que no dia em que fiz o exame a essa cadeira, Pires, o seu regente, se filiou no PSD.
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