Que a Alemanha mudou bastante após a reunificação é um dado assente. Que nos últimos tempos tenha necessariamente de mudar é outro. Que isso caiba à estranha "grande coligação", em vias de a governar, é outro ponto óbvio (há dúvidas é no sentido). Só que ultimamente as conversas sobre os teutões não primam pela positiva nem pela grandeza.
No centro da ex-Berlim Leste, a dois passos da porta de Brandemburgo e da catedral prussiana, nas margens do rio Spree, existe um edifício moderno, fechado e espelhado em tons laranja com graffitis à mistura. Não prima pela estética, como se imagina, mas aí funcionou, durante mais de dez anos, o parlamento da ex-RDA. Depois da reunificação fechou-se o mamarracho por causa das grandes quantidades de amianto lá contidas (quem sabe se a morte cancerígena de Honecker não se terá devido a isso), até há bem pouco tempo. Ao que parece, as autoridades competentes querem destruí-lo, apesar de alguns saudosistas que pretendem mantê-lo devido ao seu interesse histórico e arquitectónico (por aí não devem ir longe). Convém que se esclareça que o edifício está situado na preciso local onde se erguia outrora o Stadtschloss, o palácio onde os kaisers alemães residiam na capital, danificado durante a guerra e acabado de demolir pelo regime comunista. E é precisamente uma réplica de tal palácio que se quer reconstruir no ponto de origem. A polémica está lançada, como se esperava, porque embora o duvidoso edifício laranja possa ser muito útil como centro de congressos ou de outros eventos (poupando uns bons milhões de euros), arquitectonicamente falando o Stadtschloss é muitíssimo mais belo e bate-o aos pontos. Em princípio, será esta a solução a prevalecer, mas muita água (e tinta) vai ainda correr no Spree até à concretização do que quer que seja.
Mas o que me motivou a escrever este post é outro assunto. Hoje, 30 de Outubro, algo mudou realmente no skyline de uma das mais ilustres e esplendorosas urbes alemãs. E com um significado simbólico muito grande.
O bombardeamento de Dresden é um dos episódios mais conhecidos da recta final da Segunda Guerra, e uma das grandes manchas dos exércitos aliados. A "Florença do Elba" ficou reduzida quase toda ela a escombros em Fevereiro de 1945, e tardou em reerguer-se. Mas conseguiu, mesmo no tempo da RDA, voltar a mostrar os palácios legados pelos reis polacos, como o Zwinger, o seu friso com os duques da Saxónia, no palácio Sachsen, a Ópera, e o imponente "Balcão da Europa". A jóia da coroa, porém, a sumptuosa catedral barroca Frauenkirche, da qual só restava um torreão lateral, continuou em escombros durante cinquenta anos. Até que nos anos 90 recomeçou, lentamente, a sua quase total reconstrução.
No Verão de 1998 passei por Dresden, vindo de Berlim. Apesar do ar de limpeza e do despertar da cidade ainda havia diversas ruínas, provavelmente desde a guerra. Subsistiam também muitos aspectos ligados à RDA, alguns deles conciliadores, como os Trabant (não deixei de tirar umas fotos a uns quantos), ainda que se estivesse claramente a viver uma nova era, mais próspera e exaltante. Pude admirar as obras de reconstrução da Frauenkirche. Embora em fotografia não pareça, é uma obra colossal e majestosa. Mesmo entre tapumes e andaimes (com ar muito mais seguro do que os que se vêm por cá), espantou-me a dimensão e a imponência que se adivinhava por trás.
Até hoje. Porque os alemães, particularmente os de Dresden, puderam ver de novo aberta a sua querida igreja, sessenta anos depois da sua queda. Já há muito que se podia observar o resultado final, mas só hoje é que as suas portas se voltaram a escancarar. Um perfeito exemplo para ilustrar a máxima de Lampedusa : "é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma". Neste caso, o centro de Dresden ficou na mesma, como era antes de Fevereiro de 45. A Florença do Elba recuperou o seu esplendor e exorcizou em definitivo todos os fantasmas da guerra. Um bom motivo para lá voltar, um dia destes. Afinal, da Alemanha actual também chegam boas novas.
PS: li hoje nos jornais que a grande fatia das doações veio de Inglaterra, com o beneplácito do Duque de Kent, e de famílias de antigos prisioneiros de guerra aliados. Um excelente exemplo de reconciliação e concórdia, que ajuda a sarar definitivamente as feridas da guerra.
Aproveito para dizer que depois de ter passado por lá não soube mais notícias dos avanços das obras até ao Euro-2004; isso porque vi durante o campeonato de futebol um alemão com camisola do Dínamo de Dresden (a vender bandeiras da Grécia!) e não resisti a perguntar-lhe em que ponto é que ia a reconstrução; ele ficou vivamente surpreendido por encontrar portugueses a par das obras da catedral e interessados no seu avanço, e respondeu-me que este ano estaria pronta. E tinha razão.