Dez dias depois da primeiras notícias, a conferência de Bento XVI em Ratisbona continua a dar que falar. Por falta de ocasião, não tinha ainda podido postar sobre o assunto. Durante estes dias, tenho lido as mais diversas considerações sobre a famosa passagem do diálogo entre o imperador bizantino Manuel II Paleólogo e "um persa culto". Desde a "irresponsabilidade do Papa em proferir afirmações incendiárias", ao "notável discurso sobre a Fé e a Razão", isso, claro, nas sociedades de raiz cristã. Da parte de alguns clérigos e militantes do fanatismo islâmico ouviram-se imprecações, protestos, e coisas tão extraordinárias como "o Papa deve responder em tribunal", ou "deve pedir desculpas de joelhos perante um representante xiita". É óbvio que as reacções destes últimos devem ser tomadas como delírio próprio de mentes medievas (no nosso calendário, evidentemente) e ignorantes. Já os discursos menos inflamados mas carregados de auto-vitimização de alguns líderes espirituais, bem como novas ameaças terroristas, são factor de preocupação.
Lendo bem o texto, e percebendo o seu sentido, não posso deixar de pensar que só a má-fé ou a precipitação tenham atiçado toda uma polémica absolutamente desnecessária. O discurso, mesmo se baseado nessa passagem, poderia ser uma enorme alavanca para um debate filosófico e teológico, até (sobretudo) com interlocutores muçulmanos, e para uma nova compreensão das religiões e das relações entre elas.
Não o quiseram os acontecimentos posteriores nem a comunicação social, que se apressou a divulgar o discurso com base na passagem que incluiu observações menos simpáticas para Maomé. Uma discussão intelectual perdeu-se assim, por culpa de imprensa ávida de escândalo e de sangue, e de uma matilha de fundamentalistas que não merece o menor respeito. Os líderes das principais comunidades muçulmanas europeias, inicialmente desconfiados, deram-se por satisfeitos com as explicações do Papa, até o maníaco do Irão achou que tinha havido uma "interpretação errada", e pelo menos na Europa não se assistiu a histerismos invocando Alá (excepto em Londres, onde se encontra a comunidade mais radical, a par da de Hamburgo). O "choque de civilizações" continua adiado, para grande pena dos Salafitas e dos valentões que do lado ocidental continuam com a habitual postura de "segurem-me que eu vou-me a eles".
Como é óbvio, Bento XVI esteve bem em explicar o seu ponto de vista para não deixar margem para dúvidas, e em não desculpar-se, não havendo de quê. Mas, como sucessor de Pedro e autoridade máxima da Igreja Católica, deve também ter algum senso e agir com diplomacia. Penso que a sua intenção não era outra, ao contrário do que disse Miguel Sousa Tavares no Expresso, num registo demasiado anti-religioso para o meu gosto - se a cultura muçulmana mostrou coisas admiráveis, há coisa de mil anos, não é menos verdade que, citando Vasco Pulido Valente, "não produziu nada de remotamente comparável com o cristianismo". Mas não me refiro ao suposto bom-senso em relação ao "mundo muçulmano": simplesmente, e nisto poucos repararam, o Papa, a dois meses de uma viagem à Turquia, lembrou-se justamente de citar, na parte mais dura do discurso, o antepenúltimo Imperador bizantino, pai de Constantino, derradeiro soberano da cidade dos Bósforo, morto aquando da sua tomada pelos...turcos. Para um país tão susceptível quando se fala do massacre dos arménios, a ideia não terá sido brilhante. Manuel II Paleólogo já sofria a imparável ameaça otomana, que terminaria com a Idade Média em Maio de 1453. Acresce que a queda de Constantinopla deveu-se também muito ao declínio do Império desde o ataque e pilhagem pelos cruzados, convocados por Roma em 1204, e à insignificante ajuda que os católicos deram no momento em que o crescente estava às portas da cidade. Alguns, como os genoveses, aproveitaram-se mesmo para obter vantagens comerciais dos turcos. Daí a desconfiança e hostilidade com que a Igreja do Oriente nos trata até hoje, ainda que com boa dose de injustiça e inflexibilidade.
Uma questão por demais complexa, como são todas as que envolvem Fé e religião. E se não forem acompanhadas de razão, mais ainda...