quarta-feira, março 10, 2021

A costela portuguesa dos Daft Punk

 

Os Daft Punk, talvez o grupo (ou duo) de música electrónica mais famoso do globo, resolveu encerrar actividades, anuncionado-o numa mensagem lacónica a fazer justiça à imagem silenciosa dos seus elementos. Além de silencisos, eram discretos, tanto que nem mostravam os seus verdadeiros rostos em público, coisa que nos tempos actuais até parece visionária. No entanto, têm algumas curiosidades, com a origem de um dos elementos do dueto, que recordo aqui na adaptação de um post já com uns anos (podem vê-lo aqui, se quiserem).

Nas cerimónias de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi, destacou-se o conhecidíssimo Coro do Exército Vermelho, a cantar uma divertida versão de Get Lucky, dos Daft Punk, uma das músicas mais tocadas dos últimos anos nas pistas de dança de todo o Mundo. Um espectáculo com piada, e que é um hino à globalização: um grupo de rapazes russos a cantar, numa cerimónia internacional no litoral do Cáucaso, uma música em inglês da autoria de um duo francês, um dos quais com apelido português.

Ora o elemento de origem lusitana é Guy-Manuel de Homem-Christo, francês de terceiro geração, trineto do jornalista e polemista republicano Homem-Cristo (pai), reconhecido na toponímia aveirense, e bisneto de Francisco Homem Cristo (filho), que se destacou por ter sido o primeiro grande intelectual e propagandista do fascismo em Portugal, e cuja biografia política, Do Anarquismo ao Fascismo, é da autoria de Miguel Castelo Branco. De tal maneira ganhou a confiança de Mussolini que se tornou logo um dos principais "embaixadores" do Duce para espalhar a nova doutrina pela Europa e até mesmo para organizar um congresso do fascismo em Itália. Morreu em 1928, em Roma, num desastre de automóvel, no decurso dessas actividades políticas, quando já vivia e tinha família em França. O início da carreira dos Daft Punk, e em certa medida o seu progresso, pode ser visto no filme Eden, de Mia Hansen-Løve, baseado na percurso do seu irmão na música electrónica, onde conviveu de perto com os Daft Punk, sem nunca alcançar o enorme sucesso destes

O irónico disto tudo é que provavelmente o Coro do Exército Vermelho, surgido, como o próprio nome indica, no tempo da União Soviética, não imaginaria sem dúvida estar a cantar uma música da autoria do bisneto de um notório propagandista do fascismo, inimigo mortal (ou outra cara da moeda?) da URSS. E com toda a certeza Homem Cristo Filho, admirador e defensor do fascismo italiano, jamais pensou que um seu descendente directo comporia músicas em inglês que seriam cantadas pelo coro do Exército Vermelho. Não seria essa, com certeza, a divulgação que pretenderia, mas o certo é que um seu descendente com o seu nome acabou por se tornar mundialmente conhecido pela sua música, e não certamente pela sua ideologia política (nem pela sua cara, já que o duo há anos que só aparece em público mascarado).



Relembre-se ainda que tanto o Homem Christo pai como o filho são referidos no Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, de uma forma pouco elogiosa, como não podia deixar        de ser naquele texto verrinoso onde ninguém escapa.



terça-feira, março 09, 2021

A visita pastoral ao Iraque

 

Chegou ao fim uma das mais delicadas e perigosas, mas também uma das mais significativas, viagens pastorais do Papa. Entre a pandemia e as bombas que o infeliz país tem sofrido há vários anos, a viagem ao Iraque parece ter corrido muito bem e permitiu cumprir vários objectivos, como o encontro com o Ayatollah Sistani, a grande autoridade xiita do Iraque, as vítimas do Daesh e as celebrações com as tão massacradas (e antiquíssimas) igrejas da Mesopotâmia, e são tantas, apesar dos fiéis mingarem por causa das perseguições e da violência.


O Papa conseguiu ainda ir a Mosul, a vizinha da antiga Nínive, no coração da Mesopotâmia, a cidade ocupada e devastada pelo Daesh, há poucos anos. Tinha sido precisamente na principal mesquita de Mosul que o "emir" al Baghadi proclamara o Estado Islâmico, em 2014, e anunciou que conquistaria Roma. Aconteceu precisamente o contrário: o Bispo de Roma é que entrou em Mosul, mas sem armas. Lembra um pouco a pergunta de Estaline, entre risos: "quantas divisões armadas tem o Vaticano?". A verdade é que o regime de Estaline já não existe, mas o Papa continua a saudar as multidões na Praça de S. Pedro ou em qualquer outro local. Até no Iraque, em 2021.