As eleições de Espanha, que redundaram num triunfo relativo do PP de Feijó e na resistência do PSOE, mostraram ainda mais, como se fosse necessário, como o país está partido e se tenta fazer uma divisão esquerda-direita intransponível. Pedro Sanchez preferiu aliar-se com tudo o que mexia a permitir por abstenção a investidura de um governo minoritário do PP, respaldado a pactos de regime. Isso permitiria que o Vox não interferisse com um governo PP, mas para Sanchez isso não era suficiente, e, como se viu, para conservar o seu poder, preferiria aliar-se ao diabo que ver um governo do PP, com ou sem Vox. E de facto isso pode acontecer, se tiver de novo o apoio da esquerda radical, o Sumar que deixou o Podemos nas lonas, tão cor-de-rosa por fora e tão retintamente vermelho por dentro, herdeiro em linha directa das que por ali se encontravam no tempo da Guerra Civil. A nova estrela local, Yolanda Diaz, afirmou há não muitos anos querer acabar com o espírito da transição e com a própria monarquia. Realce-se que Diaz é natural do Ferrol, ironicamente tal como o Generalíssimo Franco, cidade que outro ilustre conterrâneo, GonzaloTorrente Ballester, dissera nunca ter criado nada que prestasse. Para além do Sumar, Sanchez precisará do apoio de muitas outras formações, como os desavindos partidos independentistas catalães, que até caíram estrondosamente, uma data de formações regionalistas, e do País Vasco, o habitual PNV, que governa a região, mas sobretudo o Bildu, sucessor directo do Herri Batasuna, o braço político da ETA, que continua a ser chefiado pelo mesmo Arnaldo Otegui. é pois com este saco de gatos que Sanchez pretende manter o PP afastado do poder.
O pretexto do Vox redunda em falsidade, como se vê, mas é muito usado e aparentemente eficaz. Aqui, Sanchez está muito próximo de António Costa, que usou e abusou do fantasma do Chega para obter votos à esquerda e impedir o PSD de melhores resultados e também obteve visível êxito. A estratégia pode ser boa agora, mas poderá trazer graves consequências mais tarde. A eternização do poder, a falta de alternativas e a normalização da direita radical podem fazer com que esta cresça mesmo a médio prazo, rompendo quaisquer cordões sanitários e aproveitando-se da terra que os socialistas vão queimando. E há precedentes além-Pirenéus.
Nos anos oitenta, estando no poder, onde conseguir controlar os comunistas, e para evitar a progressão da direita gaullista e republicana, François Mitterand conseguiu alterar a regra eleitoral do modelo de voto maioritário para um proporcional. Permitiu assim que a Frente Nacional de Le Pen ganhasse um número apreciável de deputados no parlamento às custas da direita e, desde então e por arrasto, dos comunistas, coisa que Mitterand talvez não imaginasse à época mas que lhe seria útil para se desembraçar deles colocando o PSF como partido hegemónico da esquerda francesa. O então presidente era um tacticista sob as vestes do idealista, e seguia as teses maquiavélicas que tanto influenciaram dois estadistas do século XVII: os cardeais Richelieu e Mazarino. Essa influência transmitiu-se-lhe mesmo de forma pessoal: soube-se que tinha uma segunda família e uma filha a que deu o nome de...Mazarine, o que não era certamente por acaso.
Só que tudo isto teve um preço. Hoje em dia, não só o PCF é quase irrelevante e a direita republicana está em declínio como o próprio PSF se tornou um partido de terceira categoria, de influência quase nula, empastelado numa coligação chefiada por um demagogo de esquerda radical, ao passo que o cenário político está dividido entre este último, o cento radical de Macron e a dinastia Le Pen, que Mitterand ajudou a guindar-se. Eis o resultado de se querer manter o poder a todo o custo insuflando-se as direitas radicais para enfraquecer as moderadas: um dia, o desespero e a revolta de ver o poder ocupado pelos mesmos acabará por dar aos radicais ao poder, catapultando-os com enorme aumento de votos. Isso já está a acontecer noutras paragens. Aconselhava-se por isso os srs. Sanchez e Costa a olhar para França e a não brincarem aos defensores da democracia - e sobretudo a não brincarem apenas com os radicais do seu espectro político.