terça-feira, dezembro 31, 2024

A glória póstuma de José Pinhal

O fenómeno é curioso, mas já sobejamente conhecido: José Pinhal, cantor romântico de "música de baile", usando normalmente um fato branco, um bigode afirmativo e um penteado à Rudi Voeller, frequentador dos circuitos musicais sobretudo no Norte do país, despareceu num acidente viário com pouco mais de 40 anos e ficou esquecido alguns anos até as suas cassetes serem encontradas no escritório do seu agente, digitalizadas e depois colocadas no Youtube, onde se começou a gerar um pequeno culto. Surgiu um grupo de tributo para recriar em palco as suas músicas, o José Pinhal Post -Mortem Experience, e desde então Pinhal conheceu postumamente a popularidade de que nunca gozou em vida, sendo mesmo objecto de um artigo do Guardian


Celebridade após a morte: o obscuro cantor popular português que é notícia  em Inglaterra – NiT

Vi a banda-tributo há meses, por alturas dos Santos Populares. Uma enorme multidão cantava de cor as músicas, para mim até então quase desconhecidas, transformando Pinhal numa autêntica estrela pop de além-túmulo e os músicos ali presentes nos seus mensageiros. Aí consegui ver o verdadeiro fenómeno em que se tornou este músico pouco conhecido no seu tempo e fora de moda para os parâmetros actuais e o culto que se gerou. Nos meses seguintes tornei a ouvir as músicas e a ver gente a trauteá-las de cor e salteado, sobretudo da meia-idade para baixo.

Toda essa descoberta inevitavelmente levou-me a pensar: e se Pinhal tivesse sobrevivido? Teria continuado nos seus circuitos de baile e ficado meramente conhecido nas festas de verão e em algumas danceterias (sim, ainda as há), com algumas cassetes editadas, daquelas que se vendem nas roulottes? Ou teria aproveitado a onda "pimba" que se gerou depois e alcançado o sucesso, sendo chamado regularmente para programas de tarde de fim de semana da TVI e SIC? Não tenho a menor dúvida de que não teria o êxito actual, sobretudo entre os mais novos. A sua morte, o seu relativo desconhecimento em vida, a descoberta do seu espólio e o crescimento paulatino da sua música criaram este culto, o de um homem que não conheceu a fama em vida e que por vicissitudes várias se tornou famoso postumamente. Não é caso único, o de encontrar sucesso muito tempo após a morte (e recorda também um pouco o de Sixto Rodriguez, que o teve em vida mas ainda a tempo de o saber), mas falamos de um conjunto de factores que permitiram que um homem relativamente desconhecido, com imagem ultrapassada e música fora de época gerasse este fenómeno de popularidade. Para isso permitiu também um certo revivalismo dos anos oitenta e noventa e o crescente interesse e consumo de música portuguesa, aliados a algumas tendências hipsters (também elas agora um pouco em baixo). Mas não haja a menor dúvida: a morte de José Pinhal, desencadeando todos estes passos, é que lhe deu o passaporte para a glória póstuma. Paz à sua alma, que a obra não a tem e continua a circular por esses palcos fora. 

 

Bom 2025 a todos. O possível.

terça-feira, dezembro 10, 2024

Notre Dame de Paris

 A look at 5 years of restoration work at Notre Dame cathedral in Paris

 
 
A restored Notre Dame cathedral is unveiled days before its official  reopening : NPR
 
Uma semana depois das autoridades e dos trabalhadores a poderem visitar, o interior da Catedral de Notre Dame reabriu, enfim, em dia da Imaculada Conceição, e voltou a rezar-se missa. Cinco anos depois do incêndio que quase a consumiu, a "igreja mãe dos franceses" está mais sólida do que nunca, reconstituindo-se sem concretizar alguns projectos inovadores mais duvidosos, (felizmente).
 
 
Este momento tão simbólico e grandioso acontece numa semana em que o governo de França caiu e desencadeou nova crise política, agravando a orçamental e financeira. A fuga para a frente de Macron levou a que a Assembleia Nacional ficasse espartilhada entre um bloco de esquerda que vai desde anticapitalistas declarados a socialistas de centro-esquerda, com a tutela dessa mistura de Robespierre com Mitterand que é  Mélenchon, um de direita radical (outra amálgama de desiludidos da política, neo-pétainistas inconfessos, legitimistas fora de prazo, ex-esquerdistas desesperados e gaulistas "contratados"), o que resta da direita tradiconal e o próprio bloco de centro macronista. Um governo que levou dois meses a formar-se durou apenas três e o seu chumbo, bem como do orçamento obrigatoriamente austeritário mergulha a França numa crise financeira.
 
Mas isto é uma reprodução fiel da personalidade de França: um país que quando atravessa graves crises consegue sempre reinventar-se e dar a volta por cima. Apesar de problemas internos, só este ano organizou uns Jogos Olímpicos, uma das maiores montras de tudo o que quer ser potência, e reabriu a catedral da capital, não por acaso conhecida em todo o mundo. Um pouco como depois da humilhante derrota na guerra Franco-Prussiana e da revolta da Comuna, em que em poucos anos pagou-se a dívida de guerra, reconstruíram-se os edifícios destruídos pelos communards (excepto as Tuilleries) e ainda se organizou uma enorme feira mundial, para dar conta da pujança do país, ou como a Paris do pós-II Guerra, em austeridade e carência, voltou a ser o farol para meia intelectualidade mundial.
 
Aquando do rescaldo do incêndio, Macron prometeu que em 5 anos a catedral estaria reaberta. Passaram-se 5 anos e meio e eis a promessa concretizada, com empenho político e o grande trabalho de engenheiros, operários, artesãos e todos os trabalhadores que contribuíram para este dia. E penso naqueles que, ao anoitecer daquele dia de Abril em que as chamas ameaçavam destruir Notre Dame, oravam e rezavam nas margens do Sena. As suas preces foram atendidas.
 
PS: compareceram inúmeros chefes de estado e de governo na cerimónia. O Papa mandou saber que não poderia ir, a única verdadeira nota dissonante. Portugal estava representado pela Secretária de Estado da Cultura. Um tal acontecimento numa das cidades com mais portugueses e luso-descendentes não mereceria representação de mais altas instâncias?

segunda-feira, dezembro 09, 2024

O fim de um regime que já ninguém apoiava

Ontem os rebeldes sírios tinham tomado Homs e estavam literamente, na "estrada de Damasco". Hoje acorda-se com a notícia da tomada da capital, quase sem resistência, e com a queda do regime e fuga do clã Assad e estado maior (tiveram mais sorte que Saddam e Kadhafi). De há uns anos para cá ficou a ideia de que o regime baathista/assadista tinha ganho a guerra e dominado os seus inimigos, pelo menos em boa parte do país. Em poucas semanas o jogo virou e o regime caiu. O que vem aí pode não ser bom; o que acabou não era de certeza absoluta.


Mas isto serviu para uns tira-teimas: o regime de Assad, que muitos garantiam ser imensamento apoiado pelo povo sírio, caiu quase sem ninguém que o defendesse. Viu-se o "apoio popular": uma enorme farsa, mantida pela violência. Só era sustentado pela ajuda iraniana e pelo Hezbollah, que severamente macerados por Israel não lhe puderam agora acudir, e pela Rússia, que virada totalmente para a guerra na Ucrânia também se viu impotente. É a confirmação de que a Rússia, como já se tinha visto ao falhar à Arménia pelo Nagorno Karabakh, não tem capacidades reais para acudir em vários tabuleiros e que é uma potência com pés de barro. Aliás, depois dessa guerra com a Arménia (que por causa disso se virou para ocidente), é o segundo triunfo dos proxys da Turquia sobre os da Rússia.

Os turcos são os grandes vencedores do momento, mas Israel também colhe os louros. O Irão e a Rússia são os grandes derrotados. Veremos o que ganhará ou perderá o Ocidente, já que os curdos, que apoiam, serão com certeza hostilizados pelos pró-turcos, apesar de também eles terem conquistado território e material militar.

Tudo isto, curiosamente, num dia de grande significado para a França, antiga potência administrativa da Síria. Fica-se com a dúvida se o pais se manterá ou se é mesmo para dividir, como aliás era o plano em 1920.



quinta-feira, dezembro 05, 2024

Barnier, o Breve.

Precisou-se de dois meses para escolher e formar o governo Barnier. Só durou três.

Mas convenhamos que apesar de todas as responsabilidades de Macron e das suas maquinações políticas, os grupos da LePen (que tinha aprovado o governo) e Melenchon têm a fatia maior de culpa na queda do governo. Parece que não percebem que as finanças de França, a dívida crescente e o défice descontrolado ultrapassaram o suportável, tal como não tinham percebido que a segurança social não se aguenta nos moldes actuais. Que ocupem o governo e que mostrem que são melhores. Até porque dificilmente arranjam alguém melhor que Barnier.

Que Notre Dame, em vésperas da reabertura da sua igreja, os ilumine que bem precisam.