A herança terrorista
O terrorismo continua a ser o assunto mais discutido a nível internacional. Tivemos a quasi repetição dos atentados de Londres duas semanas depois, o caso do infeliz brasileiro baleado pela polícia (mas quem é que o mandou vestir-se daquela forma?), as bombas em Sharm-el-Sheik, e, claro, a matança diária do Iraque, cujos habitantes são autênticos mártires às mãos dos bárbaros locais. A pergunta que mais se faz é: qual será o alvo seguinte? Ou então, e talvez mais pertinente: deve a nossa liberdade ser parcialmente posta em causa em nome da segurança?
De qualquer forma, o fenómeno não é de maneira nenhuma novo. Mesmo a versão fanática islâmica já se tinha manifestado por diversas vezes nos anos 80, com o enigmático Abu Nidal, ou os incitamentos de Muammar Khadafi (hoje um autêntico cordeiro). Mais atrás tivemos o "terror vermelho", das Brigate Rossi e dos Baader-Meinhof, ou dos grupos fascistas que mandaram pelos ares a estação de Bolonha. As doutrinas dos extremos, particularmente as anarquistas, já utilizavam o terror há largas décadas.
Prova disso mesmo é o nosso inevitável Eça, que invocamos sempre que queremos fazer uma comparação entre o Séc. XIX e os nossos dias. Também aqui o então cônsul em Paris nos deixou notas preciosas para percebermos como a violência do terrorismo já na época obedecia a uma lógica impiedosa e fanática. Eis alguns exemplos que encontrei na biografia do escritor, da autoria de Maria Filomena Mónica:
"o propósito de aplicar a doutrina de seita, que tendo condenado a sociedade burguesa e capitalista como único impedimento à definitiva felicidade dos proletários, decretou a destruição desses proletários (razão dada para a colocação de uma bomba no interior do Parlamento) (...) durante um momento, à força de buscas, de prisões, a seita fica desorganizada, desconjuntada; mas para imediatamente se reorganizar além, mais numerosa, mais fanatizada, por isso que vem de padecer mais uma perseguição (...)Tornava-se necessário atirar indiscriminadamente a bomba redentora contra as classes exploradoras, contra a cidade onde se realiza a exploração, contra as próprias crianças que nascem, porque elas já trazem em si o vírus da submissão explorável (...) Se é anarquista, se lançou a bomba, é dele a fama universal, que nem sempre conseguem os santos e os génios." Filomena Mónica dá-nos ainda conta dasduas razões que Eça considerava fundamentais para a divulgação da doutrina: "uma das raízes do entusiasmo pelo anarquista, a boa, viria da comiseração que naturalmente qualquer pessoa sente por quem sofre; mas havia outra, a perniciosa, que derivava do doentio entusiasmo por tudo quanto era monstruoso (...) A culpabilidade dos ricos levava-os ao êxtase do gesto bombista" (Maria Filomena Mónica, Eça de Queirós, Quetzal Editores). Para além disto, Eça faz ainda algumas considerações acerca da estranha atracção de alguns elementos das classes mais altas pela doutrina da seita.
Notório é que muitas das características do terrorismo da altura sejam tão semelhantes ao que deriva do islamismo: a vontade de matar indiscriminadamente, o ódio a uma sociedade inteira, o dogmatismo e a crença na sua missão assassina (e em grande parte suicida, já que os anarquistas sabiam que estas acções provavelmente lhes custariam a vida), um certo sentimento de exploração ou marginalização que deriva para um letal desejo de vingança. Sim, ontem como hoje as razões e as consequências são as mesmas. As novas tecnologias e a globalização tendem a modificar-lhes os métodos, mas o islamismo radical é na sua vertente mais violenta herdeiro directo do anarquismo oitocentista. Que páginas dedicaria Eça ao assunto se vivesse nos nossos dias?
terça-feira, julho 26, 2005
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2 comentários:
Ora aí está uma questão que gostaria (e sei que nao vou ver) de ver.
Abraço
Nunca li as Cartas e bilhetes de Paris compiladas, mas antes uma parte delas na mesma biografia de MFM. As mais incisivas são as que incidem sobre assuntos internacionais. ainda há tempos relia um texto de Eça sobre o proteccionismo da China aos seus produtos, enquanto que na televisão começaram a falar da necessidade de proteger os mercados face ao avanço comercial da China.
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