quinta-feira, outubro 06, 2011

A Pluma Caprichosa na sua torre de marfim



A propósito de Meia Noite em Paris, o último de Woody Allen (que vale todas as estrelas que lhe derem, mais o preço do bilhete, e é pura magia inserida no quotidiano prosaico, sem cair no realismo mágico), Clara Ferreira Alves escreveu na revista do Expresso de 24 de Setembro uma das páginas mais pretensiosas que tive a oportunidade de ler desde algumas crónicas de José António Saraiva (no mesmo jornal, antes de se agarrar ao Sol). Aqui ficam algumas partes esclarecedoras: "Comíamos cinema clássico e filmes russos e alemães com sete horas (...), papávamos Bergman ao pequeno-almoço, e ninguém podia chegar à puberdade sem ter lido pelo menos um romance de Tolstoi e Dostoievsky, de Stendhal e Flaubert(...)Tínhamos de saber distinguir entre a sonoridade melancólica de Chopin e a alegria cantante de Mozart, entre quintas e nonas fossem as de Beethoven ou as de Mhaler (...)Tínhamos de saber as subtilezas de Nietzche e Schopenhauer..." O resto do texto é todo ele assim, e termina com lamentos de que a tecnologia e os economistas extinguiram a cultura europeia.

"Tinham"? Mesmo achando que há aqui um grande exagero nas obras e autores citados, imagino que Clara Ferreira Alves tivesse apenas um limitado número de amigos com os quais pudesse competir. Mesmo entre os mais eruditos, dificilmente se consumiriam todos estes autores e obras na juventude (até durante toda a vida é duvidoso). E depois, a ser exactamente assim,em que mundo vivia Ferreira Alves? Imaginaria que nas nos bairros pobres urbanos, periferias nascentes das cidades, nos campos, nas aldeias piscatórias, nos bairros de operários, as pessoas seriam mais ávidas de leitura, de música, de discussões sobre a origem do universo? Ou mesmo nas universidades, nos liceus, nos cafés? Não passaria de uma ilusão de um grupo absolutamente restrito?


É que além da pretensão a abarcar toda a "Alta Cultura", há ainda uma crítica explícita às "novas gerações", que não são como a de Clara, muito naquele tom de "no meu tempo é que era". Eu bem sei que o ensino para os resultados produz muitas aberrações e uma quantidade infinda de ignorantes, mas será porventura porque mais gente tem acesso à escolaridade e ao conhecimento do que há trinta ou quarenta anos, quando as distinções sociais estavam bem vincadas e a instrução não era massificada. Mas o número de leitores (de livros) cresceu, por exemplo, e crê-se que os padrões não diminuíram assim tanto. Estão é mais indistintos.

Eu também tenho alguns pruridos contra o total domínio da sociedade pela pura economia, e mais ainda pela tecnologia, que parece insaciável, não dando tempo para recuperar o fôlego. Mas também é graças ao crescimento económico (R.I.P.) que este país teve durante uns anos, e aos avanços tecnológicos, que o conhecimento e a cultura chegaram a muito mais gente. Sim, há variados perigos, mas também inúmeras oportunidades. Hoje, qualquer pessoa pode tirar uma dúvida factual na Wikipédia, ao passo que há poucas décadas essa mesma dúvida subsistiria por mais tempo.

Mas o que é realmente irónico é que Ferreira Alves focou-se na catadupa de artistas que figuravam em Meia Noite em Paris e passou ao lado do filme de Allen. Um cidadão americano do século XXI gostaria de ter vivido na Paris dos anos vinte, onde por sua vez havia quem de bom grado os trocaria pelo último quartel do século XIX, e aí surgem Gauguin e Degas suspirando pelo Renascimento. A moral (chamemos-lhe assim) que se extrai do filme é que por muito que não apreciemos o nosso presente, e achemos que houve uma qualquer era passada muito superior, quem viveu nessa era dourada achará sempre que antes disso é que se vivia, numa cadeia constante. E o que Clara Ferreira Alves faz é suspirar por uma qualquer época em que todos liam os mais complexos autores, ouviam os músicos mais eruditos e discutiam os pensadores mais profundos, antes da "imbecilização" do Mundo. Eu, que ate sofro de nostalgias e revivalismos vários, sempre prestei mais atenção ao filme, ao passo que a autora da Pluma Caprichosa não achou nada melhor do que usá-lo numa coluna para mostrar às massas o quão culta é, ela e a sua geração. Que diria se soubesse que Woody Allen tem como passatempo favorito ver futebol americano na televisão?

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