As recentes alterações constitucionais na Hungria têm feito correr muita tinta pela Europa fora e muito nervosismo entre as instituições comunitárias. O caso merece ser estudado com atenção, sem demagogias apressadas nem condescendências ideológicas. Mas quase que me ri ao ver uma reportagem num Público de há dias, em que o ex-primeiro ministro húngaro, Ferenc Gyurcsany, afirmava que era preciso "uma oposição forte e credível" na Hungria. Para quem não se lembrar, Gyurcsany, que governou o país entre 2004 e 2009, era um José Sócrates húngaro, para pior. Liderou o movimento juvenil do Partido dos Trabalhadores Húngaros (que dominou a Hungria comunista até 1989), e depois da revolução que libertou o país trabalhou e dirigiu várias empresas financeiras, tornando-se num dos homens mais ricos da Hungria. Depois voltou à política e liderou o Partido Socialista Húngaro (MSZP), onde pontificavam muitos outros "reciclados" dos tempos do comunismo, e o governo. O estado calamitoso das finanças húngaras obrigou-o a adoptar medidas de austeridade e pedir ajuda ao FMI. Mas o grande pomo da discórdia aconteceu em 2006, quando foram divulgadas gravações em que Gyurcsany afirmava que para ganhar as eleições legislativas realizadas pouco tempo antes tinha "mentido dia e noite", ao longo dos anos anteriores, sobre a real situação do país. As declarações eram reais e provocaram motins e manifestações violentas por toda a Hungria, exigindo a sua demissão, que só veio a acontecer três anos depois. Como se vê, a credibilidade de Gyurcsany é nula.
Mas o ambiente no país não é o mais saudável, embora esteja algo empolado por alguma comunicação social da Europa ocidental. O Fidesz, partido de direita conservadora (outrora liberal, mas que ocupou o lugar do vegetativo Fórum Democrático Húngaro, um pouco como em Espanha aconteceu com o PP e a UCD) que conquistou uma robusta maioria absoluta em 2010, aproveitando o descrédito dos socialistas, tem feito uma série de alterações constitucionais que colocam em causa a independência da justiça, desde logo quando atribuem poderes ao procurador-geral para decidir em que tribunais é que os casos podem ser julgados, e pretendem tornar o sistema em parlamentarismo puro, quando as reformas dos círculos eleitorais tendem a favorecer no futuro o Fidesz. Aparentemente, ao primeiro-ministro e líder do partido, Viktor Orban, tido como populista (mas não um déspota), o poder da robusta maioria do FIDESZ subiu-lhe à cabeça. Isso e o desejo de varrer todos os legados do regime comunista, pelo que não hesitou em acusar os socialistas de serem culpados dos crimes do anterior regime - também aqui há alguns pontos em comum com Espanha. Se muitos dos actuais membros do MSZP estiveram realmente nos organizações juvenis do partido único, já é mais duvidoso implicá-los em crimes, quando eram tão novos, e para mais tendo sido a Hungria um dos países do Pacto de Varsóvia que mais cedo começou a abrir-se.
Mais inquietantes serão algumas ideias próximas do irredentismo húngaro, já que se pretende atribuir o voto às minorias húngaras que há muito vivem na Eslováquia, Roménia e Sérvia, e o crescimento do Jobbik. Este movimento, que há meia dúzia de anos nem tinha representação parlamentar, ficou em terceiro lugar nas eleições de 2010, com cerca de 15% dos votos. Nacionalista, anti-semita e irredentista, é claramente herdeiro do movimento fascista dos anos trinta e quarenta, a Cruz em Seta, que se aliou à Alemanha nazi, e até teve a sua própria milícia fardada. As ideias de Orban, evidentemente, são de natureza bastante diferente, mas se se pode estabelecer um paralelo entre o Jobbik e a Cruz em Seta, também a comparação entre o primeiro-ministro e o Almirante Horthy, esse "regente sem reino" que esteve à frente dos destinos do país durante vinte anos, não será de todo descabida.
A Hungria é um país de pequenos proprietários, de guerreiros e de aristocratas, mas é também um país de protestantes, no seu sentido político. Recordem-se a revolução de 1848, contra a Áustria, que daria origem à monarquia dual, a de 1956, contra o regime comunista, esmagada pelos tanques soviéticos, e o movimento mais pacífico que acabou com esse mesmo regime, em 1989. Recentemente, tivemos os referidos protestos violentos contra Gyurcsani, em 2006, e há dias, quando Orban celebrava a nova constituição na ópera de Budapeste, milhares de manifestantes (entre os quais o próprio Gyurcsani) protestavam contra a nova lei fundamental.
Em Portugal, críticas recentes sobre o executivo a propósito das nomeações de cargos para a EDP e a Águas de Portugal confirmaram que não há governo imune aos jobs for the boys das respectivas cores, ou não fossem os aparelhos partidários a eleger os seus líderes. Temos agora nova polémica sobre a não renovação do programa de Pedro Rosa Mendes na Antena 1 depois das críticas às relações de quase subserviência do governo Português para com o angolano, o que recorda os casos do governo Sócrates no que toca à comunicação social (e antes o de Santana Lopes).
Seja qual for o governo ou regime húngaro no poder, não está isento de protestos públicos, por acusações de autoritarismo ou de mentiras. Em Portugal, os governos também mudam, mas certas tentações e determinadas relações, que implicam sempre uma ligeira genuflexão, essas, nunca passam.
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