2024 começou como 2023 tinha terminado: frio, húmido e com numerosas mortes. Para além de algumas não públicas, mas nem assim menos dolorosas, registaram-se vários desaparecimentos entre o fim do ano que passou e o início deste.
Mesmo a terminar, e no mesmo dia, morreram Odete Santos, a inesquecível deputada do PCP pelas suas tiradas e porque seguiu uma carreira teatral (recordo-me de numa entrevista ter dito que os seus autores favoritos eram norte-americanos, acrescentando "eu gosto da cultura, não gosto é de quem lá manda"), Wolfgang Schäuble, o austero ministro das finanças alemão, talvez pelo atentado que o obrigou a mover-se numa cadeira de rodas para o resto da vida; e, sobretudo, Jacques Delors, o maior construtor europeu das últimas décadas, Presidente da Comissão entre 1985 e 1995, precisamente quando Portugal entrou na CEE (e a ele também o deve) e o verdadeiro fundador da UE e do Euro e de coisas hoje em dia normais, como o programa Erasmus. No fim do mandato europeu teve oportunidade de se tornar presidente de França, sucedendo a Mitterand, quando todas as sondagens lhe atribuíam a vitória, mas declinou numa entrevista em directo, abrindo caminho a outro Jacques, Chirac. Socialista católico, coisa pouco usual na França actual, teve direito a uma homenagem nacional, nos Invalides, à qual não faltou Marcelo Rebelo de Sousa.
Já em 2024 desapareceram, com 3 dias de diferença, Mário Lobo Zagallo e o Kaiser Franz Beckembauer. Eram dois dos três únicos homens que tinham sido campeões do Mundo de futebol por seleções tanto como jogadores como treinadores. o outro é Didiers Deschamps, que se queda assim como única pessoa viva com tal estatuto.
E no início desta semana, fui surpreendido pela notícia da morte de Arnaldo Trindade. tinha 89 anos e era bisavô, mas era daquelas pessoas que achava que viveria até aos cem. Tinha uma carreira de mais de sessenta anos que começou como normal empresário do negócio de família, uma loja de electrodomésticos no centro do Porto, mas quis ir mais além. Criou a editora Orfeu, gravando os autores declamando as suas próprias obras. Com alguns, como Miguel Torga, cujo desagrado em ler-se em voz alta era conhecido, teve enormes dificuldades, mas lá conseguiu. Seria ele a lançar e a editar os futuros músicos de intervenção, com Zeca Afonso à cabeça, seguindo-se Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Sérgio Godinho ou Jorge Palma. Com engenho e a aura de respeitável comerciante do Porto, recusando músicas demasiado "panfletárias", conseguia ludibriar a PIDE e a Censura. Projectou muitos outros músicos emergentes e de estilos diferentes, como José Cid (que escreveu algumas das suas mais conhecidas letras na sua casa), ou o Conjunto António Mafra, e quando Zeca lhe pediu um bom tocador de concertina para um disco de música popular, apresentou-lhe um jovem Quim Barreiros. Cantigas de intervenção, rock progressivo, música popular: Arnaldo Trindade lançou vários estilos que ficaram para a história musical portuguesa do Século XX.
A Orfeu, como editora, acabou nos anos oitenta, mas Arnaldo Trindade manteve o projecto que reúne a sua discografia. Dedicou-se ele próprio à poesia, tinha editado alguns livros de poesia e todos os dias escrevia um poema que publicava na sua página de Facebook. Era um conversador nato e uma prodigiosa memória da vida cultural portuense e portuguesa das últimas sete décadas, ele que estivera no centro de alguns dos projectos mais arrojados. Não deixava de recordar a viva impressão que tinha tido ao visitar pela primeira vez os Estados Unidos, antes dos vinte anos, para onde viajou de navio e que lhe pareceram tão diferente e tão mais grandioso e avançado do que o Portugal dos anos 50. Ouvi-o em encontros passados referir isso e muito mais (algumas coisas podem ser comprovadas aqui) e testemunhei a sua forma serena e nada histriónica de declamar poesia. Era convidado frequente de lançamentos, programas de televisão ou rádio e entrevistas. Julgava sinceramente que ainda o veríamos por uns bons anos e que voltaria a encontrá-lo. Nada é eterno, e mesmo aqueles que parece que vão estar aqui permanente e intemporalmente acabam por ir.
Fonte: TSF