A miséria do STJ - II
A outra decisão aberrante do Supremo reporta-se a um caso de acidente de automóvel, em que uma mulher de vinte anos, passageira do veículo, grávida de nove meses, perdeu o filho. O STJ negou a indemnização à mãe porque "No caso dos autos é impossível reconhecer ao filho da autora um direito à vida susceptível de ser indemnizado, uma vez que faleceu ainda antes de adquirir a qualidade de pessoa jurídica, não podendo, assim, ser titular de qualquer direito". Os doutos juízes, claro está, acharam que não estava ali uma pessoa (nem uma "víscera da sua mãe") mas uma criatura híbrida, sem direitos nem protecção alguma. Um mero objecto, portanto, fundado no Artigo 66º do Código Civil que estipula que a personalidade jurídica só se adquire "no nascimento completo e com vida". Acontece que a interpretação que fizeram é falsa ou apressada, uma vez que os nascituros têm alguns direitos, como por exemplo, os sucessórios.
Felizmente que algum bom senso permaneceu num dos magistrados, que votou vencido porque "A vida que se perdeu foi a de um ser do sexo masculino, no termo da sua gestação, já totalmente formado e saudável, prestes a deixar o ventre materno " (...) "Se, por força da gravidade das lesões, o concebido morre no ventre materno, não há lugar a indemnização; se, por lesões menos graves, resiste à morte e vem a nascer com vida, morrendo uma hora depois, já haverá lugar a indemnização – só por puro preconceito se pode justificar esta diferença de tratamento".
Conciso e directo, esta declaração mata por si só a imbecil decisão do colectivo. Decisão essa que além de revoltante, insensível e insultuosa, caso faça jurisprudência, terá efeitos aberrantes: é que permite que se possa abortar até ao nascimento da criança. Eis até onde foram as insensatas decisões do STJ: a possibilidade da prática do infanticídio apenas porque a criança ainda não saiu do ventre da mãe. A aberração de não perceber que se trata de alguém com vida, de um ser humano em toda a sua completude e personalidade única e irrepetível, é particularmente grave vinda daqueles que tinham a obrigação de aplicar a justiça de forma irrepreensível, tanto quanto possível.
Além do mais, acrescentaram esta pequena pérola: "numa sociedade pluralista, multicultural e constitucionalmente agnóstica", só esta tese pode prevalecer.
Em tal sociedade, sem princípios nem valores que não os convenientes, talvez. Será isso que significa o "pluralismo", assim incluído? Todos têm direito à sua opinião mas a lei pratica a neutralidade moral, guiando-se por formalidades sem procurar o seu sentido nem vincular-se a princípios naturais ou civilizacionais? E o "multicultural"? Mais consequências da mesma neutralidade, em que cada um fica na sua "cultura própria", podendo um mórmon casar-se com várias mulheres, um muçulmano matar a sua filha caso esta seja violada, um papua praticar livremente a pedofilia, etc. E uma criança morrer sem ver reconhecidos quaisquer direitos.
Por fim, a grande mentira, a sociedade "constitucionalmente agnóstica". A sociedade portuguesa, nunca é demais repetir, é esmagadoramente católica desde a fundação da nacionalidade. Faz parte dela, é um traço integrante, por muitos pruridos que isso cause às "minorias". A actual CRP não consagra o "estado agnóstico", no que seria a adopção de uma posição face às religiões, mas a separação face à Igreja - nomeadamente a católica - e a garantia da liberdade religiosa e da não discriminação. Ou seja, o estado é laico, não laicista. Nem poderia ser de outra forma, e aliás, nem mesmo a Constituição de 1911 defendia (formalmente) tal figura. Ora os juízes do STJ provavelmente estariam a pensar na Albânia pré-1990 ao referir-se à sociedade" constitucionalmente agnóstica". Nem a Constituição nem a sociedade são agnósticas, e se a primeira o fosse estaria a violar a liberdade religiosa, uma vez que se afirmaria que "a Constituição de República Portuguesa estabelece que é impossível à sociedade portuguesa provar a existência de Deus, dado que esta não tem provas que permitam aferir da sua existência ou não.” Curioso, como depois de defenderem a neutralidade moral do estado, os doutos magistrados fazem precisamente o contrário face às religiões.
Tanto esta decisão como a do post anterior nos mostram um conjunto de magistrados que, do alto da sua inamovilidade,"independência" face aos restantes poderes e imunidades várias, protegidos pelo seu corporativismo espesso, se esquecem da aplicação da justiça e da sensatez que a deve acompanhar. Os cidadãos procuram os tribunais e confiam nesta derradeira e mais elevada instância para defender os seus direitos, sejam eles materiais ou não. Ao negá-los, a justiça perde a sua utilidade. Estas duas decisões mostram como a cúpula da magistratura perdeu a sua orientação, deslumbrada pelo seu estatuto, ou simplesmente todos os princípios de uma sociedade decente, de que deveriam ser os guardiões. Quando se relativiza a violação de uma criança às mãos de alguém mais forte, ou se nega quaisquer direitos a um ser humano totalmente formado, esses princípios foram definitivamente deixados para trás. O que provoca medo. Afinal, a nossa justiça, individual e colectiva, está entregue, em último caso, aos humores e devaneios das misérias deste STJ.
6 comentários:
Nao sei qual é o problema... não estamos num país onde as crianças perderam o direito à vida...
desculpa a provocação... mas nao resisto em mandar-te esta farpa:)
Abraço
Como digo no texto, a jurisprudência deste Acordão pode até pôr em causa esse direito. Se não se reconhece valor a uma pessoa com nove meses, poder-se-à falar de direito à vida em casos como este?
Caro senhor, vejo que tem alguns conhecimentos de leis, mas noto que lhe falta o poder de sintese... desculpe-me o reparo, mas é muito extenso. de futuro podia colocar um resumo no fim.
Só uma coisa salvará Portugal da perversão e dos pervertidos: a dinamite!
Excelente texto. Parabens.
É bom ver um texto destes na blogosfera…
1abraço amigo, Kiko Fonseca
CADA VEZ APRECIO MAIS OS SEUS TEÉÉSTOS.
Melhores CUmprimentos
Postar um comentário