Pare, Escute, Olhe
O cinema documental português está de boa saúde e recomenda-se. Depois de Ruínas chegou agora às salas Pare, Escute, Olhe, de Jorge Pelicano, que realizou anteriormente outra-longa metragem, Ainda Há Pastores, entre as serranias e as ovelhas da Serra da Estrela. Mas enquanto Ruínas era estático, este tem uma dinâmica muito própria. O filme, que ganhou o prémio de melhor documentário em longa metragem no DocLisboa de 2009, volta ao interior profundo, desta vez para revelar a morte lenta da Linha do Tua, desde o fecho do troço entre Mirandela e Bragança, em 1990, as atribulações e desesperos da população e as vacuidades do discurso político e das suas promessas.
Faz-se uma cronologia desde os anos oitenta, em que o problema do fecho da linha se colocou, vê-se o habitual ardil das "suspensões nocturnas" sem aviso, ao ponto de se roubar as locomotivas. Passa-se em revista as promessas de desenvolvimento com barragens, os diálogos entre governantes e altos quadros de empresas públicas, discutindo betão, as contradições, a incúria e as tragédias ferroviárias, quando não as havia antes, os estratagemas para se diminuir o número de utentes do comboio, servindo assim de pretexto ao seu encerramento, a submissão dos representantes eleitos que se submetem aos interesses partidários em lugar de defender os locais.
Pelo meio, o testemunho de um rio, de uma paisagem única, a junção de um património humano e natural únicos, ameaçados pela albufeira de uma barragem que não dará nem empregos nem desenvolvimento à região. E vê-se um povo entre o conformismo e a revolta. Nas conversas de café (como no surreal Lucky Luck), nas viagens na automotora, ou nas reuniões com os seus representantes, o trasmontano está lá bem plasmado: rude, directo, frontal, com alguma comicidade à mistura. Personagem transversal ao filme é o Sr. Abílio, antigo funcionário da CP, que goza os dias de velhice à sombra do apeadeiro de Ribeirinha, testemunha do caminho de ferro, do rio e do que se passa pela linha fora, não se fazendo de rogado a dizer o que pensa, por gestos ou palavras.
Também a fotografia e os cenários naturais são magníficos, e há algumas cenas de antologia, como o discurso de Sócrates, falando no "desenvolvimento", quando atrás da sua imagem desfocada e rebaixada se vêm as escavadoras em movimento. contrapondo ao progresso do betão, usa-se mesmo a arma preferida dos seus apologistas: mostra-se o que se passa "lá fora", nos "países civilizados", em que o comboio é usado como meio de transporte e turístico, e faz-se a terrível comparação com o que se passa no Tua. O contraste é coisa para deixar todos os portugueses corados de vergonha.
As minhas expectativas antes de ver Pare, Escute, Olhe eram razoáveis, mas fiquei agradavelmente surpreendido com esta obra melancólica, séria e irónica, tudo ao mesmo tempo. Além de ser um autêntico serviço público e de mostrar mais uma vez a tendência dos portugueses para abandonarem o que é seu em detrimento do que é "novo". Ainda está em exibição. É bom que o apanhem. Mais difícil será apanhar um comboio da linha do Tua. Mas quem sabe...
4 comentários:
Caro João Pedro Pimenta...
Como não poderia deixar de ser, um acérrimo defensor do "ferroviário"...
Sendo o comboio o meio de transporte de eleição para grandes volumes de passageiros, não se justifica que subsistam linhas onde este serve para apenas transportar 2 ou 3 passageiros em cada horário, especialmente se tivermos em conta os seus astronomicamente elevados custos de funcionamento quando comparado com outros meios de tranporte público, que fariam um serviço tão bom ou melhor.
"Nós", os autarcas, as populações locais e os iluminati de esquerda com um je ne sais quoi de deslumbramento com o exótico rural, "Nós" queremos a linha de comboio. Não anda lá ninguém, todos os "Nós" temos o nosso carrinho (Mercedes, Opeis Corsa e Toyotas Prius, respectivamente), mas como é a CP que paga a festa, ou seja o "Zé Contribuinte", então que continue, nem que seja para se ir lá dar uma voltinha num qualquer domingo ensolarado de primavera. Sempre dá para dar "duas de letra" com os "srs Abílios" deste país, essas personagens "rudes e cómicas", tão engraçadas, assim como quem vai ver macaquinhos ao jardim zoológico.
Depois há os "Eles", os broncos do betão, que querem barragens (talvez o investimento público que mais retorno dá ao país), "Eles" que estão sempre com as suas "perspectivas economicistas"...
É bom saber que esse magnífico serviço público, desprezado por "Eles", valorizado por "Nós", só através da CP / REFER e das suas linhas do Tua representa um défice anual de 250 milhões de euros, isto é, à volta de 1 milhão de contos / semana na moeda antiga.
Portanto, caro João Pedro, de hoje a oito dias, quando for tomar o seu cafézinho depois do almoço, convido-o a pensar, "mais 1 semana, mais 1 milhão de contos, ainda bem que Portugal é um país rico e se pode dar a estes luxos"... Só espero é que depois o café lhe saiba bem, que não seja daqueles muito amargos...
Meu caro, aconselho-te a ver o filme e a tirar as respectivas conclusões. Está lá tudo, inclusve a razão de não andar tanta gente no comboio ( não são só "duas ou três pessoas"): houve alterações nos horários que fazem com que a ligação entre duas linhas seja de horas, ou partidas em alturas sem o menor nexo.
Já o "zé contribuinte" também existe em Trás-os-Montes, e é aquele que paga impostos em troco de lhe cortarem as vias de comunicação e de o obrigarem a saír de casa porque tem de se fazer uma barragem que muito dará a ganhar às construtoras civis e porque a EDP assim o determinou, que o litoral está morto por gastar mais energia. Mas claro, pensar na população do interior é um luxo"; ao contrário, construir dez barragens, num país endividado, quando se podia perfeitamente fazer um aproveitamento mais eficaz da energia e aumentar a potência das barragens já existentes é que é uma prioridade. A propósito, que desenvolvimento trouxeram as barragens já existentes no Norte de Portugal às respectivas regiões?
Sim, eu peso nisso muitas vezes, e quanto mais penso mais me indigno.
Caro João Pedro,
A diminuição da população residente, em simultâneo com um significativo aumento da taxa de motorização tida nas últimas décadas, são uma combinação fatal para todas as "linhas do Tua" existentes no país.
Tornam o comboio um meio de transporte obsoleto e mastodontico, que só a lógica do "poço sem fundo" das contas de empresas tipo CP permite sustentar. Tem prejuízo todos os anos? Pensar que os milhões desbaratados podiam ser utilizados em algo produtivo e gerador de riqueza? Nã, isto aqui aplica-se a velha máxima, "quem comeu, comeu, quem não comeu, comesse!".
É claro que para complementar a coisa à boa maneira Portuguesa, arranja-se alguém para mandar as culpas... É os "interesses do loby das barragens", é os "horários", pouco importa. O que interessa é ter alguma coisa, de preferência algo "obscuro" e / ou "do grande capital", para justificar o injustificável...
Quanto às barragens, reservas de água, geração de electricidade limpa, diminuição de importação e dependência do petróleo... Tudo isto gratuitamente, é só chover... Será que basta? Ou é melhor continuar a apostar nos comboinhos a passear moscas?
Os "comboizinhos" têm mais moscas do que o que parece. Quanto às barragens, são uma inutilidade que só beneficiam os seus construtores. Parece simplista? Não é. Não há aqui nenhma desculpa. Os horários das linhas como o Tua são alterados para sevir de pretexo ao seu fecho, e isto não é ficção. Também não percebo o argumento ecológico a favor das barragens, quando o comboio é um meio bem mais limpo de transporte. As pessoas que se servem dele, na maior parte dos casos, não têm carro nem outra medida de transporte, e por vezes nem estradas. Ficam completamente isoladas.
E ainda sobre as barragens, convém lembrar que a sua construção traz danos irreversíveis no terreno. É por causa destes elefantes brancos, que não trazem emprego, "desenvolvimento" ou o que quer que seja, que o interior se despovoa inexoravelmente, o património desaparece e a agricultura é destruída. Bravo! Mais valia assumir por parte dos sucessivos governos e empresas públicas que essa gente não tem a menor importância, e que só não é metida à força em subúrbios ou campos de "Reeducação" porque não cai bem. No fundo, não é sequer um Portugal de segunda: é uma terra para ninguém. Ceausescu não fazia coisas muito diferenes quando estava à frente da Roménia.
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