Estranhos tempos, estes, e estranho continente, aquele em que habitamos. Vemos chegar o presidente de um estado que não permite a liberdade de expressão, de manifestação, que reprime as religiões e que comete um genocídio cultural sobre o Tibete (para não falar das atrocidades cometidas contra o seu povo por via armada). Quase ninguém se manifesta, e mesmo esses, aliás pacíficos, são afastados para a margem da margem.
No mesmo dia, um Papa é recebido em Barcelona com insultos, provocações e cartazes de protesto. Os opositores estão longe de ser uma multidão, mas os diversos órgãos de comunicação social dão mais ênfase a isso do que aos muitos mais que o acolhem. A viagem papal tinha o duplo objectivo de visitar Santiago de Compostela em ano de Xacobeo e de consagrar a Catedral da Sagrada Família como Basílica. A obra-prima de Gáudi, eternamente incompleta, é já o símbolo máximo da cidade condal, mas nem sempre os seus habitantes a respeitaram ou preservaram. Os anarquistas já foram a maioria em Barcelona, em alturas da guerra civil, por isso o seu anti-clericalismo já vem de longe. Os manifestantes que vimos nas imagens são descendentes da miscelânea de anarquistas, comunistas, trotsquistas, socialistas e demais republicanos que se juntaram um pouco contra natura para combater os nacionalistas de Franco (e entretanto, para se combater entre si). Coragem teve o Papa em passar entre fileiras de gente que o odiava, de um lado, e que o aclamava, do outro - uma boa metáfora da Espanha actual. A Sagrada Família (porventura a única verdadeira razão que me levaria àquela cidade) e mestre Gaudi mereciam-no, e a mensagem cristã, para ser espalhada, também exige coragem. Mas é espantoso como muitos vêem o Papa como uma real ameaça física, como se os Estados Pontifícios ainda existissem e tivessem a prerrogativa de organizar Cruzadas, a não ser que o vejam como uma ameaça no campo das ideias e de influência moral, e aí já lhes mais razão. Mas a prova do limitado poder terreno do Sumo Pontífice é exactamente o exibicionismo dos seus contestatários e os órgãos de comunicação social, mostrando-os até à medula, levados pelos airs du temps. Caso contrário, nem se atreviam a mostrar o nariz num raio de dez quilómetros. Como aconteceu com Hu Jintao, cujo regime foi olimpicamente ignorado por quase todos por mero temor reverencial e económico e em troca de alguns yuans. Com esses os "corajosos" apupadores do Vaticano não tugem nem mugem.
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