Sic transit gloria urbi
Agora são Samora Correia, Borba e a Senhora da Hora que querem ser cidades. A vila ribatejana até pode ser populosa, ali em plena lezíria, com a já suburbana Vila Franca por perto, mas a alentejana tem pouco carácter citadino. Sobre a freguesia dominada pelo NorteShopping, não compreendo como é que tendo o Porto e Matosinhos à frente e do outro lado da estrada precisará de ser cidade. Sempre vi a Senhora da Hora como pacato subúrbio residencial, atravessado pelo comboio (agora metro), jamais como uma urbe em si.
Esta moda de ser tudo cidade pegou de há vinte anos para cá, como se pode verificar. Se até ao fim da Idade Média só um determinado grupo de burgos era cidade (mais concretamente, as dioceses), o seu conceito começou a alargar-se a partir do momento em que Bragança, importante referência defensiva no Nordeste e pertença da Casa com o mesmo nome, adquiriu esse estatuto. Depois vieram as algarvias Tavira, Lagos e Faro, que substituiu Silves como centro de diocese, as açorianas, o Funchal, e entre os Sécs. XVI e XVII surgiram mais algumas dioceses e respectivas cidades, normalmente por razões estratégicas ou políticas, tais como Miranda, Pinhel, Elvas ou Penafiel. Nos anos de oitocentos, algumas atingem dimensão para se elevarem a essa categoria, como Santarém, Guimarães, Tomar ou Setúbal. Com a República vêm mais algumas (Vila Real foi a última capital de distrito a tornar-se cidade, apenas em 1925!), mas o Estado Novo mostrou-se mais avaro e só Almada, Póvoa de Varzim e Espinho é que lá chegaram, e só nos anos setenta. A 3ª República começou por ser prudente, mas em meados dos anos 80 surgiu nova fornada de cidades, mais no interior. Nos anos 90 e 2000, perdeu-se todo e qualquer sentido de urbe, mesmo que a Lei só permita, salvo condições especiais, que as cidades necessitem no mínimo de 8000 habitantes e de um conjunto de equipamentos equivalente. Mas por razões que me escapam ou por qualquer excepção, vilas houve que foram elevadas a cidade sem se perceber porquê. Tarouca, por exemplo, construiu uns prédios, uns arruamentos e alcançou assim o mesmo estatuto que a sua vizinha, a antiquíssima e nobilíssima Lamego, na sombra da qual esteve durante séculos. Na Beira vamos ainda encontrar Meda, Sabugal, Santa Comba, etc: tudo cidades, mesmo que algumas nem no concelho inteiro comportem habitantes suficientes para um burgo minimamente aceitável. Temos além disso cidades no Algarve que muito me espantam (Quarteira, e Lagoa), ou na Madeira, em que até um sítio de que nunca tinha ouvido falar, chamado Caniço, foi elevado a cidade! À febre também não escaparam as pacatas Porto Santo e Santana, que com aquelas casinhas engraçadas lembra antes uma aldeia de conto de fadas.
Aveiro também é pródiga, e só Santa Maria da Feira tem 3 para amostra: além da própria Feira, há ainda Lourosa e Fiães. Na Bairrada, está feito o pleno, com Anadia, Mealhada e Oliveira do Bairro, e a Gafanha da Nazaré é uma imensa cidade-bairro de pescadores e marnotos.
O distrito do Porto, então, bate tudo: concelhos que não são cidade temos apenas Lousada e Baião, Deus assim as conserve. Há depois uma infinidade de freguesias-cidade, como Lixa ou Freamunde. O exemplo mais burlesco vem do concelho de Paredes (também cidade, claro está): quando quiseram elevar Lordelo à categoria superior, Rebordosa e Gandra, de tamanho semelhante, também quiseram. Salomonicamente, ficaram as três com a graça urbana. A Gandra, aliás, ganhou população depois da instalação de um pólo de faculdade de medicina dentária. Alguns estudantes começaram a ficar por ali, construíram-se casas, depois prédios para a população, vieram alguns bares para animar a estudantada, e agora bem se pode considerar um "cidade universitária". Pitoresco. Será que têm tradições académicas próprias?
Fora os casos em que pela dimensão e importância social o mereceriam, tudo isto revela um imenso sentimento de provincianismo: querer ser cidade a todo o custo mostra uma ansiedade em ser urbano, em dizer que se é da "cidade de tal" e "ser moderno", em distanciar-se do campo e de qualquer ligação à ruralidade. Essa ideia imbecil que "a cidade é que importante" é uma das causas da suburbanização e falta de sentido estético que hoje se vê em Portugal (e não só, sejamos justos). Além de ser perigosa: reduzir o mundo rural a quase nada, ou a uma mera atracção turística, terá consequências graves no futuro. A alimentação ainda não vem dos laboratórios. E as cidades arriscam-se a ficar sobrelotadas, não já no miolo mas nos seus arredores, e a tornar-se de novo centros infectos de doenças e epidemias várias.
Tivesse eu poder sobre estas categorias e umas cinquenta cidades passavam a ser vilas. Aliás, nem acho que freguesia alguma devesse ser cidade. A distinção entre esta, a vila e a aldeia deve estar correctamente feita, sem que isso represente qualquer sentimento de inferioridade para as duas últimas categorias. Que olhem para os exemplos de Ponte de Lima, Cascais e Oeiras: à questão de saber se queriam ser cidades, puxaram dos galardões e recusaram liminarmente. Bem hajam!
3 comentários:
O melhor é passar tudo a cidade. Acabam as vilas, as aldeias e os lugarejos e ficam todos contentes!
Exacto, tudo a cidades era a solução, simplificava a divisão administrativa.
Num país democrático, porque há-de Lisboa ser mais importante do que Orbacém? Aliás Lisboa desapareceria para surgirem as cidades de Alfama, Madragoa, Mouraria...
Logicamente que a seguir as cidades deveriam tornar-se todas concelhos.
A assembleia da republica deveria ser realojada para que a cada concelho correspondesse um deputado.
Esta situação tenderia a evoluir para a constituição de cada cidade em distrito, e estes pouco a pouco em países.
O processo recomeçaria depois dentro de cada país, rua a rua.
O espaço antigamente ocupado por Portugal tornar-se-ia assim numa federação com o maior numero de representantes por metro quadrado do planeta. Eram os sovietes.
Soluções a contento de todos, portanto. O pior seria as rivalidades do gênero "a minha cidade é melhor que a tua e portanto merece mais quilómetros de circular externa".
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