Entre as numerosas reacções da morte de Saramago, houve um pouco de tudo, desde as loas esperadas ou as comparações com Camões, até manifestações de maior azedume. A ausência de Cavaco parece-me pouco significativa. Talvez devesse lá comparecer, mas não vale a pena esbracejar, como o tentou fazer Louçã e uns quantos jornalistas, até porque na altura estava nos Açores. Chamou-me mais a atenção uma outra reacção e um contraste. O Observatore Romano comentou a morte do escritor de forma extremamente dura e amarga, referindo-se-lhe como "populista e extremista", de "ideologia anti-religiosa e marxista", sem "nenhuma admissão metafísica".
Bem sei que a relação entre o escritor e a Igreja era difícil e até hostil. Para além de alguns dos seus livros, ainda houve os constantes remoques de Saramago, como as picardias a propósito do seu último livro, ou quando disse, num acesso de primarismo, que "as religiões só serviram para dividir os homens". Nunca simpatizei particularmente com a criatura. Mas a Igreja tem como missão salvar as almas e espalhar a Boa Nova, procurar a conciliação e o perdão. Deve procurar que qualquer criatura humana atinja a salvação, mesmo que tenha tido toda uma vida contrário aos valores cristãos. Não é fazendo obituários ressentidos que dá o bom exemplo. Só consegue assim mostrar espírito vingativo e prolongar as querelas para além da morte do velho adversário. Para mais, numa altura em que o Papa tenta a reaproximação entre a Igreja e a Cultura, esta atitude atira por terra uma boa parte desse esforço, qual Sísifo ressabiado. Não é possível querer chegar aos agentes culturais atirando-se àqueles que a vituperam na hora da sua morte.
Em claro contraste com o artigo do jornal, a Igreja católica portuguesa, através do comunicado emitido pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, lamentou a morte do escritor, e muito embora recordasse as polémicas que com ele manteve, não deixou de o considerar um "grande criador da língua portuguesa e expoente da nossa cultura", aludindo ainda ao seu interesse pelo texto bíblico e a "vivacidade do debate" que daí decorreu. Não deixou que as suas amargas críticas se sobrepusessem à criação literária e à relevância artística do autor. Deu um salautar exemplo de cristinianismo - caridade, sensibilidade cultural, conciliação - que devia fazer pensar os jornalistas do Observatore Romano.
Bento XVI veio a Portugal também com o intuito de mostrar aos nossos prelados alguns exemplos de boa prática eclesial, universalidade do catolicismo e divulgação cristã, para além de discursos redondos e cerimoniazinhas sem nexo que por cá se vêem. Mas por uma vez, a Igreja portuguesa mostrou-se à altura de dar algumas lições a Roma. Que a aproveitem.
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