Uma das coisas que dá certo gozo acompanhar nas competições futebolísticas para amantes de bizantinices como eu é acompanhar o despique político, histórico ou sociológico por trás de alguns jogos de futebol. O Mundial que agora acabou não constituiu excepção. Assim, revimos alguns clássicos inter (e extra) futebolísticos, como o Alemanha-Inglaterra, o Portugal-Espanha e até a final, com uma carga histórica completamente ignorada.
Uma das maiores rivalidades entre nações do mundo da bola é a que existe entre Inglaterra e Alemanha. A febre pelo desporto coincidiu com a adversidade política e bélica, quando o Reich rivalizava com o British Empire no número de fábricas. Como se sabe, deu em tremendas guerras entre as duas potências, com a subsequente vitória britânica. Ao triunfo nos teatros de guerra, os ingleses juntaram a supremacia nos relvados. Na maioria dos casos suplantavam os germânicos, cujo desporto favorito era mesmo a ginástica. Isso durou até ao Mundial de 1966, cuja final os bretões ganharam com o polémico golo de Geoffrey Hurst. A partir daí, nos confrontos entre as duas equipas, quase só deu Alemanha, que também teve muito maior sucesso em competições internacionais, arrebatando troféus, finais e terceiros lugares. Os ingleses, apesar de continuarem a pensar que têm uma relação única com a bola e jogadores superlativos, nunca vão muito longe, e quando estão perto do fim, apanham com o velho inimigo teutónico, que até nos penaltis os vencem. Comprovam-no o Mundial de 1990 e a desolação de Gascoigne, Stuart Pearce, Southgate, e até o "hino" dos Lightning Seeds, indiscutivelmente festivo mas com um toque agridoce de melancolia da derrota. Já Lineker resumia tudo numa das mais famosas máximas do mundo da bola: "o futebol são 11 contra 11, e no fim ganha a Alemanha". Notável excepção: o Alemanha-Inglaterra de 2001, para a qualificação do Mundial 2002, partida que os ingleses venceram por impressionantes 5-1 no Estádio Olímpico de Munique, e que se tornou um troféu que doravante puderam exibir nas discussões com os alemães.
A sobranceria inglesa reside portanto no pensamento enraizado da "pátria do futebol". Não por acaso os melhores resultados recentes da Selecção deveram-se a técnicos de fora, como o mal amado (?) Eriksson. Mas agora nem com Capello a coisa correu bem. Outro dos erros comuns dos ingleses é confiarem na qualidade individual dos seus jogadores, esquecendo que um Lampard e um Gerrard não jogam necessariamente bem juntos, ou que um Rooney também pode atravessar dias maus. Se o capitão Beckham e o poste Rio Ferdinand se lesionam, a coisa tende a dar para o torto. E tendo em conta que desde o quarentão Peter Shilton não arranjam um keeper de qualidade, apesar dos esforços de David Seaman, é com naturalidade que sofrem golos. Para seu azar, o velho inimigo germânico, despojado de estrelas, mostrou a sua máxima eficácia com jogos terrivelmente colectivos. Em mais um jogo que opôs as duas equipas, aquele golo anulado num momento em que a equipa de arbitragem sofria de alucinações momentâneas poderia ter mudado os números da goleada, mas não a vitória alemã. Os jogadas extremamente rápidas e combinadas dos alemães teriam abatido a Inglaterra em qualquer ocasião. Jogo físico, sem rodriguinhos, de uma simplicidade absurdamente eficaz: eis a Mannschaft quase tradicional, no seu máximo esplendor. E escrevo "quase" porque faltou um elemento tão próprio das selecções alemãs vencedoras: o líbero. Beckenbauer, Matthaus e Sammer, comandando as respectivas gerações, mostraram como esta posição indefinida era a peça essencial para o triunfo nas competições internacionais. O último terá sido Olaf Thon, uma peça menos preciosa na nobre linhagem germânica dos líberos. Desta vez, o capitão era um defesa lateral, Lham. Por isso a Alemanha, com todo o seu bloco colectivo, não chegou ao fim.
Mas antes da queda frente à Espanha tiveram tempo de cilindrar a orgulhosa Argentina, depois da goleada à Inglaterra. Mais uma vez o jogo colectivo e mecânico não deu hipóteses às jogadas individuais da turma de Maradona, que para além do superlativo Messi tinha o melhor naipe de avançados da prova. Reeditou-se mais um clássico dos Mundiais (com o seu auge entre os anos oitenta e noventa, quando estas duas equipas dominavam o Mundo), depois dos penaltis de 2006.
Mas um clássico apesar de tudo morno se comparado com o que teria tido lugar caso por milagre de S. Jorge os ingleses tivessem eliminado a Alemanha. Entre argentinos e alemães nunca houve hostilidade mútua, fosse pela comunidade germânica no país das Pampas, pelas relações comerciais estabelecidas entre ambos os países, e pela formação militar de oficiais argentinos na Prússia antes da 1ª Guerra. E não era à toa que muitos refugiados nazis se acolheram na Argentina depois da 2ª Guerra, aproveitando as simpatias germanófilas dos seus líderes, entre os quais Juan Peron.
Já a inimizade entre argentinos e britânicos, como se sabe, incendiou-se depois da Guerra das Malvinas. O jogo da "mão de Deus" e o golo depois de não sei quantas fintas de Maradona tornou-se o ex-líbris dessa inimizade, normalmente ganha pelos sul-americanos, com excepção de 2002, em que os comandados de Beckham venceram de penalti Batistuta & Companhia, deixando ainda mais de rastos um país então em gravíssima crise económica e social, que olhava para os seus jogadores de futebol como portadores de uma redenção que não veio.
Caso se tivessem encontrado novamente, teríamos as provocações em catadupa do rubicundo Maradona a Beckham, no seu fato Savile Row versão urban-chic, sob a fleuma habitual de Capello, Terry a envolver-se com Tevez e Rooney com Demichelis, tensão entre os milhares de adeptos, expulsões em barda e golos de antologia. Em suma, um grande jogo. Pena que não tenha sido possível.
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