Agora que Cavaco Silva está a poucas horas de se reformar fazem-se os balanços da vida sob o político que mais anos dominou esta terceira república. Na maior parte dos casos bate-se no homem. Não sou cavaquista e nem nunca votei nele, até porque em parte das ocasiões nem sequer tinha idade para tal. Nunca fui grande devoto do cavaquismo, que marcou uma década em Portugal, do seu triunfalismo, do arrivismo e do novo-riquismo que espalhou, ainda por cima com a sensação de que apanhou o poder no regaço e o manteve com uma boa dose de sorte e com uma grande dívida para com o PRD e a CEE. E muito menos gostei da sua face mais ressabiada e manipuladora em Belém, que revelou uma suceptibilidade e uma incapacidade de perceber inúmeras situações que não são dignas de um chefe de estado.
Dito isto, é bom recordar que se Cavaco esteve tanto tempo em S. Bento e Belém é porque alguém o colocou nas respectivas cadeiras. Ganhar três eleições legislativas, duas delas com maioria absoluta (e com 50%), não é para todos. Junte-se a isso duas vitórias nas presidenciais à primeira volta. Nem Mário Soares, com a sua alardeada popularidade, chegou a tanto. Como disse, o PRD, em 1985, ao roubar votos ao PS, e em 1987, ao canalizá-los para a enorme maioria laranja, a entrada na Europa, com os seus dinheiros, e a política de austeridade do Bloco Central ajudaram em muito à edificação do cavaquismo. Hoje é de bom tom criticar-se aqueles tempos, as construções faraónicas, o desperdício de dinheiro, a "destruição da pesca e da agricultura", etc. O que é certo é que a partir de 1986 houve uma sensação de melhoria, de começo de prosperidade e de paz social muito bem gerida pelos governos PSD. Construiu-se muito? Verdade, mas as auto-estradas, que servem em conversas jocosas como símbolo da "betonização" desse tempo são hoje em dia essenciais na vida do país, até porque as que foram então construídas ligavam os principais pontos do país. Ou alguém imagina a fazer Porto-Lisboa na velha Nacional 1? Ou a ir às capitais de distrito do interior nas velhas estradas às curvas? Quanto à agricultura e pescas, bastava que se recusasse o dinheiro oferecido em troca do abandono dessas actividades. Ainda me lembro de aprender que os países que se dedicavam mais ao sector primário eram os mais subdesenvolvidos. Na altura, poucos foram os que protestaram. em suma, grande parte da população sentia-se bem com o cavaquismo, ainda que o criticasse. Talvez porque se reconhecesse no governo e no político de Boliqueime e até no seu modo de vida.
A esquerda nunca gostou nem um bocadinho dele, responsabilizando-o por tudo, desde as acusações de ter pertencido à PIDE (uma acusação falsa e rancorosa, embora Cavaco não tivesse ajudado com a concessão de reformas a antigos pides) até ao tal despesismo (como se a esquerda fosse poupada), ou, ultimamente, de ter feito uma presidência de apoio ao governo de Passos Coelho, não se quedando assim "abaixo dos partidos" (quando Jorge Sampaio nomeou Santana Lopes, Ferro Rodrigues demitiu-se do PS acusando-o do oposto: de não ter sido fiel ao eleitorado de esquerda). A direita, sobretudo a mais classista e particularmente a que rodeava O Independente, nunca lhe desculpou o suposto provincianismo, a vulgaridade, o desdém pelas letras e as origens sociais de muitos vultos do cavaquismo (como aliás pôde ser comprovado com maior amplitude no recente livro sobre o jornal).
Mas o que é incrível é que apesar de tanta oposição, tanto achincalhamento e tanto desprezo (temperados por muitos "adesivos" e apoiantes oportunistas, em especial autarcas de outros partidos e artistas), e muitos o terem dado como acabado politicamente quando perdeu as presidenciais de 1996 para Sampaio, Cavaco Silva acabou por ser o político com mais sucesso do actual regime. Talvez não tenha sido directamente o sucesso de um país, mas resultou directamente de uma vontade popular que se reviu em Cavaco e no que ele representava. Bom ou mão, Cavaco é um produto do Portugal democrático. Reforma-se amanhã, finalmente. Os estudiosos vindouros aclararão o que realmente constitui o cavaquismo mais nas décadas que se lhe seguiram do que nos anos em que dominou o país.