domingo, outubro 12, 2008

Toponímia republicana



Dizem as regras da toponímia que se devem conservar os nomes tradicionais dos arruamentos, mormente se consagram uma recordação importante, como a do nome do local que existia nesse espaço numa época passada. Não se deve mudar em prol de um acontecimento ou figura de existência recente, excepto se já houver outra artéria ao lado com o mesmo nome, uma travessa ou um beco, por exemplo.
Essas regras nem sempre foram seguidas em Portugal, como se sabe. Normalmente eram quebradas pelos vários regimes políticos que se quiseram perpetuar no tempo e na memória. Caso exemplificativo é o do amplo terreiro à frente do Mosteiro de Alcobaça, que se chamou Praça Oliveira Salazar no Estado Novo e se chama hoje Praça 25 de Abril. Antes disso, era simplesmente o Rossio. Aliás, o mais conhecido espaço com esse nome, em Lisboa, também mudou oficialmente nos anos setenta, passando a constar das missivas e mapas urbanos como Praça D. Pedro IV. Por sua vez, o Rei-Soldado, que dava nome à antiga Praça Nova do Porto, o largo central da cidade oitocentista, perdeu o nome para Praça da Liberdade, sendo que temos hoje o absurdo de não haver na cidade qualquer artéria com o nome de D. Pedro IV, que até deixou o seu coração na Igreja da Lapa, em agradecimento à cidade que o acolheu durante as Guerras Liberais.



No processo de modificação do nome das ruas, nenhum regime se mostrou tão activo como a 1ª República. Por toda a parte os nomes foram alterados ao saber dos novos donos do país, e velhas ruas e praças das principais localidades viram-se renomeadas com nomes outubristas. Surgiram assim as novas artérias da república, de cinco de Outubro, ou dos "heróis" e propagandistas republicanos. Quem se passear por Lisboa, sobretudo nas Avenidas Novas, encontrará fatalmente os habituais Elias Garcia, João Crisóstomo, António José de Almeida, etc. E isso também explica a razão de praças centenárias, como a de Viana do Castelo, terem ganho "República" no nome. Mas a maior marca do processo de lavagem foram os milhares de "Cândido dos Reis" e "Miguel Bombarda" que nasceram como cogumelos. Duas figuras que, tendo morrido nas vésperas de cinco de Outubro, um porque se matou, outro porque um doente do manicómio que dirigia o assassinou, foram guindados a "mártires" e serviram para dar nome de ruas e avenidas. Não há concelho no país que não tenha uma destas figuras, cuja importância na história portuguesa é residual e datada, a decorar o letreiro da rua. Em compensação, muitas figuras maiores estarão com certeza ausentes da toponímia local. É difícil explicar a quem não sabe porque razão é que os dois sobrevalorizados activistas ocupam espaços tão relevantes - muitas vezes os largos principais de algumas localidades - tendo uma relevância tão pequena. Quantos Padres António Vieira ou D. Diniz, por exemplo, haverá na mesma proporção?
Essa ocupação hiperbólica da República demonstra não somente o carácter quase "santificado" dessa empresa como também uma certa insegurança ao nível da sua própria justificação, o que obrigou a que o regime, quando tomou o poder, tivesse de fazer uma gigantesca lavagem histórica e toponímica para impor os novos "heróis". Sendo "mártires", os dois finados seriam como que os novos "santos" republicanos a que urgia prestar respeito, e que por isso tinham os seus nomes em locais visíveis ao cidadão comum. Assim encontrou a 1ª República uma forma duvidosa de marcar o seu domínio, refazendo a história portuguesa e instaurando novas personalidades, de forma a criar uma sociedade radicalmente diferente, à sua imagem. Assim também a alteração de alguns símbolos, como a bandeira, ou a introdução da figura feminina meia desnudada.
Não houve, como se disse no início, regime algum que não tivesse a tentação de marcar a sua própria toponímia. Mas a República, como em tudo o resto, mostrou-se radical e caiu no ridículo de consagrar duas figuras que as pessoas, hoje em dia, não reconhecem ou ouviram falar vagamente. Lembro-me de uma entrevista de Miguel Esteves Cardoso a Francisco Louçã, em que os dois confessavam não saber quem era o Almirante Reis que dá o nome à avenida lisboeta. Não sei se não sabiam mesmo ou se não lhes ocorreu, mas o certo é que deu uma amostra da pouca importância de dois vultos usados para que um regime que não tinha o apoio da maioria do povo se impusesse de forma mais dominadora.

Nenhum comentário: