domingo, junho 05, 2011

Alcântara e o regresso de um símbolo

 
Quando há uns anos me mudei para Lisboa (mudança essa retrocedida pelo regresso ao Porto), imediatamente iniciei o processo de reconhecimento da cidade onde ia ficar indefinidamente. Vivi em várias zonas, de Telheiras a Arroios, e pelo meio com um desvio para a Linha. Mas à parte as deambulações iniciais, a zona de Lisboa que mais me marcou nos primeiros tempos foi Alcântara, por trabalhar aí e por viver nas proximidades, na Infante Santo. A descida das Necessidades, de cujo jardim se avistava toda a zona, através da estreita rampa até ao largo da Armada, era um prenúncio da zona com eixos viários mais ou menos amplos, irrigados por vielas e becos de onde saíam gatos ou marinheiros para tomar um dos inúmeros bagaços do dia. Não faltavam aí restaurantes, desde snacks e tascos modestos até grandes marisqueiras, de letreiros bem visíveis. Havia casas degradadas, baldios decrépitos, esperando a eternamente adiada intervenção de Siza, e ruelas de idade respeitável, como a Travessa da Trabuqueta, que, a crer nas primeiras páginas de A Cidade e as Serras, existia já em tempos de D. João VI e constituía um perigo para os Jacintos da época.
 


Alcântara está dividida pela Avenida de Ceuta e pelo movimentado cruzamento entre essa parte que acompanha o eixo da Prior do Crato e a que se estende à volta do Largo do Calvário. A homenagem toponímica nessa zona ao pretendente ao trono é de fácil explicação: precisamente nesse local, as forças mal armadas e treinadas que apoiavam D. António, comandadas pelo refugo do refugo de Alcácer Quibir, enfrentaram aí os poderosos Tercios do temível Duque de Alba, e claro está, foram obviamente desbaratadas, permitindo a entrada dos castelhanos na capital e a consequente subida de Filipe II ao trono português. Na altura, havia uma ponte que atravessava a ribeira de Alcântara, que separava Monsanto da cidade, e assim permaneceu até ao Século XX, altura em que se encanou o curso de água.

A arquitectura industrial, com maioria de fábricas abandonadas, e as casas oitocentistas (podendo-se ver uns poucos exemplares de art nouveau) convivem agora com as Docas, espaços ribeirinhos cuja noite já teve melhores dias, e novos projectos como o Alcantara LX, uma construção moderna e claramente destacada da envolvente de antigas fábricas. A sucursal lisboeta do Twins fica por ali, e do outro lado o Garage deu cartas durante uns tempos. A frente do edifício industrial que o acolhia era meia tapada por uma estrutura metálica que ligava a estação de Alcântara-Terra a Alcantâra-Mar, da linha de Cascais, vizinha da Gare Marítima e do Museu do Oriente, já ao lado do rio todos com arquitectura modernista dos anos quarenta e com recordações de Almada Negreiros.

A principal marca desportiva de Alcântara é o Atlético clube de Portugal, fusão do Carcavelinhos e do União de Lisboa. Jogou inúmeras vezes na primeira divisão, chegou a finais da Taça, e até aos anos setenta era um habituée do escalão principal. Afastado desde aí dos grandes jogos, o Atlético teve um momento de glória quando eliminou o Porto da Taça de Portugal, em 2007, em pleno Dragão. Os alcantarenses festejaram efusivamente o feito, e o periódico da colectividade até emitiu uma edição especial. Mesmo os Gato Fedorento se lembraram de parodiar esse jogo. O seu estádio, a Tapadinha, fica nos altos de Alcântara. É um recinto envelhecido, um pouco à imagem do clube, sem cadeiras nem cobertura, mas com uma bela vista sobre o Tejo. As suas assistências são até satisfatórias para as divisões secundárias


Cheguei a assistir a um desafio com outro histórico do futebol português, o Barreirense, pouco tempo depois desse tomba-gigantes protagonizado pelo Atlético nas barbas de Jesualdo e Pinto da Costa. O confronto com os vizinhos da margem Sul, de onde saíram várias lendas do nosso futebol, teve muitos episódios na primeira divisão, em tempos que já há muito lá vão. Hoje são dois clubes semi-profissionais, que vivem das memórias, dos sócios e de alguma publicidade local.


Segundo os alcantarenses, uma das razões que ditou o declínio do Atlético foi a construção da Ponte sobre o Tejo, que passa por cima da zona, aliás mesmo ao lado da Tapadinha. Talvez porque se tornou um mero atravessadouro, e perdeu o movimento dos passageiros que seguiam de cacilheiro, e toda a indústria local, relacionada com o rio. Não sei se é a verdadeira razão ou não - com a profissionalização, os clubes de bairro tenderam a decair, e as receitas não devem abundar.


O que é certo é que o Atlético teve mais um momento histórico há dias: depois de ficar em primeiro lugar na 2ª divisão B-Sul, venceu na liguilha de subida o Padroense e subiu à divisão de Honra, agora Segunda Liga, ou seja, aos campeonatos profissionais. Fará companhia o União da Madeira, aquela agremiação quer era normalmente composta por Dragans, Miltons Mendes e Simics naturalizados, mas não já pela turma do Padrão da Légua, por causa das estúpidas regras que regem estas promoções. Assim, além do Benfica-Sporting, haverá outro derby lisboeta, na divisão inferior: o clube de Alcântara contra o seu rival (e antigo "Grande") Belenenses. Saúda-se este regresso do Atlético Clube de Portugal, e sobretudo, a animação que não será na Tapadinha a recepção aos vizinhos de Belém e da Ajuda. Os alcantarenses já mereciam.

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