Passada a final da Liga dos Campeões, em que os falhanços de Cristiano Ronaldo (ou, pela linguagem SMS, CR7), que dariam grandes golos, determinaram a vitória do Basel da Catalunha, passemos às memórias futebolísticas, aquelas do tempo em que mesmo pela rádio era difícil acompanhar um jogo, e em que as transferências entre a América do Sul e a Europa se faziam de transatlântico. Recordo Jaguaré, estrela brasileira dos anos trinta.
Jaguaré Bezerra de Vasconcelos nasceu no Rio de Janeiro em 1940, em data incerta. De origem modesta, começou a trabalhar como estivador, o que decerto o dotou de braços poderosos, e jogava a guarda-redes como passatempo, como de resto era comum na época. Até que chegou a o Vasco da Gama e à Selecção Brasileira, tendo-se tornado um ídolo das massas. Provavelmente foi o elemento primordial da enorme linhagem dos loucos guarda-redes sul-americanos, que teve como recentes representantes Higuita e Chilavert. Defendia com apenas um braço, driblava atacantes adversários e tinha como imagem de marca fazer girar a bola com o dedo indicador, qual malabarista.
Numa digressão à Europa, em princípios dos anos trinta, O Vasco de Jaguaré jogou em Espanha e em Portugal, contra uma equipa formada por jogadores do Benfica e do Casa Pia...e ganhou. A tournée produziu efeitos e o Barcelona contratou logo o guarda-redes, mas como teria de ser suplente do mítico Zamora, regressou logo ao Brasil, para representar o Corinthians, até que o Marselha o contratou em 1937. Tornou-se um ídolo na Provença, conquistou o título de campeão de França, e, momento histórico, marcou um penalti, no que se crê ter sido o primeiro golo de sempre marcado por um guarda-redes.
Com a aproximação da Guerra, Jaguaré deixou França e regressou ao Brasil. O que poucos sabem é que teve uma breve passagem pelo Académico do Porto, clube que na altura tinha uma equipa na 1ª divisão e que posteriormente abandonou o futebol profissional (teve êxito noutras modalidades, como prova a carreira da sua atleta Rosa Mota). Não sei se por oportunidade na escala entre Marselha e o Brasil, se por necessidade de emprego, o certo é que teve uma breve passagem por Portugal.
Depois do percurso europeu, voltou definitivamente ao Brasil. Com a carreira acabada e o dinheiro gasto, voltou à estiva, começou a beber e afundou-se na cachaça. O antigo artista dos relvados estava no fim. Em 1946, num desacato com a polícia acabou por ser espancado e morreu dos ferimentos, tendo sido enterrado como um vulgar vagabundo.
Triste fim para um autêntico aventureiro da bola e da sua época. "Le Jaguar", como era conhecido em Marselha, ofereceu saltos e emoções aos espectadores dos estádios, quando o futebol era ainda amador e os seus praticantes jogavam por amor à camisola ou simples gozo. Cruzou os oceanos rumo a uma Europa em ebulição, espartilhada por paixões e ódios. Passou por Espanha nos dias pré-Guerra Civil e espantou os estádios de uma França marcada pelo governo da Frente Popular, pela ameaça alemã e pelos confrontos intelectuais e de rua entre comunistas e socialistas contra os legitimistas Camelots du Roi, a Croix de Feu e o nacional sindicalista Faisceau. Pelas diabruras armadas em campo e por ser, segundo os anais do desporto, o primeiro guardas-redes goleador, tornou-se também por direito próprio o primeiro dos "locos latinos", os guarda-redes sul-americanos para quem, acima de tudo, o que conta é o espectáculo.
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