Na torrente de mortes de figuras públicas dos últimos tempos, a de Vasco Graça Moura não surpreendeu, infelizmente. Sabia-se que estava doente há já bastante tempo, minado pelo cancro já metastizado. Na cerimónia de entrega da Grã-Cruz de Santiago e Espada, em Janeiro, na Gulbenkian, isso já era bastante visível.
Mas de entre todas as mortes recentes, esta é talvez a que sinto de mais perto. Embora só tenha falado uma vez com Vasco Graça Moura, o seu nome era uma referência muito presente na minha família e na geração dos meus pais, a que viveu intensamente os anos setenta e que se encontrava alegremente no bar do Hotel Boavista. Dizem-me que eu, que tão pacato era em tempos de que já não me lembro, me portei pessimamente na única vez que me levaram a sua casa. Mas ele não se importou minimamente. Provavelmente, politicamente incorrecto como era, não se importaria que as regras fossem quebradas por uma criança quase de colo. Mesmo em sua casa. Apesar de ao mesmo tempo dar uma enorme importância à ordem e à autoridade.
Esta faceta provocadora e frontal era das mais notórias, o que lhe granjeou imensos ódios. Isso e o empenho político. Era o puro intelectual engajado, só que ao contrário da grande maioria, não escolheu o lado dos "amanhãs que cantam" nem do "antifascismo" (o que lhe criou ódios suplementares). Aderiu ao PPD em 1975, e anos mais tarde tornar-se-ia o intelectual do cavaquismo (dizia-se "cavaquistíssimo"), embora sempre se tenha considerado de centro-esquerda. Também ocupou cargos políticos, como o de eurodeputado, e, brevemente, como Secretário de Estado nos governos provisórios. É verdade que era por vezes bastante sectário, e demonstrou alguns dos piores tiques do intelectual partidarizado. Mas seria sempre reconhecido muito para além disso. Era um tradutor notável, essa função tão desgastante e tão pouco reconhecida, que traduziu Shakespeare, Dante, Petrarca, autores franceses e alemães (e aprendia as línguas como uma autodidacta). Notabilizou-se como poeta, ensaísta e ficcionista (talvez a sua obra menor). Presidiu à Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, à Fundação da Casa de Mateus, comissariou o pavilhão português na Expo 92, de Sevilha, e ainda teve funções directivas na Gulbenkian, para além de outros cargos, sempre com assinalável competência. Era presidente do CCB e cumpriu funções até limiar das suas forças e ao último dia. Ganhou ainda um conjunto de prémios e distinções literárias de relevo, como o Prémio Pessoa. Ironicamente, sendo um portuense, foi um dos autores da ideia, juntamente com Mega Ferreira, de se organizar uma exposição mundial em Lisboa, que como sabe deu frutos e se tornou na majestosa e saudosa Expo-98. Para além das páginas, talvez seja esse o seu legado mais conhecido. A memória de um grande, de um autêntico Intelectual perdurará ainda durante bastantes anos, espero eu. E as cinzas regressaram ao seu Porto que em sua honra declarou dois dias de luto municipal, e que devia, imperativamente, imortalizá-lo na sua toponímia.