quinta-feira, março 29, 2018

As ligações insulares da Líbia


O suposto patrocínio de Muammar Kadhafi e do regime líbio à campanha presidencial de 2007 de Nicolas Sarkozy, que levaram à detenção deste há poucos diasnão é exactamente uma novidade nem um rumor esquecido. Já tinha sido publicitada várias vezes, a começar pelo filho do próprio ditador da Líbia durante o levantamento no país, quando a França liderou a intervenção militar externa que seria decisiva para a queda do "regime verde" e para os acontecimentos que se seguiram. 

A ser verdade não sei quais as razões deste patrocínio financeiro a Sarkozy, mas por certo seria para obter quaisquer objectivos financeiros ou estratégicos da parte da França. De resto, Kadhafi nunca deixou de se imiscuir nos assuntos dos outros países de forma diversa. Na sua versão mais recente fazia-o através de recursos económicos proporcionados pelo petróleo líbio, como os interesses que tinha em empresas italianas como a FIAT, ou até em clubes de futebol. Mas nas primeiras décadas, o coronel esteve envolvido em  quase todos os conflitos envolvendo terrorismo e rebelião. Do IRA à ETA, passando por todas as organizações palestinianas e estando por trás de grandes atentados dos anos oitenta, como a explosão do avião sobre Lockerbie, ou estreitamente ligado aos grandes terroristas da época, como Carlos, O Chacal, ou Abu Nidal, Kadhafi não perdia uma. E quando não tinha uma organização terrorista ou ma causa subversiva para apoiar, procurava-as. Um artigo recente de Rui Tavares conta-nos que o ditador líbio, numa reunião da Organização dos Estados Africanos, exigira a "liberdade da colónia africana da Madeira, ocupada por Portugal", dizendo o mesmo das Canárias. Se a esta ainda podia fazer referências aos guanches, o povo autóctone pré-espanhol, já dificilmente veríamos os madeirenses a querer ser libertados por Kadhafi. 

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Mas os líbios, sempre prestes a auxiliar um bom movimento separatista, também olhavam para os Açores, já fora da orbita
africana. César Oliveira, antigo deputado e autarca do PS (e pai de Tiago Oliveira, agora muito falado por estar à frente da estrutura que previne os fogos rurais), já desaparecido, conta-nos as suas impressões da Líbia em finais dos anos setenta, no seu livro de memórias, Os Anos Decisivos:

País de um novo-riquismo impressionante e avassalador, a Líbia constituiu (...) a certeza de que representava uma ameaça para a paz e no Norte de África como para o próprio Sul da Europa (...) Um alto dirigente líbio colocou-me a pergunta sobre a posição da UEDS quanto à ala esquerda da FLAMA e da FLA. E como tivéssemos respondido, naturalmente, que não víamos qualquer ala esquerda naqueles movimentos insulares e que, pelo contrário, os víamos como de extrema-direita e politicamente suspeitos, acabaram-se todas as facilidades e tive mesmo dificuldades em obter o bilhete de avião  para Lisboa, via Roma. 

Claro que o apoio a tais movimentos não passou de intenções, discursos e perguntas. Mas revela bem até que ponto aquele excêntrico regime líbio interferia ou procurava interferir nos assuntos dos outros países. Daí que não possa deixar de me rir quando ainda ouço inúmeras indignações A invasão e "violação da soberania da Líbia." Não que não tivesse acontecido, que aquilo não tenha redundado num caos e que a morte de Kadhafi e outros não seja condenável. Mas se houve país que se imiscuiu nos assuntos alheios, com consequências trágicas, a Líbia é o melhor exemplo, assim como Kadhafi é o responsável por inúmeras mortes e conflitos. Aplicou-se, de novo, a velha teoria de que quem com ferros mata...

domingo, março 18, 2018

Os limites de Stephen Hawking


Na semana em que desapareceu Stephen Hawking, falou-se, entre outras coisas, da sua relação com a religião, e na sua descrença em Deus, ou mais precisamente, acreditava que Deus não existia, segundo o próprio, o que faz supôr que não tinha certezas sobre isso. Lá está, o mistério de Deus é tão grande e o entendimento da metafísica tão complexo que nem  mais prodigiosa inteligência humana o consegue atingir.

Mas entre a sua obra, a vida e as ideias, tão faladas nos últimos dias, uma das últimas imagens que guardei de Hawking era diferente e mais leve, e levava um toque de classe, além de demonstrar o seu sentido de humor.

sexta-feira, março 16, 2018

A triste ironia de Salisbury


A confirmarem-se todas as suspeitas do envenenamento por parte de agentes russos (uma velha tradição, bem anterior a Litvinenko) do antigo agente Sergei Skripal, um exilado russo no Reino Unido (outra tradição, embora o inverso também o seja, como Kim Philby bem demonstrou), e da sua filha, haverá com toda a certeza um sério incidente diplomático entre o Reino Unido e a Rússia, que aliás tem este fim de semana uma tranquilas eleições onde por coincidência o principal opositor a Putin não concorre por estar preso (e ainda teve sorte: outros acabaram baleados no meio da rua).


Mas mais que isso, restará uma ironia amarga: é que o crime deu-se em Salisbury, uma pequena e bonita cidade inglesa com uma imponente catedral onde repousa um dos quatro exemplares - e o mais bem conservado, pelo que podemos dizer que é o principal - da Magna Carta. E assim, numa cidade que guarda um documento fundamental do moderno estado de direito terá ocorrido uma crime mais próprio de tiranias e de estados totalitários.
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quarta-feira, março 14, 2018

Helénicos mas balcânicos


Se acham que o futebol português seja uma acumulação de indignidades, falta de desportivismo e fanatismo, o melhor será compará-lo com o futebol grego para nos animarmos um pouco. 
O campeonato grego é fértil em incidentes que de tão repetidos já são rotina. É o caso das invasões de campo. Ou das recepções violentas a equipas adversárias. Este ano, com a possibilidade do crónico campeão Olympiacos do Pireu ser derrubado, a disputa é entre estes, os seus vizinhos do AEK de Atenas e o PAOK de Salónica, na longínqua Macedónia grega. No encontro recente entre o PAOK e o Olympiacos o jogo teve de ser interrompido pelo arremesso de objectos (um deles acertou no treinador dos do Pireu) e implicou a derrota administrativa dos de Salónica. Agora, no mesmo estádio, no encontro entre PAOK e AEK que muita influência teria no título, a decisão do árbitro, com razão, em anular mesmo no fim um golo dos da casa levou a nova fúria, com a entrada em campo não só do público como do próprio presidente do clube, um grego-russo dono de meia cidade e que não achou nada melhor que interpelar o árbitro de pistola no coldre, fazendo menção de a utilizar. 


Depois disso as autoridades competentes já suspenderam o campeonato. Entrar em campo de pistola à cinta é demais até na liga grega. Mas esta imagem caracteriza ainda mais um país que, por romantismo ou atavismo, muitos ainda acham que conserva a pureza civilizacional da Antiguidade, como se os gregos fossem de pura raça helénica, nada tendo em comum com os povos vizinhos, esses autênticos bárbaros.
A ideia vem de longe, já que ingleses e franceses ajudaram a moderna Grécia a tornar-se independente dos turcos muito por causa do romantismo vigente. Mas a verdade é que o farol civilizacional dos gregos actuais é mais Constantinopla do que Atenas, o cristianismo ortodoxo do que o Olimpo dos deuses, ou o Basileus do que a ágora (neste último caso fazem mal, já agora).
Sim, o "berço da democracia" - esse conjunto de cidades estado e pequenos territórios - mudou muito desde então. Tirando a língua, os nomes e a situação geográfica (e também o facto de não terem ficado sob influência comunista na Guerra Fria), os gregos pouco se distinguem dos seus vizinhos sérvios e búlgaros. E dos macedónios da chamada FYROM, já agora, com quem mantêm um litígio por causa do nome que consideram ser exclusivamente seu.
O irónico da coisa é que os gregos da Antiguidade consideravam a Macedónia uma terra de bárbaros por causa do seu sistema social, político e económico. Agora reivindicam o seu legado e do conquistador Alexandre Magno. No fundo, é terra de balcânicos que não se entendem.


quarta-feira, março 07, 2018

O pleonasmo italiano


Parece que depois das eleições de Domingo a Itália ficou "ingovernável", há pouca esperança de que haja um "governo estável" e fala-se em "coligações improváveis". Não é uma situação confortável, mas sendo Itália não é uma tragédia nem propriamente uma novidade. Antes pelo contrário.


A Itália da primeira república, de 1946 a 1993, teve perto de 50 governos, o que mostra bem a instabilidade governativa do país. No entanto, mesmo com esse e outros problemas (terrorismo, máfia, corrupção), o país desenvolveu-se e prosperou. Os dois grandes partidos eram a Democracia Cristã, que formava sempre governo com os liberais, os republicanos e os sociais democratas, e o Partido Comunista, o maior da Europa ocidental, inicialmente apoiado pelos socialistas. De fora ficavam os neofascistas, os monárquicos, os radicais e as formações regionais. A dada altura os socialistas passaram a suportar os democratas cristãos e tiveram até acesso à chefia do governo, com o célebre Bettino Craxi. Sendo sempre os mesmos a governar, e com o fim do perigo comunista, a partidocracia acabou por quebrar com o processo mãos limpas e os partidos tradicionais caíram como um castelo de cartas.


Com este cenário, em 1992/1993 surge a segunda república italiana. O Partido Comunista tinha entretanto alterado completamente a ideologia e a imagem e tornara-se no Partido Democrático de Esquerda, de ideologia social-democrata, excepto uma cisão mais saudosista que criou a Refundação Comunista. A Democracia Cristã acabou e a sua ala esquerda juntar-se-ia aos antigos inimigos agora do PDS. Outros dispersaram-se por pequenas formações centristas e "populares", mas a maioria do seu eleitorado, bem como dos partidos que a apoiavam, incluindo o socialista, seria absorvido por um novo partido que tinha como mentor o grande empresário e dirigente desportivo Silvio Berlusconi, pela crescente Liga Norte, de Umberto Bossi, até aí acantonada na Lombardia, e aos quais se juntaram os ex neofascistas de Gianfranco Fini, que num processo semelhante ao do PCI/PDS se tinham metamorfoseado na conservadora Aliança Nacional. Contra as expectativas iniciais, Berlusconi, aliado a Bossi e Fini, venceu as eleições gerais de 1994 ao PDS chefiado por Massimo D´Alema (que tinha um discurso pouco de esquerda, na opinião de Nani Moretti no seu filme Aprile). Seguiram-se anos em que ora vencia Berlusconi e as suas coligações (agora no Povo da Liberdade), ora o PDS e respectivos aliados ecologistas e centristas, com líderes como Romano Prodi, Rutelli e Veltroni, e que acabaria por se transformar no actual Partido Democrático. Pelo meio sucederam-se os inúmeros casos judiciais que envolviam sobretudo Berlusconi e até a entrada dos juízes na política, como Di Pietro.


Entretanto também esse cenário mudou. O Partido Democrático, chefiado pelo florentino Renzi, um Macron mais à italiana, prometeu reformar o país, mas a pressa e as mudanças de estratégia voltaram a adiar os planos. Fini retirou-se de cena, a Liga Norte expandiu-se para sul, agora com Matteo Salvini, e até Berlusconi regressou, em versão vegetariana e com mais cabelo, com a renascida Forza Italia, propondo-se a ser o árbitro das eleições e dos governos. Mais do que tudo, o Movimento Cinco Estrelas, primeiro com o histriónico Beppe Grillo e o cibernético Casaleggio, entrou de rompante na política italiana, conquistando em 2016 grandes cidades como Roma e Turim, e tornando-se no partido mais votado nas legislativas de há dias, agora como o jovem e quase licenciado Luigi di Maio à sua frente para lhe dar uma face mais institucional. Mas não se quer aliar a ninguém, tal como os outros partidos não se querem aliar uns com os outros.

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Como se vê, governos precários, falta de entendimento e posteriores alianças que antes pareciam impossíveis (ex-comunistas e democratas-cristãos, socialistas e ex-neofascistas, etc) são a regra em Itália. Daí que a preocupação imediata talvez não seja assim tão grave. Instabilidade governativa e coligações improváveis em Itália, mais do que a regra, são autênticos pleonasmos.

segunda-feira, março 05, 2018

Sobre o Festival da Canção


Pela primeira vez desde os meus dez ou onze anos (saudades dos Da Vinci) dei alguma atenção ao Festival da Canção. Boa ideia, a de o realizar em Guimarães. E houve algumas boas canções e interpretações. Por isso mesmo, é ainda pior que a vencedora tenha sido uma rapariguinha com péssima voz que nem sequer consegue chegar ao fim das notas. Depois da vitória dos Sobral, é bem provável que regressemos aos tradicionais últimos lugares da geral. E em segundo lugar ficou um tipo com uma canção melosa que se destacou por responder aos jornalistas enquanto comia uma banana, e que notoriamente não sabe distinguir entre a excentricidade e a falta de educação. Acho que tão cedo não me apanham a seguir o Festival.