segunda-feira, novembro 30, 2009

Pró-governo por inerência


Entre os vários jornalistas ou responsáveis de órgãos de comunicação social visados por uma linha editorial subserviente do governo conta-se João Marcelino. O actual director do Diário de Notícias conta na sua experiência com passagens pela chefia dos jornais Record e Correio da Manhã e pela revista Sábado, sendo que os dois primeiros constituem duvidosos elementos num currículo aceitável. É justamente considerado um "homem de direita", como se pôde avaliar por numerosas opiniões na Sábado, e neste caso, talvez o mais saliente membro do que já se chama a "direita socrática", i.e., aqueles que sendo politicamente mais destros não cessam de elogiar ou de desculpar as políticas do Primeiro-Ministro.
 

Convém no entanto ressalvar um ponto: Marcelino é "socratista" por inerência, não por convicção. Sendo director do DN, não poderia ser outra coisa. Não há publicação mais afecta à "situação" do que o velho diário da Avenida da Liberdade. Foi constitucionalista-liberal até 1910, republicano jacobino até 1926, estado-novista até 1974 (reporta-se a esse perído a construção de raiz da sua sede, na avenida supracitada), esquerdista e comunista durante o PREC, como ficou bem à vista pelas acções de Saramago, e finalmente opinador favorável aos governos da ocasião. Basta lembrar, em tempos recentes, o apoio incondicional à invasão do Iraque em tempos de Durão Barroso, e à defesa quase confessa de Santana Lopes nos meses em que este governou, até na história da mudança de directores. Agora limita-se a confirmar o que se espera dele: que seja o mais ardente defensor do executivo em funções e o defenda até à medula. Num país em que raramente a comunicação social assume as suas preferências políticas, é bom saber que há uma veneranda publicação com a qual se pode contar sempre, adivinhando à partida a sua posição.

domingo, novembro 29, 2009

Cépticos às vezes, crédulos quando convém


A polémica estalou com o "Climategate", há já uns dias. Um pirata informático entrou nos ficheiros da Unidade de Estudos Climáticos da Universidade de East Anglia, em Norwich, Reino Unido, cujos cientistas influenciaram o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, e divulgou boa parte dos mails e documentos que lá constariam, que punham em causa a teoria (maioritariamente adoptada) da responsabilidade humana no Aquecimento Global e de afastamento deliberado de cientistas ou de estudos que a contrariam. A coisa foi espalhada por blogues cépticos ou anti-ambientalistas e correu mundo. Agora, ouvem-se expressões como "descobriu-se a fraude do aquecimento global", "o prego que faltava na mentira ambientalista", ou "provou-se que é uma fraude para os comunistas destruírem a economia mundial".



É certo que estas coisas merecem alguma reflexão e que todas as teorias devem ser estudadas. São questões cuja magnitude deveria afastar radicalismos e promover o debate sério. Já fui bastante mais adepto da teoria antopogénica do Aquecimento Global e da campanha de Al Gore. Todavia, pelo que leio, continua a ser a mais satisfatória. E se os cépticos (ou radicais anti-ambiente) falam em "fraudes", como é que acreditam logo nisto? sabe-se que o hacker que roubou os ficheiros é russo, ou seja, proveniente de um país que baseia em grande parte a sua economia e a sua força no petróleo ; o site ou blogue onde foram divulgados desapareceu depois de confirmar que as tinha divulgado, pelo que se torna mais complicado saber quem foram os autores. Os cientistas vítimas do "furto" já vieram dizer que as mensagens divulgadas estão descontextualizadas e portanto mentem. E os que exultam com a acção falam na "derrota dos que querem impor a Nova Ordem Mundial". Ora eu sou da opinião que as teorias de "novas ordens mundiais" são bem mais falíveis que as do Aquecimento Global por culpa do homem. Além disso, este caso é tudo menos inocente quando é tornado público em vésperas da Cimeira de Copenhaga. Muito conveniente, sobretudo se não há maneira de encontrar os alegres génios a pirataria informática russa.


O paradoxo do caso é que aqueles que se dizem cépticos tornaram-se subitamente crédulos de fontes tão obscuras e suspeitas, aceitando mesmo a pirataria. Além de que se há interessados na teoria da culpa humana, não os há menos do lado dos que querem afastar esta teoria a toda a força. Ou tudo isto parecer-lhes-á completamente inocente?

sexta-feira, novembro 27, 2009

Polémicos ou aberrantes


Também no Delito de Opinião, aconselha-se a série "Arquitectura: os mal-amados", de João Carvalho, que nos mostra um conjunto de obras arquitectónicas polémicas ou de que quanse ninguém gosta. Da Casa da Música ao Palácio da Cultura de Varsóvia, passando por edifícios megalómanos que não funcionam na Coreia da Norte (um bom símbolo do país), há de tudo.

segunda-feira, novembro 23, 2009

Ligações interessantes



No Delito de Opinião, a tomar em devida conta a série "Por estes rios acima", de Pedro Correia., para rever ou travar conhecimento com os cursos de água que nos atravessam. Uma viagem por Portugal através de algumas das suas maiores belezas naturais.

Os cartazes turísticos promovidos pelo SNI, no Blogue da Rua Onze. Pena que as artes gráficas não sejam hoje tão usadas para atrair visitantes.
Do pára-quedismo ao estádio
Já que se falou de guarda-redes alemães, o I de hoje tem uma soberba história sobre um agricultor de Bremen, que combatendo pelas forças alemãs na 2ª Guerra como pára-quedista, passou de prisioneiro dos ingleses a indiscutível guarda-redes do Manchester City, hoje na posse de uns árabes. Chama-se Bert (Berndt) Trautmann, ganhou o prémio de jogador do campeonato inglês do ano em 1956 e invoca os tempos do semi-profissionalismo no desporto.

terça-feira, novembro 17, 2009

Os alemães e a National Mannschaft


O funeral de Robert Enke deu-se há dias, com um velório em pleno estádio do Hannôver 96, uma sentida homenagem presenciada por dezenas de milhares de pessoas. Segundo li, tratou-se do funeral com maior assistência desde o de Konrad Adenauer, em 1967. Só esta revelação é assombrosa. Adenauer era o refundador da Alemanha, o homem que lhe devolveu o orgulho, a dignidade, e que a colocou de novo na cena internacional. Para além disso, foi um dos "pais" da CEE e um dos pacificadores da Europa.

Como se percebe então esta onda fúnebre à volta do malogrado ex-guarda-redes do Benfica? Primeiro, por causa das brutais circunstâncias da sua morte. Depois, porque um homem popular, novo, com mulher e uma filha recentemente adoptada, e que estava a ser bem sucedido profissionalmente, não conseguiu ultrapassar os seus problemas psiquiátricos. O facto de ser um futebolista bastante conhecido (precisamente o tipo de pessoas que ninguém imagina a cometer suicídio) também contribuiu para a onda de choque.



Sem estar muito a par do assunto, julgo que terá igualmente a ver com a importância que a Selecção Alemã tem para os teutões e para o seu amor-próprio. As suas façanhas estão desde o pós-guerra ligados directamente ao próprio percurso da Alemanha (leia-se sobretudo RFA). Não quer dizer que os altos e baixos correspondam sempre à sensibilidade do país, senão o 3-0 que os suplentes da nossa Selecção lhes aplicaram no Euro-2000 seriam um péssimo sinal para eles (muito embora os peritos em simbologia sempre pudessem ver naquela esclerosada equipa um vestígio do envelhecimento dos alemães).


Em 1954, uma laboriosa equipa alemã venceu na final do Mundial de futebol desse ano, na Suíça, os "invencíveis magiares", a super-favorita Hungria comandada por Ferenk Puskas e que até esse jogo tinha atropelado tudo o que tinha encontrado pela frente, RFA incluída. A dimensão épica desse triunfo, que ficou conhecido como "O Milagre de Berna", e que deu até origem a um filme, devolveu muito do orgulho e moral a um país destruído, e contribuiu simbolicamente e em boa parte para a ascensão económica e política na Europa dos anos cinquenta, mostrando que os alemães se podiam erguer das cinzas e alcançar os maiores feitos.

Em 1974, a Alemanha voltou a ser campeã, em casa. Pouco antes tinha havido o caso Günter Guillaume, assessor de Willy Brandt que se descobriu ser um espião da RDA. O escândalo levou à demissão do Chanceler, abalou a sua Ostpolitik e criou certa euforia na RDA. A vitória nos relvados alemães, sob o comando de Franz Beckenbauer, atenuou esse mau-estar político.


Em 1990, o ano da Reunificação, a Alemanha voltou a consagrar-se como campeã do Mundo, em Itália. Estava-se a poucos meses de 3 de Outubro, a data em que dois países voltaram a ser um só. Nessa altura, as duas selecções ainda não estavam unidas, e a da RDA (que nunca se aproximou do sucesso da sua vizinha ocidental, nem de outros países do Pacto de Varsóvia) dava os últimos passos. Mas como já se sabia de antemão o que ia acontecer dentro de meses, pode-se considerar este triunfo como sendo já de toda a Alemanha. Uma taça que coroou desportivamente a Reunificação e que acidentalmente se tornou um símbolo do novo país, espalhando a euforia naquele Verão de 1990.


Ou seja, em momentos decisivos dos últimos 50 anos, a Mannschaft obteve o máximo título mundial, levando o orgulho a um país que dele precisava. Provavelmente as circunstâncias das épocas também terão dado um novo alento e novas forças às equipas, mostrando assim a força de vontade germânica. A união entre a equipa nacional e os alemães em geral solidificou-se. As provas de carinho e as muitas bandeiras desfraldadas no mundial de 2006, também na pátria de Goethe, foram um sinal disso mesmo. A Selecção é um espelho das conquistas e da ultrapassagem de obstáculos que os alemães tiveram de enfrentar, e de certa maneira são uma fiel representação do país e dos seus sucessos. Daí esse pesar pela morte violenta e chocante de um dos seus jogadores, que pesou mais do que a de muitos estadistas e outras figuras públicas.


Isto é obviamente apenas uma opinião de sociólogo de café, que vale o que vale - provavelmente muito pouco. Mas achei interessante fazer as devidas observações e comparações para perceber a onda fúnebre por Enke, que não teve paralelo, por exemplo, com o que os húngaros sentiram por Miki Fehér. Daria azo a outra reflexão entre os magiares e o seu apreço pela bola, muito em baixo desde os anos sessenta. Mas isso seria outra discussão. Por ora, deixemos os alemães chorar Enke. A sua memória dar-lhes-à força para o próximo Mundial na África do Sul?

The Israel Sketchbook



No festival da BD da Amadora tive também oportunidade de conhecer uma obra tão interessante quanto recente, acabada de lançar. Ricardo Cabral, desenhador de BD, viajou por Israel em 2007, e montando base em Tel Aviv, partiu para o resto do país, percorrendo-o do Mar Morto a Eilat, passando por Jerusalém, o Neguev e Gaza (só ficou mesmo a faltar Haifa). Registou cada cidade ou cenário digno de nota, através de desenhos nos vários moleskines que levou consigo. Os mais impressivos são sem dúvida as do Mar Morto, pela alucinante paisagem de um vale de sal, água e rocha, e de Jerusalém, a Cidade Santa, sobretudo o friso onde se misturam soldados a cavaquear, turistas de mochilas e máquinas fotográficas a tiracolo, vendedores ambulantes árabes e frades de mais do que uma ordem. Todo esse trabalho ficou registado no álbum The Israel Sketchbook, obra de grafismo interessante e realista, num percurso que permite ir conhecendo o país do litoral para o interior, e das cidades para o deserto. Uma boa surpresa. O legado dos mestres da BD portuguesa está assegurado.

sexta-feira, novembro 13, 2009

A beleza dos setenta

Não apanhei susto nenhum, quando a vi, com violetas na mão em New York, I Love You, entre John Hurt e o filho de Indiana Jones, e direi mesmo mais, o tempo muda mas não desfigura (necessariamente). Com perto de setenta anos, Julie Christie é a prova de como uma mulher, mesmo sem grandes peelings, pode continuar a ser bonita. Ao contrário do que dizia Helène de Beauvoir, nem sempre a jeunesse é sinónimo de beauté.

quinta-feira, novembro 12, 2009

Robert Enke


A notícia da morte de Enke é daquelas coisas que choca, pelas circunstâncias e pelo surpresa. à partida, um jogador de futebol que joga num campeonato de topo e numa das melhores Selecções do mundo e ainda é relativamente novo, tem poucas razões para querer deixar a vida. O mediatismo que acompanha os jogadores de futebol, os de topo, sobretudo, ainda aumentam a estupefacção.


Lembro-me de quando chegou ao Benfica, em 1999, proveniente do Borrusia Monchengladbach, que descera de divisão. Tinha 22 anos (fazia anos no mesmo dia que eu, outra das coisas que retive) e jogava normalmente na selecção alemã de esperanças. Era uma aposta do treinador Jupp Heinkes, uma das antigas glórias do clube alemão, e nessa altura, a da reforma do grande Michel Preud´Homme, estava destinado a ser o guarda-redes suplente de Gustavo Bossio, rotulado de craque. Mas com as fífias do argentino chegou depressa à titularidade, e nos dois anos que se seguiram, quase não a largou. Parecia discreto mas simpático. Aprendeu depressa a falar português ("está tudo bem, só falta vir namorrado", dizia numa entrevista, ainda sem saber distinguir o masculino do feminino), afeiçoou-se ao país e preparou Moreira (na altura júnior) para defender num futuro próximo a baliza benfiquista.


Anos penosos a nível desportivo, diga-se, coincidindo com o fim de mandato de Vale e Azevedo. Uma das coisas em que se repara é que Enke esteve quase sempre bem por onde passou, mas escolheu os seus clubes na altura errada. No Monchengladbach chegou à titularidade no ano em que o clube desceu. No Benfica, era o guarda-redes do fatídico sete-zero em Vigo, no qual terá sido o menos responsável, e nas piores épocas do clube, em que não se conseguiu sequer chegar às competições europeias. Assinou contrato com o Barcelona, em anos tormentosos do clube catalão, que desde Zubizarreta não mais conseguiu assegurar devidamente as suas balizas, e jogou um ou outro jogo para esquecer. emprestado ao Fenerbache de Istambul, no primeiro jogo sofreu uma goleada em casa e viu os adeptos turcos a atirarem-lhe petardos e a partirem-lhe o carro. Atarantado, recusou-se a continuar a conseguiu ser emprestado ao Tenerife, da segunda divisão espanhola. Por fim, o Hannover, mediano clube da Bundesliga, contratou-o, e lá conseguiu finalmente a estabilidade exibicional, tanto que o chamaram para a Selecção.


A vida de Enke mudou com essa permanente impossibilidade de se fixar, e com a morte da filha de dois anos. Ao que parece, terá começado a sofrer grandes depressões, e do medo de ser internado e de lhe tirarem a filha que com a sua mulher tinha adoptado há meses. Andou em tratamentos psiquiátricos, mas nem a possibilidade de ser o próximo titular da baliza da Mannschaft o terá feito melhorar. Pôs termo à vida de forma premeditada, ao que tudo indica, debaixo de um comboio na linha de Bremen para Hamburgo.


Na semana em que se festejavam vinte anos da queda do muro de Berlim, um natural da ex-RDA, da cidade universitária de Iena, encontrou razões para acabar. Tinha doze anos quando as manifestações começaram ali ao lado, em Leipzig. Não terá sido certamente a Ostalgie a culpada, mas será sempre difícil avaliar as razões do desespero de Robert. E fica-se ainda mais melancólico quando se sabe que, numa entrevista há um ano, tinha dito que gostaria de regressar a Portugal na fim da carreira. Afinal, quando nos lamentávamos das desgraças do Benfica, Enke terá aqui vivido os seus anos mais felizes. Um caso singular de como os azares profissionais por vezes são inversamente proporcionais à felicidade.

terça-feira, novembro 10, 2009

A diversidade da Nona Arte


Acabou no último fim de semana o Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora. Lá me desloquei ao certame, tal como já tinha feito no ano passado, embora com o risco de me perder no meio daquelas fieiras de prédios todos iguais. O pretexto eram os cinquenta anos de Astérix; a razão era a minha velha mas controlada paixão por BD.


Sobre o herói gaulês esperava mais. Uma única sala com memorabilia, os álbuns todos da colecção, e um ou outro autógrafo de Uderzo, mais dois simpáticos sósias de Astérix e Obélix a cumprimentar as pessoas e a animar a miudagem era manifestamente pouco para a importância que os gauleses tiveram para a BD. Se a cultura francesa está em declínio, os "irredutíveis" são a excepção mais óbvia. Tornaram-se personagens conhecidas no mundo inteiro, os seus álbuns deram origem a filmes (animados e não só), o Parc Astérix rivaliza com a Eurodisney. Não admira que o general De Gaulle gostasse tanto do pequeno guerreiro.

Fui e sou um fã de Astérix desde miúdo, quando lia os álbuns que os meus pais compravam, em francês e português (aprendi em grande parte a ler em francês graças à banda desenhada). Os meus preferidos serão talvez o Astérix entre os Godos, Astérix entre os Bretões (o mais hilariante, influência do "british humour"?), A Zaragata, e Astérix Legionário. Todos absolutamente brilhantes, com aqueles anacronismos propositados, como os capacetes dos godos, a lembrar os pickelhaubes alemães da 1ª Guerra, os hábitos dos bretões, as vendettas dos corsos e o modo de falar dos belgas. Com a morte de Gosciny, Uderzo tomou o argumento em mãos. A série tornou-se mais desvairada mas perdeu a subtileza e o brilho anteriores.



Mas havia mais para além de Astérix no certame. De novos talentos a homenagens a Maurício de Sousa (da "Turma da Mónica"), havia de tudo. Gostei acima de tudo das recordações de outras edições anteriores e de outros mestres da BD portuguesa. Não faltavam exemplares do Mosquito e entrevistas gravadas a desenhadores como José Garcês e José Ruy.


Mas acima de tudo gostei de ver a memória de Eduardo Teixeira Coelho, um dos maiores autores de sempre da Nona Arte portuguesa, senhor de uma farta bigodaça que faria inveja a Dali e a Nietzsche e que ganharia com certeza o concurso da modalidade. Era açoriano, de Angra, mudou-se para Lisboa nos anos trinta, trabalhou como ilustrador, tornou-se conhecido no Mosquito e, mais tarde, no Mundo de Aventuras. Viveu em Espanha, em Inglaterra e em França (com o pseudónimo Martin Sièvre), até se mudar para Florença, onde morreu em 2005.



As suas obras eram acima de tudo de aventuras ou acontecimentos históricos, com um traço limpo e simples. O Caminho do Oriente, dos anos quarenta, com textos sem balões, é um dos melhores exemplos disso. A viagem de Vasco da Gama vista pelos olhos de um endiabrado grumete, Simão Infante, contada em banda desenhada a preto e branco. Tenho os seis álbuns da obra, oferecidos num Natal já muito longínquo, teria os meus nove, dez anos. Para se conhecer a obra de Eduardo Teixeira Coelho, é uma óptima iniciação. Reflecte bem o talento do autor em mergulhar o seu leitor num universo de aventuras de outros tempos, e numa dimensão histórica que de outra forma, excepto no cinema e em rara literatura, é quase impossível de recriar. Para além do inevitável escape, a capacidade didáctica e cultural da Nona Arte, num mundo tão tecnológico como o que vemos hoje, consegue sempre surpreender.

segunda-feira, novembro 09, 2009

Vinte anos


O assunto do dia é inevitável: os vinte anos da queda (ou do seu início) do Muro da Vergonha, que dividiu Berlim durante perto de trinta anos e cercou o enclave da RFA, tanto na cidade como na região circundante. Em Novembro de 1989, a queda do Bloco de Leste, provocada pelo degelo das relações com o Ocidente, com a Glasnost e a Perestroika de Gorbatchov, e pela certeza de que os soviéticos já não enviariam os seus tanques para impedir certas "veleidades", era uma realidade em marcha.

Também na República Democrática Alemã os protestos, que começaram em Leipzig (curioso como as vagas que derrubaram os regimes comunistas começam muitas vezes em cidades secundárias), estavam em crescendo. Milhares de alemães fugiam para a Hungria, e daí para o ocidente. A Nove de Novembro, por causa de um"lapso", milhares de alemães de Leste que se concentravam na Alexanderplazt, mesmo no cento da cidade, entre o Palast der Republik e a altíssima antena de televisão, precipitaram-se para troço do muro, junto à Porta de Brandeburgo, onde as forças policiais, impotentes perante aquela multidão, depuseram as armas. Pela primeira vez, muitos alemães viam o outro lado do muro, e muitos outros reviam as imagens de há muitos anos. Ficaram na memória as imagens dos populares a subir o muro, de blocos deste a ser derrubados, da festa imensa entre a multidão.


Passei por lá em 1998. Na maior parte da sua extensão, o muro não existia. Havia alguns quilómetros dele, cobertos de graffitis, como recordação e vestígio histórico, assim como as guaritas de Checkpoint Charlie, mas tanto na cidade como nos arredores (já que a barreira existia também nos bosques circundantes) apenas restava o local. Ao lado da porta de Brandemburgo, dezenas de cruzes, uma por cada vítima morta pelos guardas, recorda aqueles que tentavam fugir desesperadamente daquele cenário cinzento guardado por torres de controle e arame farpado, por metralhadoras e pela omnipresente STASI. A última cruz é a que simboliza a morte do próprio muro.

Hoje vendem-se pedaços do muro como recordação histórica. Os vendedores ambulantes de peças e curiosidades da antiga RDA fazem negócio com a venda desses símbolos de Ostalgie, entre os quais se contam igualmente miniaturas dos Trabants. O muro pode ter desaparecido em grande parte, ou ser mero objecto de fotografias dos turistas, mas um grande risco vermelho, ao longo do seu antigo percurso, mostra-nos o seu traçado e lembra-nos que por ali passou uma das páginas mais sombrias da história da Europa do Séc. XX. Que começou a ruir, e com estrondo, em Novembro, há já vinte anos.

terça-feira, novembro 03, 2009

Benfica a rodos em 2009/10

Ainda pouco falei do Benfica 2009-2010, excepto na partida no Restelo, o único jogo, de resto, a que assisti nesta época. A derrota de Sábado passado, em Braga, a primeira da época, parece-me um bom pretexto para tratar do assunto.

Era um pouco céptico na exoneração de Quique Flores, tanto pela necessidade de estabilidade técnica como pelas indemnizações a pagar. Provavelmente estaroa influenciado pelas prestações do Benfica no início da época, e por simpatizar com o ar digno e cavalheiresco do espanhol; mas a verdade é que o Benfica não melhorou o seu futebol, pelo contrário, e Quique nunca se incomodou em demasia com os pontos perdidos em empates melancólicos. Veio Jesus.

As aquisições pareceram-me correctas, mesmo tendo em conta os custos de alguns jogadores (Javi e Ramires, por exemplo) em contraste com as escassíssimas verbas que entraram, e que obrigaram o recurso ao crédito. Sou muito céptico em relação a este gênero de engenharias financeiras, porque comportam um risco pesado. Claro que por vezes há que arriscar, mas no estado em que estão as finanças dos clubes, pede-se alguma cautela. Mas no plano desportivo as "peças" adquiridas foram as certas e integraram-se bem nas que já lá estavam.


Na baliza apenas lamento que Moreira tenha sido relegado para terceira opção, apesar de gostar muito de Quim. Júlio César parece-me bom "keeper", mas tenho dúvidas se será um fora-de-série.


Na defesa, manteve-se Luisão, a pedido de Jesus. David Luiz tornou-se um central de primeira água, e terá apenas de aprender a conter um pouco os ímpetos para que os clubes mais ricos da Europa o cobiçem. Sidney e Miguel vítor são uma linha de reserva segura. Nas laterais, Maxi Pereira, com a raça que já mostrou, segura a direita sem grande rivalidade de Luís Filipe (até Ruben Amorim é preferido para segunda escolha). À esquerda a coisa não é tão clara. Shaffer é rápido, centra que é uma maravilha, mas tem algumas fragilidades a defender. César Peixoto tem técnica, mas o mesmo problema, e não me parece que resolva muita coisa. Aliás, teria preferido que se mantivesse Jorge Ribeiro, formado na Luz e com melhor remate, e não se fosse buscar o companheiro de Diana Chaves. Opções...




Depois, o meio campo. Quem pensasse que sairiam Katsouranis e logo depois Yebda imaginaria o desastre para aquela zona. Acontece que os grandes reforços estão aí: Ramires é um corredor incansável, entre a gazela e a carraça, sempre activo, sempre lutador, e ainda tem apetência para golos. Javi Garcia, uma incógnita com músculos à chegada, é essencial à frente da defesa, e além de ser forte e raçudo, tem inteligência táctica, que faz com que lance a bola em jogo e não a atire para a frente de qualquer maneira. Também estes ficarão pouco tempo na Luz. Ruben Amorim, a melhor surpresa da época passada, alterna entre o banco e o jogo, mas está lá sempre.

Aimar parece ter segurado os arames e mostra as qualidades que o tornaram num virtuoso. O único golo que marcou até agora é um portento, e os seus passes e cobranças de falta parecem telecomandados, tais as assistências para golo que têm proporcionado. Convém que simule um pouco menos, porque quando for realmente abalroado ninguém apitará a falta. Entretanto, Carlos Martins também parece de volta aos bons velhos tempos: quando joga, mostra o que vale e provoca sempre estragos. As lesões é que têm sido inclementes... Resta ainda Menezes, um brasileiro que mostrou alguma técnica, mas que ainda terá muito que palmilhar.



Por fim, o sector que mais tem dado nas vistas: o ataque. Oscar Cardozo revela-se cada vez mais um perigo na área, e não só com o pé direito. Saviola, o excelente atacante argentino, é o companheiro ideal, com a sua velocidade e técnica. Menos possante e explosivo que Suazo, compensa isso com outra hagilidade que o hondurenho que regressou ao Inter não possui. No banco, Nuno Gomes é um suplente de luxo, Weldon já mostrou serviço, revelando ser um jogador rápido, inteligente e com sentido de oportunidade. Mantorras tem como função galvanizar as massas, e se possível, marcar um golo, coisa que faz com poucos minutos em jogo. Keirrisson é o caso mais bicudo: com apenas vinte anos, já marcou imensos golos no Brasil, o que valeu a sua (caríssima) aquisição pelo Barcelona e posterior empréstimo, mas até agora não justificou minimamente o negócio.

A alimentar o ataque, nas alas, temos Di Maria, que parece querer mostrar o que dele se esperava. continua a pecar no remate, mas quando se deixa de indivualismos é dificílimo de apanhar. Fábio Coentrão regressou em boa hora, e é talvez a maior revelação: técnica, garra e cruzamentos perfeitos - já leva não sei quantas assistências - são a história deste jogador neste época. Não esperava tanta maturidade nem tanta qualidade, confesso. Do outro lado, e já que se voltou a emprestar Adu, Não se sabe o que dará Urreta este ano. Na época passada deixou muito boas indicações...


Como já disse, Katsouranis e Suazo foram bem substituídos. Quanto a Reyes, sem muito dinheiro para o pagar e sem propostas de outros clubes, restou-lhe voltar ao Atlético de Madrid, onde é suplente de uma equipa à deriva. Gostava do jogador, mas ficou aquém do que sabe e pode dar. E Di Maria ou Coentrão não lhe dariam grandes oportunidades de brilhar. Como o Benfica tem parte do seu passe, ver-se-à se no futuro o espanhol voltará para passear o seu Lamborghini nas ruelas de Alfama.

Mas a equipa parece substancialmente melhor do que em Maio, disso não haja dúvida. Saviola, Ramires e Javi foram os jockers que vieram fazer o complemento a David Luiz, Cardozo e Aimar - neste caso, é um reencontro entre os dois amigos argentinos, que em conjunto tão boa conta deram do recado quando jogavam juntos no seu país, e que refazem uma dupla de renome internacional. Jesus mostra que sabe da poda e do que precisa. O problema serão os abrandamentos de ritmo, os efeitos do esforço físico e uma certa dificuldade da equipa reagir quando se apanha a levar um golo, como já se viu esta época. Mas com talento a rodos e um melhor conhecimento por parte do seu técnico do campeonato português, o Benfica tem tudo para incomodar os adversários e suplantá-los.

PS: o triunfo no Goodison Park terá tirado as dúvidas aos mais cépticos, depois da pesada goleada imposta na Luz. No total, foram sete golos sem resposta a um dos grandes do futebol inglês. Não estarão no seu melhor momento, até por causa das ausências, mas os Toffees tinham alguns nomes de respeito, como Tim Howard, Fellaimi, Saha ou Jô. Mas o Benfica bateu-os inapelavelmente.

Fica uma nota, uma mera curiosidade, mas ainda assim honrosa: revela o clássico Times que o Benfica, com esta vitória, tornou-se a primeira (e até agora única) equipa a vencer nos estádios dos dois clubes de Liverpool; há três anos, a histórica eliminatória em Anfield Road, e agora isto, pelos mesmos números. Uma vez mais, o Benfica a impôr o respeito entre os bretões. Confirme-se. Contra jornais ingleses bicentenários não há argumentos.


A hora do adeus do "lobo"


Com a morte de António Sérgio silenciou-se uma voz inimitável da rádio. O seu tom, entre o grave e o cavernoso, como um mensageiro de desgraças, era um marco radiofónico. Entre os seus pares era o "Mestre". Comecei só a segui-lo com o programa A Hora do Lobo, na Comercial. Já na altura tinha uma carreira de respeito como radialista. Esteve na Renascença, criou o Rotações e o Som da Frente (chegou-se até a editar um disco com as canções mais marcantes que saíram desta rubrica), e passou também pela mítica XFM, essa "rádio para uma imensa minoria", de que era um dos elementos marcantes. Estava agora na Radar - de certa forma, uma das descendentes da XFM - com o programa Viriato 25. Uma referência da rádio em Portugal e da vanguarda musical, marcou uma certa época (anos oitenta e noventa) que para muitos talvez já esteja ultrapassada, mas que legou inúmeras pérolas. Soube também, nas notícias da sua morte, que era um fervorosa benfiquista. Bom seria que outros seguissem o seu caminho. A rádio pode já ser velhinha, mas continua a fazer falta. Não se imagina uma viagem de carro nocturna solitária sem ela e sem aqueles, que como Sérgio, a tornam mágica.