Notícias dos últimos dias
dão-nos conta de que a Ossétia do Sul vai “iniciar o processo legal para se tornar
parte da Rússia” através “de uma consulta popular”. Não é propriamente uma
surpresa. Este é um procedimento que já vamos conhecendo: uma dada população
está a ser atacada pelas forças governamentais, as tropas russas intervêm para
a auxiliar, ocupam a região “em missão de paz”, organiza-se um “referendo” em
poucos dias, e a população vota pela separação e, eventualmente, para se tornar
parte da Rússia. Aconteceu antes e volta a acontecer.
Um dos argumentos
utilizados é o precedente do Kosovo, saído da esfera da Sérvia, país próximo da
Rússia. A região era habitada por uma maioria albanesa que sofreu uma tentativa
de limpeza étnica por parte de Slobodan Milosevic e dos seus apaniguados, com
currículo na matéria na Bósnia, como tristemente se sabe. A intervenção da NATO
impediu-o, expulsando os sérvios e colocando o Kosovo sob protecção da ONU, até
que em 2008 os kosovares proclamaram a independência, prontamente reconhecida
pelos Estados Unidos e por mais uns quantos estados (Portugal incluído, meses
depois, mas não Espanha, por razões óbvias). Criava-se assim, pelo menos de
facto, um novo estado, como que uma segunda Albânia, de duvidosas capacidades
para se manter e directamente arrancado à Sérvia, que nunca o aceitou (interpondo
uma ação perante o Tribunal Internacional de Justiça, que não lhe deu razão).
Nem a Rússia, que daí em diante aproveitaria o “precedente do Kosovo” nos casos
da Crimeia, Donbass, e, logo em 2008, nos da dita Ossétia do Sul e da Abecásia.
Mas estes últimos casos já vinham de longe.
No início dos anos
noventa, o desmoronamento da URSS conduziu à independência das suas 15
repúblicas federativas. Algumas já se tinham entretanto separado, o que
apressou o fim daquela federação. Era o caso da Geórgia, outrora um reino
independente que vinha de tempos imemoriais, e que declarou independência em meados
de 1991, depois de um referendo. Mas ao mesmo tempo, aproveitando o caos
reinante e fazendo ressurgir velhas questões, outras subdivisões aproveitavam
para reivindicar a sua autonomia. Aconteceu isso mesmo na Ossétia do Sul, um
exíguo território a norte, separado do resto do resto do Cáucaso por enormes
montanhas, e da Abecásia, uma faixa de território do noroeste da Geórgia, ao
longo do Mar Negro, parte da “Riviera Soviética” e que se reclamava herdeira da
mítica Cólquida, que se separou do território georgiano.
As duas aproveitaram para
declarar a independência, o que originou uma reação dos georgianos. Estes, por
sua vez, já andavam divididos numa guerra civil desde o derrube do presidente
Zviad Gamsakhurdia, primeiro chefe de estado da Geórgia independente, e as suas
forças não primavam pela capacidade bélica ou tecnológica. Para mais, as
repúblicas rebeldes tiveram apoios externos. A Ossétia conseguiu a sua
autonomia depois de meses de dura luta. Com a Abecásia seria mais demorado.
Aquela pequena república
declarou a independência no verão de 1992, liderada por Vladislav Ardzinba, um
académico especializado em civilizações da antiga Mesopotâmia, e que tentava o
reconhecimento por todos os meios, tendo mesmo apoiado o golpe contra Gorbachov
em Agosto de 1991. Os georgianos intervieram, sob pretexto de incidentes provocados por independentistas, e controlaram a maior parte do
território, remetendo o governo da Abecásia para um pequeno espaço a Norte, perto
o suficiente para conseguir receber reforços. Não o fizeram sem que as suas
tropas, em parte eram regimentos semi-amadores, cometessem diversos crimes,
entre os quais a destruição de preciosos arquivos, como aqui nos relata Thomas de Wall, então jovem jornalista lá
estacionado para fazer uma reportagem sobre os gregos do Ponto (que foram em boa parte resgatados por uma operação
naval da Marinha Grega a que sintomaticamente chamaram Operação Velo de
Ouro).
Os rebeldes abecásios
receberam o apoio activo de uma miríade de guerrilheiros de várias partes do
Cáucaso, chamada sintomaticamente Confederação dos Povos de Montanha do
Cáucaso, que se deslocou para o território qual guerra santa. A maior parte
eram islamitas, e entre os seus comandantes contava-se Shamir Basayev, que
começaria aqui a sua carreira de atrocidades antes de se tornar mais conhecido
pelos pelo seu papel nas guerras da Tchétchénia e pelos atentados contra a
Rússia nos anos 2000, sendo o mais conhecido o massacre da escola de
Beslan, vitimando inúmeras crianças, e o atentado ao teatro moscovita Dubrovka. A estes juntaram-se voluntários
arménios locais, que se diziam descriminados pelos georgianos, ossetas, cossacos
e militares voluntários russos. Entre combates, avanços e recuos e algumas atrocidades
de parte a parte, obteve-se um frágil cessar-fogo, mediado pela Rússia, que
tinha um papel dúbio desde o início. Os georgianos baixaram então a guarda,
apenas para serem surpreendidos por uma investida dos abecásios e seus aliados,
que em poucos dias tomaram a capital, Sukhumi, com apoio indirecto russo, que
lhes forneceram boa parte do armamento. Shevardnaze, que tinha ido pessoalmente
à capital da Abecásia para dar moral à população, teve de fugir apressadamente
de avião, o último a sair em segurança, já que os voos que se lhe seguiram,
transportando civis em fuga ou soldados, foram abatidos pelos rebeldes sobre o
Mar Negro. Seguiu-se a mortandade da população georgiana, incluindo o assassínio
todas as autoridades da cidade, e a fuga de dezenas de milhares de pessoas para
a Geórgia (ocasionalmente foram navios russos que levaram alguns civis para Sochi).
A limpeza étnica tirou metade da população à Abecásia e a maior parte da população
a Sukhumi.
A guerra da Abecásia não
teve grande repercussão no ocidente, já que na altura os acontecimentos eram
dominados pela guerra na ex-Jugoslávia e a crise institucional na própria
Rússia, que acabaria com o bombardeamento do parlamento, onde estavam
barricados inúmeros opositores nacionalistas, estalinistas e o próprio
vice-presidente rebelde Rutskoy, pelas forças de Yeltsin, a que se seguiriam
eleições atribuladas que dariam a vitória ao ultra-radical Zhirinovsky, morto
esta semana. Passou por isso relativamente despercebido o papel dos russos nesta
guerra, já que embora só tivessem contribuído com soldados voluntários do lado
dos abecásios, deram aos rebeldes não só armamento como todas as condições para
progredirem, nunca tendo intervindo, antes pelo contrário, para fazer respeitar
o cessar-fogo. Menos evidente são as razões porque o fizeram: se ainda por vingança
pela separação da Geórgia, se porque a sua própria situação interna, minada por
nostálgicos da URSS, não permitia grandes desvios. A verdade é que permitiu não
só a secessão daquelas regiões e a limpeza étnica dos georgianos, de forma trágica,
como deu força a que os rebeldes do Norte do Cáucaso iniciassem pouco depois
uma guerra sangrenta pela independência da Tchétchénia e inúmeros grupos
radicais islâmicos que deixariam um rasto de atentados violentos na Rússia.
Uma dos poucos chamadas
de atenção para esta guerra é o filme Tangerinas, nomeado para o Óscar
de Melhor Filme Estrangeiro de 2013, passado com a guerra da Abecásia em fundo
e a comunidade local de letões, e que esteve nos cinemas em Portugal e que já
passou na RTP2.
A Geórgia terminaria a sua própria guerra civil no fim de 1993, com a morte, oficialmente por suicídio, do sitiado Gamsakhurdia. Em Agosto de 2008,
aproveitando a distração com os Jogos Olímpicos de Pequim, a Geórgia, num
período pós-Shevardnaze, liderada por Saakashvili, tentou reaver aqueles
territórios, mas os planos foram gorados pelas forças armadas russas, que,
agora directamente, rechaçaram os ataques e ainda entraram em território
georgiano, num episódio relembrado agora com a invasão da Ucrânia. Logo a
seguir, invocando o precedente do Kosovo desse mesmo ano, a Rússia agora de
Putin reconheceu a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul. Mais tarde, e
para justificar a actual guerra movida contra a Ucrânia, reconheceu a independência
das “repúblicas” de Donetsk e Luhansk, que previsivelmente copiarão a “vontade”
da Ossétia em se juntar aos russos, tal como aconteceu em 2014 com a Crimeia.
Não se sabe se o mesmo poderá acontecer à Transnístria, ocupada por uma
guarnição russa, mas é possível.
Não deixa de ser curioso como a Rússia se
queixa constantemente do “cerco” da NATO ao mesmo tempo que durante anos cercou
a Ucrânia na maior parte do seu território – a leste e a Norte, assim como a Bielorrússia,
a sul, com a base de Sebastopol, cedida aos russos para sediar a base da frota
do Mar Negro, a leste, com a dita Transnístria, e até a Noroeste, se
considerarmos o enclave armado de Kaliningrado/Konigsberg.
Quanto à Abecásia, tem
uma posição diferente: embora agradecida à Rússia, não se pretende juntar a
ela. No entanto, está absolutamente dependente do gigantesco vizinho, que tem
lá forças estacionadas. A economia depende da produção de tangerinas e do
turismo balnear russo, sendo um destino mais barato que a vizinha Sochi. A população
ficou reduzida a metade, com a limpeza étnica dos georgianos (e a fuga de
outras etnias, como os gregos e os letões). A região parece parada no tempo, quase
sem infraestruturas, ao contrário do resto da Geórgia, que progrediu consideravelmente.
O próprio
parlamento permanece devoluto, mais de 25 anos depois de sofrer estragos de
guerra, como uma ferida aberta no centro de Sukhumi, uma ilustração do estado
daquela terra. A
secessão serviu para retalhar a Geórgia, sem dar um futuro melhor à Abecásia, e
para que os radicais islâmicos se espalhassem com os resultados consequentes. Sim, a Rússia já teve os seus "Kosovos". E os seus "Bin-Ladens". A
Rússia de Yeltsin permitiu-o. A de Putin, hostil com os vizinhos que querem
sair da sua órbita, reafirmou-o, diminuindo a riqueza étnica e cultural da
região e condenando os respectivos povos a uma inimizade permanente.