terça-feira, dezembro 31, 2024

A glória póstuma de José Pinhal

O fenómeno é curioso, mas já sobejamente conhecido: José Pinhal, cantor romântico de "música de baile", usando normalmente um fato branco, um bigode afirmativo e um penteado à Rudi Voeller, frequentador dos circuitos musicais sobretudo no Norte do país, despareceu num acidente viário com pouco mais de 40 anos e ficou esquecido alguns anos até as suas cassetes serem encontradas no escritório do seu agente, digitalizadas e depois colocadas no Youtube, onde se começou a gerar um pequeno culto. Surgiu um grupo de tributo para recriar em palco as suas músicas, o José Pinhal Post -Mortem Experience, e desde então Pinhal conheceu postumamente a popularidade de que nunca gozou em vida, sendo mesmo objecto de um artigo do Guardian


Celebridade após a morte: o obscuro cantor popular português que é notícia  em Inglaterra – NiT

Vi a banda-tributo há meses, por alturas dos Santos Populares. Uma enorme multidão cantava de cor as músicas, para mim até então quase desconhecidas, transformando Pinhal numa autêntica estrela pop de além-túmulo e os músicos ali presentes nos seus mensageiros. Aí consegui ver o verdadeiro fenómeno em que se tornou este músico pouco conhecido no seu tempo e fora de moda para os parâmetros actuais e o culto que se gerou. Nos meses seguintes tornei a ouvir as músicas e a ver gente a trauteá-las de cor e salteado, sobretudo da meia-idade para baixo.

Toda essa descoberta inevitavelmente levou-me a pensar: e se Pinhal tivesse sobrevivido? Teria continuado nos seus circuitos de baile e ficado meramente conhecido nas festas de verão e em algumas danceterias (sim, ainda as há), com algumas cassetes editadas, daquelas que se vendem nas roulottes? Ou teria aproveitado a onda "pimba" que se gerou depois e alcançado o sucesso, sendo chamado regularmente para programas de tarde de fim de semana da TVI e SIC? Não tenho a menor dúvida de que não teria o êxito actual, sobretudo entre os mais novos. A sua morte, o seu relativo desconhecimento em vida, a descoberta do seu espólio e o crescimento paulatino da sua música criaram este culto, o de um homem que não conheceu a fama em vida e que por vicissitudes várias se tornou famoso postumamente. Não é caso único, o de encontrar sucesso muito tempo após a morte (e recorda também um pouco o de Sixto Rodriguez, que o teve em vida mas ainda a tempo de o saber), mas falamos de um conjunto de factores que permitiram que um homem relativamente desconhecido, com imagem ultrapassada e música fora de época gerasse este fenómeno de popularidade. Para isso permitiu também um certo revivalismo dos anos oitenta e noventa e o crescente interesse e consumo de música portuguesa, aliados a algumas tendências hipsters (também elas agora um pouco em baixo). Mas não haja a menor dúvida: a morte de José Pinhal, desencadeando todos estes passos, é que lhe deu o passaporte para a glória póstuma. Paz à sua alma, que a obra não a tem e continua a circular por esses palcos fora. 

 

Bom 2025 a todos. O possível.

terça-feira, dezembro 10, 2024

Notre Dame de Paris

 A look at 5 years of restoration work at Notre Dame cathedral in Paris

 
 
A restored Notre Dame cathedral is unveiled days before its official  reopening : NPR
 
Uma semana depois das autoridades e dos trabalhadores a poderem visitar, o interior da Catedral de Notre Dame reabriu, enfim, em dia da Imaculada Conceição, e voltou a rezar-se missa. Cinco anos depois do incêndio que quase a consumiu, a "igreja mãe dos franceses" está mais sólida do que nunca, reconstituindo-se sem concretizar alguns projectos inovadores mais duvidosos, (felizmente).
 
 
Este momento tão simbólico e grandioso acontece numa semana em que o governo de França caiu e desencadeou nova crise política, agravando a orçamental e financeira. A fuga para a frente de Macron levou a que a Assembleia Nacional ficasse espartilhada entre um bloco de esquerda que vai desde anticapitalistas declarados a socialistas de centro-esquerda, com a tutela dessa mistura de Robespierre com Mitterand que é  Mélenchon, um de direita radical (outra amálgama de desiludidos da política, neo-pétainistas inconfessos, legitimistas fora de prazo, ex-esquerdistas desesperados e gaulistas "contratados"), o que resta da direita tradiconal e o próprio bloco de centro macronista. Um governo que levou dois meses a formar-se durou apenas três e o seu chumbo, bem como do orçamento obrigatoriamente austeritário mergulha a França numa crise financeira.
 
Mas isto é uma reprodução fiel da personalidade de França: um país que quando atravessa graves crises consegue sempre reinventar-se e dar a volta por cima. Apesar de problemas internos, só este ano organizou uns Jogos Olímpicos, uma das maiores montras de tudo o que quer ser potência, e reabriu a catedral da capital, não por acaso conhecida em todo o mundo. Um pouco como depois da humilhante derrota na guerra Franco-Prussiana e da revolta da Comuna, em que em poucos anos pagou-se a dívida de guerra, reconstruíram-se os edifícios destruídos pelos communards (excepto as Tuilleries) e ainda se organizou uma enorme feira mundial, para dar conta da pujança do país, ou como a Paris do pós-II Guerra, em austeridade e carência, voltou a ser o farol para meia intelectualidade mundial.
 
Aquando do rescaldo do incêndio, Macron prometeu que em 5 anos a catedral estaria reaberta. Passaram-se 5 anos e meio e eis a promessa concretizada, com empenho político e o grande trabalho de engenheiros, operários, artesãos e todos os trabalhadores que contribuíram para este dia. E penso naqueles que, ao anoitecer daquele dia de Abril em que as chamas ameaçavam destruir Notre Dame, oravam e rezavam nas margens do Sena. As suas preces foram atendidas.
 
PS: compareceram inúmeros chefes de estado e de governo na cerimónia. O Papa mandou saber que não poderia ir, a única verdadeira nota dissonante. Portugal estava representado pela Secretária de Estado da Cultura. Um tal acontecimento numa das cidades com mais portugueses e luso-descendentes não mereceria representação de mais altas instâncias?

segunda-feira, dezembro 09, 2024

O fim de um regime que já ninguém apoiava

Ontem os rebeldes sírios tinham tomado Homs e estavam literamente, na "estrada de Damasco". Hoje acorda-se com a notícia da tomada da capital, quase sem resistência, e com a queda do regime e fuga do clã Assad e estado maior (tiveram mais sorte que Saddam e Kadhafi). De há uns anos para cá ficou a ideia de que o regime baathista/assadista tinha ganho a guerra e dominado os seus inimigos, pelo menos em boa parte do país. Em poucas semanas o jogo virou e o regime caiu. O que vem aí pode não ser bom; o que acabou não era de certeza absoluta.


Mas isto serviu para uns tira-teimas: o regime de Assad, que muitos garantiam ser imensamento apoiado pelo povo sírio, caiu quase sem ninguém que o defendesse. Viu-se o "apoio popular": uma enorme farsa, mantida pela violência. Só era sustentado pela ajuda iraniana e pelo Hezbollah, que severamente macerados por Israel não lhe puderam agora acudir, e pela Rússia, que virada totalmente para a guerra na Ucrânia também se viu impotente. É a confirmação de que a Rússia, como já se tinha visto ao falhar à Arménia pelo Nagorno Karabakh, não tem capacidades reais para acudir em vários tabuleiros e que é uma potência com pés de barro. Aliás, depois dessa guerra com a Arménia (que por causa disso se virou para ocidente), é o segundo triunfo dos proxys da Turquia sobre os da Rússia.

Os turcos são os grandes vencedores do momento, mas Israel também colhe os louros. O Irão e a Rússia são os grandes derrotados. Veremos o que ganhará ou perderá o Ocidente, já que os curdos, que apoiam, serão com certeza hostilizados pelos pró-turcos, apesar de também eles terem conquistado território e material militar.

Tudo isto, curiosamente, num dia de grande significado para a França, antiga potência administrativa da Síria. Fica-se com a dúvida se o pais se manterá ou se é mesmo para dividir, como aliás era o plano em 1920.



quinta-feira, dezembro 05, 2024

Barnier, o Breve.

Precisou-se de dois meses para escolher e formar o governo Barnier. Só durou três.

Mas convenhamos que apesar de todas as responsabilidades de Macron e das suas maquinações políticas, os grupos da LePen (que tinha aprovado o governo) e Melenchon têm a fatia maior de culpa na queda do governo. Parece que não percebem que as finanças de França, a dívida crescente e o défice descontrolado ultrapassaram o suportável, tal como não tinham percebido que a segurança social não se aguenta nos moldes actuais. Que ocupem o governo e que mostrem que são melhores. Até porque dificilmente arranjam alguém melhor que Barnier.

Que Notre Dame, em vésperas da reabertura da sua igreja, os ilumine que bem precisam.




quarta-feira, novembro 27, 2024

25 de Novembro, 49 anos depois

As cerimónias de 25 de Novembro, as primeiras que houve, foram meramente protocolares, sem grandiosas manifestações nem descidas das avenidas, mas francamente também não serviram para isso. Contudo, teve graça ver alguns a fingirem ser o que não foram há 49 anos, como o PS, que fugiu da comemoração dos factos de 1975 para os quais contribuiu mais do que qualquer outro partido, fingindo não ser nada com ele, até Pedro Delgado Alves, o tribuno da ocasião (podiam ter posto algum deputado que falasse mais devagar: Delgado Alves parece estar sempre a ler recomendações de medicamentos, tal a velocidade), desculpar-se com um "para o ano é que é importante".

O Chega, pelos ditos de Ventura, parecia ter sido o autor do 25 de Novembro, ou que o Grupo dos 9 eram todos filiados no movimento, até contraditoriamente dizerem que "a corrupção começou a partir daí" (como se antes não houvesse). Daqui a nada dizem que "não era para isto que fizeram o 25 de Novembro". Sabiamente, o General Eanes, ao ouvir Ventura saudar o seu nome, fingiu que nem estava ali.
O PCP nem apareceu, supostamente revoltado pelos "comunismo nunca mais", embora na realidade deva ao 25/11 a sua existência e até influência durante muitos anos, ou não tivesse recuado na altura ciente de que em caso de confronto iria apanhar por tabela. Em parte Cunhal reconheceu isso.
Os outros estiveram mais ou menos dentro das disposições do que se lhes pedia, confirmando o Bloco, pela irada Mortágua 2, o seu saudosismo pelo PREC e pela reforma agrária, Deus os acuda.
Do pouco que ouvi, bom discurso do Presidente da AR, na senda de um trabalho que tem sido bastante digno, e discurso pedagógico do PR, que se lembra bem dos factos.
Merecidas, sempre, as homenagens ao general Ramalho Eanes (só não se levantou numa), que na ausência de todos os outros vultos os representou com a dignidade de sempre, mostrando de novo que o 25 de Novembro não era uma nova revolução mas sim um ajuste necessário, e que por isso se deve comemorar serenamente e na justa medida.
Esperemos, pelos 50 anos, daqui a um ano se Deus quiser.

quarta-feira, novembro 20, 2024

Uma igreja para os pobres

No Dia mundial do Pobre, onde é que a Igreja tem de estar? Entre os pobres, precisamente. E não só neste dia.

E em zonas onde os laços familiares, comunitários, institucionais, etc, (clubes recreativos, desportivos, culturais, até mesmo o bar da esquina, como se pode ver com os Pubs nas ilhas britânicas) não abundam, levando a ainda mais marginalidade, pode ter um papel ainda mais importante e agregador.

quarta-feira, novembro 06, 2024

Trump, de novo

Analisemos: um tipo que não reconheceu uma derrota eleitoral sem dar provas disso e que inspirou um assalto ao Congresso nacional do seu país, pondo em risco de vida o seu próprio vice, e com inúmeros processos à perna, acaba de ser reeleito presidente por números que não deixam grande margem para dúvidas, para além de ter ganho o Congresso e o Senado. Como já tinha superioridade no Supremo Tribunal, podemos dizer que um homem com tendências cesaristas e autoritárias tem na mão o poder executivo, legislativo e judicial dos EUA, pulverizando o sistema de contrapesos políticos que equilibra os EUA, ou seja, vai poder fazer o que quiser, inclusindo auto-indultar-se.

Para além disso, e o que é pior para nós, é um isolacionista que pouco conhece do mundo, justamente quando alguns dos aliados tradicionais dos EUA enfrentam ameaças e guerras que colocam a sobrevivência do seu modelo político e social em jogo. O isolacionismo é uma corrente antiga e poderosa nos EUA, mais nos republicanos que nos democratas, mas não haveria altura pior do que esta para ser posto em prática. Para além disso, os elogios a Putin, Netanyhau, Xi Jiping e Kim Jon Un revelam muito das suas referências. Significa isto que a Ucrânia perderá grande parte do apoio americano, ao passo que Israel terá respaldo para fazer o que quiser. Pode significar o corte da aliança militar entre Europa e EUA e o fim de uma relação que vinha desde a II Guerra. Não é apenas alguns países da NATO, como o nosso, não contribuírem com 2% do PIB para a defesa. Antes fosse. É realmente um corte com a NATO e a Europa, aumentando ainda mais a possibilidade de guerras futuras.
Em suma, Donald Trump II, com poder quase absoluto nos EUA, será provavelmente o primeiro presidente (descontando o primeiro mandato) que não é amigo da Europa, para ser simpático. Kamala também não o seria, ao contrário de Biden, mas Trump promete vir a ser muito mais hostil. Isto diz muito tanto das prioridades do actual Partido Republicano como de boa parte dos americanos desde há muito (veja-se como Bill Clinton, com o seu "it´s the economics, stupid", venceu um George H. Bush que estava em grande no plano internacional), como da incompetência do Partido Democrata que não se soube rejuvenescer, ao convencer tardiamente Biden a desistir e a lançar a incógnita Kamala, que subiu nas intenções de voto graças à convenção que a entronizou e ao debate com Trump, mas que se revelou quase monotemática, vazia e pouco carismática. E chegamos ao belo resultado que o mapa vermelho dos EUA nos apresenta.



The new Tory boss

Enquanto esperamos pela eleição nos States, houve outra mais discreta, no fim de semana, precisamente no país que originou os Estados Unidos: Kemi Badenoch é a nova líder do Partido Conservador. Qual o interesse? Segundo as teorias da interseccionalidade publicitadas pela nova esquerda, todos os oprimidos, na base dos quais estão as mulheres negras, devem unir-se e combater todos os opressores, no topo do qual estão os homens brancos, ocidentais, heterossexuais, etc. O problema? É que nem todos os oprimidos vão nessa. Alguns, imagine-se, são opressores por outras vias e Kemi Badenoch é mulher, negra, e abomina essa teoria assim como toda a cultura Woke. É mesmo considerada da ala direita dos conservadores.

Resultado: as mulheres negras já ocupam lugares de topo nos países ocidentais (e talvez muito em breve haja outra, não exactamente negra) sem terem recorrido a qualquer revolução armada. Se isto é complicado para os defensores da interseccionalidade, como a inefável Katar Moreira, talvez seja tempo de se debruçarem sobre a natureza humana. A literatura clássica ajuda. Talvez encontrem algumas surpresas.



terça-feira, novembro 05, 2024

A presença dos Reis

Ainda sobre a recepção violenta às autoridades espanholas em Valência, parece claro que se deveu sobretudo aos membros do governo regional e a Pedro Sánchez. Seria ridículo assacar culpas aos soberanos que não têm a tutela da protecção civil e que estavam lá a prestar solidariedade.

Mas pelo arremesso de algumas pedras e lama, houve certamente reacções dirigidas ao Rei e à Rainha. Não é de espantar assim tanto. Naquele desespero, naquela impotência de se acudir aos vivos e desenterrar os mortos da lama, qualquer vislumbre de autoridade pode tranformar-se no bode expiatória das desgraças à vista. Acresce que em Espanha há alguns elementos anti-monárquicos profundamente radicais, cuja motivação ideológica (ou niilista) transcende a do desespero do momento. É bem possível que lhes tenha dado para a selvajaria, ao ver ali o objecto máximo do seu ódio.
Certo é que Sanchez e os elementos do governo regional se puseram a andar e Filipe e Letizia ficaram, cumprindo o seu dever como soberanos: consolando as vítimas e representando o Estado e a solidariedade do povo espanhol para com elas, também visível pelos milhares de voluntários que para lá se deslocaram, muitas vezes antes da própria ajuda estadual.



sábado, outubro 26, 2024

Marco Paulo

A quantidade de posts e homenagens a Marco Paulo dá bem conta a importância musical que teve nas últimas décadas. Por muito que dissessem que era rústico, piroso, etc, teve um sucesso musical brutal como poucos neste país e de certa forma era um ícone social dos últimos 50 anos (talvez agora nem tanto, mas a extensa trunfa era só por si icónica). E era uma personagem, com aqueles caracóis, o menear do microfone e algumas atitudes um pouco irritantes de "Diva", que também demonstrou em algumas exibições mais recentes. Em tempos disseram dele que "era a maior fraude do país". Se era, geriu-o com inteligência e calculismo.

Vi-o em actuação uma única vez, em Caminha. Mantinha a pose ensaiada, mostrava a devoção que sempre o acompanhou e, facto inegável, tinha uma voz incrível - essa não era fraude nenhuma. E o certo é que encheu completamente a praça central da vila.
Estava muito longe de ser um fã ou simpatizante, mas só por pedantismo se pode negar o impacto social e cultural que teve durante décadas. As notícias recentes tornaram a sua morte pouco esperada. Que tenha enfim encontrado Nossa Senhora, pela Qual nutria uma imensa devoção.










segunda-feira, setembro 30, 2024

O fim das livrarias do centro da cidade

A Fnac de Sta Catarina fechou hoje, para dar lugar a uma Primark, no edifício Palladium. Era um fim anunciado há meses, mas não deixa de provocar um sentimento de vazio. Era uma espécie de "homónima" portuense da Fnac do Chiado, uma loja-âncora em plena baixa. Nos últimos dias, quando por lá passei, já dava sinais de fim de época e de mudanças, sem boa parte dos produtos e com alas fechadas.

Desde que abriu, seguramente no início do século, por junto passei lá muitas horas, desde que os CDs, que eram aos milhares, ainda eram a melhor foma de adquirir música. Se pensarmos bem, uma Fnac naquele local era uma sorte, um luxo, aparentemente, já que a Baixa está reduzida cada vez mais, tirando as instituições públicas, a cafés, restaurantes, marcas para turista ver e hotéis (está planeado outro para o edifício de cor bordeaux em frente). Dizem vozes amigas que estão à procura de novo local para a reimplantar. Espero e estimo que o consigam, porque as rendas das Primarks desta vida estão cada vez mais difíceis de suplantar. Até lá, quem quiser comprar livros naquelas paragens sempre se pode socorrer à excelente Livraria Latina, quase em frente.

PS: incrivelmente, a Latina também vai fechar. Com excepção da Bertrand da rua da Fábrica, a Baixa fica SEM UMA ÚNICA livraria, tirando um ou outro arfarrabista. Já teve várias, e prestigiadas, mas a Leitura é agora um bar e a Lello, essa, é um museu instgramável com armadilha para turistas de Harry Potter.

quinta-feira, setembro 19, 2024

Os fogos

Uma hora e pouco de viagem e deu para ver numerosos incêndios, sobretudo no Marão, onde helicópteros atacavam as chamas que ocupavam toda uma ravina. Noutros pontos era mais complicado, mesmo para meios aéreos. O ar estava completamente esfumaçado, formando um nevoeiro denso e sufocante.

A partir de amanhã a chuva deve ajudar a afastar todos estes fogos malsãos e a dar tréguas às populações e bombeiros. Entretanto, nas caixas de comentários vêem-se sobretudo coisas como "era apanhar estes incendários e fazê-los pagar na mesma moeda", "enquanto não apanharem os culpados não temos paz", ou as variantes ideológicas, como "a culpa é das celuloses que plantam eucaliptos/madeireiros/gente paga pelos partidos adversários/exploração mineira, etc" (riscar o que não interessa). Não tenho dúvidas de que haverá por aí muita mão criminosa e alguns interesses pelo meio (se bem que tenha dificuldade em perceber isso do ponto de vista dos reacedimentos: como é que num terreno irrespirável e queimado, com pouco combustível, alguém tenta reacender um fogo, para mais correndo um risco tão grande?), sobretudo quando os fogos deflagram de madrugada. Mas temo que isso também sirva para desculpar a negligência grosseira de muito portuguesinho que põe-se a fazer trabalho de campo quando não pode, senão até a fazer queimadas, a atirar o cigarro para a berma da estrada, onde cresce mato seco, ou, como aconteceu na Madeira, a lançar foguetes quando tal estava proibido.
Mas seja crime, seja negligência, não pode estar aí a causa única. Os portugueses do Sul não são melhores nem piores e aí os incêndios rareiam mais. Ouvindo a entrevista a Henrique Pereira dos Santos, um dos grandes especialistas na matéria, volto a ouvir a mesma explicação: a agricultura tal como era feita até há 60, 70 anos quase desapareceu. A migração para o litoral e o estrangeiro desertificou boa parte do interior do país, que tirando uns breves anos com a recepção de "retornados" de África, perdeu imensa população. E quanto mais para a "raia" com Espanha, pior. Cingindo-me ao Norte e Centro, olhando para os censos a cada década (na Wikipedia), veja-se por exemplo Vinhais, que tinha 26 mil habitantes em 1960 e agora tem menos de 8 mil; o Sabugal tinha quase 40 mil e agora pouco passa os 10 mil; e Montalegre, de 32 mil para 9 mil. A pastorícia quase desapareceu, os campos foram invadidos por mato, e por mais que se ouça que "os proprietários têm de limpar os seus terrenos", olhem para a densidade populacional e para a faixa etária que caracteriza esses concelhos e vejam se é possível.
Dificilmente se conseguirá inverter nos próximos anos o declínio populacional e o ordenamento do território nessas regiões envelhecidas e escassamente habitadas. Até lá, e mesmo que haja melhorias, como já tem havido (apesar de tudo isto ficou longe da trágida de 2017), o fogo só dará tréguas em anos de maior pluviosidade e sem invernos secos. E continuarão a ouvir-se os resmungos contra "os verdadeiros culpados". Como sempre, as soluções são bem mais complexas e não envolvem polícia.
Adenda: ver João Miguel Tavares e Manuel Carvalho, hoje no Público, que vão na mesma direcção.



sexta-feira, setembro 13, 2024

Sexos por gêneros

Definitivamente já não há sexos, só há gêneros. Aí está no vocabulário, a prová-lo. A palavra gênero extravasou e ocupou quase totalmente o lugar que dantes era dos sexos. Exemplos: alguém escreveu num jornal que a filha de um chefe de estado africano se tinha declarado bissexual, o que significava que "apreciava pessoas de vários gêneros".

Mas a melhor para mim é ter visto, por mais do que uma vez, que não sei quem tinha efectuado uma "operação de mudança de gênero". Fico a pensar como raio se pode operar o gênero. Tendo em conta que parte de pressupostos mentais de identificação, calculo que uma "operação de mudança de gênero" só possa ser uma lobotomia.

domingo, agosto 25, 2024

24 de Agosto, dia de início da Libertação de Paris

Há anos que tinha este livro na prateleira, pronto para ser lido. Resolvi-me finalmente a lê-lo neste Verão. Uma escolha feliz do subconsciente para a época, porque de repente uma notícia recordou-me que passam hoje exactamente 80 anos que a coluna blindada do general Leclerc entrou na cidade iniciando a Libertação de Paris, na madrugada de 25 de Agosto de 1944. Pena não ter sido um dia mais cedo, porque poderia sempre dizer que o meu dia de anos coincide com o de Paris libertada.







segunda-feira, agosto 19, 2024

Delon e Pivot

E já que as redes sociais se inclinam perante a morte de Alain Delon (justamente), eis um "questionário de Proust" feito ao mesmo por Bernard Pivot, também desaparecido este ano, e que fica assim como homenagem aos dois

terça-feira, agosto 13, 2024

Tristes ironias olímpicas

Não me consigo decidir se a morte de José Manuel Constantino, presidente do COP em dia de encerramento de Jogos Olímpicos, para mais aqueles em que Portugal obteve os melhores resultados de sempre, algo inesperados, é de uma ironia cruel ou de justiça poética. Porque se por um lado soa a injustiça, por outro um dirigente olímpico não devia pedir melhor dia para morrer, caso escolhesse, do que o cair do pano de uns jogos olímpicos com troféus assinaláveis, para os quais certamente contribuiu. Espero que pelo menos tenha conseguido ver a magnífica vitória de Leitão/Oliveira em Madison, de que eu próprio só apanheio o final.

E os JOs acabaram com uma cerimónia que, pela ausência de falatório, não se deve ter revestido das polémicas blasfemas" e "terroríficas" (para mim o ponto baixo é a parte da cabeça de Marie Antoinette a cantar o "Ça ira"), com a chama olímpica a deixar a Montgolfière no cenário imponente das Tuilleries/Louvre e a passar o testemunho a Los Angeles.
E por falar em medalhas portuguesas e Los Angeles: passaram hoje precisos 40 anos que Carlos Lopes ganhou a medalha de Ouro ao ganhar a maratona num novo tempo recorde, aos 38 anos e semanas depois de ter sido atropelado. Um dos maiores feitos desportivos portugueses, na cidade que voltará a acolher os jogos daqui a 4 anos

sexta-feira, julho 26, 2024

Jogos, política e efemérides

Há semanas acabou o Euro 2024 no Olímpico de Berlim. Hoje começam os Jogos Olímpicos em Paris, 100 anos depois da mesma competição na mesma cidade.

O dito estádio serviu de cenário à dita competição nos famosos jogos de Berlim em 1936, dos mais politizados de sempre, com Hitler a sair da tribuna para não condecorar o atleta negro Jesse Owens. Foram amplamente testemunhados, filmados e documentados por uma senhora cuja biografia acabei de ler há dias e que deve ter sido das últimas intervenientes do evento a ainda viver no século XXI.



Adenda: Vi um pouco da cerimónia de abertura dos jogos Olímpicos, sobretudo para ver a equipa portuguesa. O desfile no Sena teve pompa e originalidade, mas há lá coisas que se dispensavam. A dada altura, houve uma sequência de homenagens a algumas das mais ícónicas mulheres francesas. Estive à espera de Joana d'Arc, mas nada. Seria Simone de Beauvoir mais importante? Muito antes da "republique" já havia França.

quinta-feira, julho 25, 2024

N´América

Em 30 dias, as expectativas eleitorais americanas deram mais reviravoltas que uma montanha russa (e a expressão russa não está aqui por acaso): debate na TV que expôs as fragilidades de Biden, atentado que raspara na orelha de Trump e previsão de que este já teria ganho as eleições, à frente em todas as sondagens; desistência de Biden, aclamação de Kamala e a subida nas sondagens desta última.

Tenho as maiores dúvidas de que a vice-presidente, com uma actuação sofrível e proveniente da esquerda do partido democrata seja candidata ideal do seu partido para derrotar um Trump que ainda está agraciado pelo seu partido, mas já não digo nada.
Entre Trump e Kamala, preferiria um Biden meia dúzia de anos mais novo e sem problemas cognitivos. Seria sempre menos polarizador, menos isolacionista e muito mais próximo da Europa.
Apesar de tudo parece haver uma réstia de juízo: Kamala atacou quem nas manifs dos EUA contemporiza com o Hamas e Trump pediu um cessar-fogo em Gaza

terça-feira, julho 09, 2024

Peões de Putin

Eis uma das razões para não se lamentar a derrota do RN em França: é que o regime putinista apostava na sua vitória (Melanchon também não era mal visto pela Rússia, mas está mais controlado).

O que não impede de se achar profundamente estúpido certas coisas que os apoiantes da Nova Frente Popular invocavam, como voltar a baixar a idade da reforma para os 60 anos - nem sequer são os 62 de antes da última alteração. Continua a haver em França quem não saiba fazer contas, quem pense que os direitos não têm deveres correspondentes ou que ainda viva sob a máxima do Maio de 68 "é proibido proibir".



sexta-feira, julho 05, 2024

O carrasco do costume

E pronto, a França voltou a ser a Bête Noire da selecção e a vencer sem convencer nem merecer. Mas ao menos Deschamps teve a giragem de tirar Mbappé quando era devido.

Ronaldo esteve de novo uma perfeita nulidade. Em cinco jogos, dois com prolongamento, consegue o feito de marcar zero golos. Felizmente para o seu clube de fãs, João Félix falhou o único penalty. Pelo que vou lendo, já têm o bode expiatório que queriam. E se Portugal se classificar para o próximo mundial, lá o teremos de novo, sob a aura de "melhor do mundo". Até lá, a selecção não voltará a ser uma equipa a sério.

Quanto à França, uma desilusão. Só com muita felicidade ultrapassam a Espanha, mesmo faltando a esta alguns titulares

sábado, junho 29, 2024

A nova imagem externa da UE

No meio de tantos encómios e "felicidades" pela escolha de António Costa para presidir ao Conselho Europeu, não vi quase ninguém falar da outra estreante em altos cargos, a estoniana Kaja Kallas. E erradamente, a meu ver. Se há uma coisa que se pode prever desde já é que ela não vai dar má imagem à política externa da UE.




















quinta-feira, junho 13, 2024

Rescaldo das europeias

As europeias já ficaram para trás, mas há lá coisas que me continuam a intrigar. Por exemplo, o facto de o PS ter voltado a ganhar com uma cabeça de lista sofrível (embora não tanto como o esquecido Pedro Marques). Como é que Pedro Nuno Santos pode afirmar que ao ficar em primeiro lugar o PS é "o maior partido nacional"? São as europeias que determinam isso? É que nem o PS europeu ficou em primeiro e até baixou. A única coisa que PNS pode festejar é o facto de ter evitado a 4ª derrota seguida e portanto ter ganho algum fôlego. E no entanto talvez tenha convencido Montenegro, que, num amaciado discurso eleitoral, deu-lhe algumas benesses, com o apoio à candidatura de António Costa ao Conselho Europeu e os elogios ao trabalho de José Luís Carneiro. Abstenção do PS ao próximo orçamento à vista?

Outra coisa intrigante é a "vitória não tão grande assim" do Chega. Só mesmo os fanáticos que seguem Ventura faça sol ou faça chuva, diga ele o que disser, é que corroboram. A comparação com as europeias de há 4 anos fazem pouco sentido, tendo em conta que entretanto houve 3 legislativas e na última tinham tido o dobro dos valores, que colocaram a fasquia em 4 eurodeputados no mínimo e em que até o seu grupo no PE cresceu muito menos do que o esperado. É que nem vitória pírrica houve.
Vitórias pírricas tiveram também o BE e a CDU, que conseguiram à última segurar o lugarzinho, mas não disfarçam a sensação de perda contínua. O Livre ficou próximo mas à porta, sendo por isso um dos derrotados, embora não tanto como o PAN, que conseguiu ficar atrás do ADN (mais enganos?). Já Sebastião Bugalho atingiu o número a que se propunha, mas como ficou em segundo, teve uma derrotazinha. Cotrim e a IL são mesmo os que tiveram mais razões para sorrir, só faltando mesmo ultrapassar o Chega.
Mas resultados nacionais? Tirem daí a maior parte do sentido.

PS: Mas o vencedor do fim de semana ficou conhecido ainda antes das eleições, logo no Sábado: Jarvis Cocker, evidentemente. Pena o Brexit, senão teria votado nele para o Parlamento Europeu.






quarta-feira, maio 01, 2024

Novo (FC) Porto?

Não é de todo a minha "colectividade", mas vivo no Porto e a coisa não me é totalmente indiferente. Obviamente não desejo felicidades desportivas a André Villas Boas. Mas só o facto de não ter sido apoiado por Macacos, Pidás e restante súcia e de se ter rodeado de gente minimamente normal já valeria sempre a pena. Espero que corte de raiz com isso, o que parece provável vistas as ameaças que recebeu, e que tenha sido o canto do cisne para certas pessoas que só davam mau nome à cidade e região do Porto. Já tardava.

quinta-feira, abril 25, 2024

25 de Abril sempre

Num dia saturado de 25 de Abril, como não poderia deixar de ser. faço apenas a homenagem a Salgueiro Maia, que bem merecia ter continuado cá mais uns anos: um homem que deu o peito às balas no 25 de Abril, arriscando perigosamente a vida (que teria perdido não fosse a desobediência do alferes Sottomayor); que, facto pouco conhecido, pôs-se à disposição de Ramalho Eanes pouco antes do 25 de Novembro; e que nunca pediu nem recebeu qualquer recompensa, honraria ou homenagem em vida.

Como se pode ver, tomou sempre as opções certas desde pequenino.



terça-feira, abril 23, 2024

José Maria Brito (1976-2024)

Muitas coisas poderia dizer e recordar do José Maria Brito, com quem raramente estive nos últimos anos, dada a dinâmica da sua vida, embora recorde o livro sobre o Conde de Lippe que ele e o Luís me deram há um ano, da autoria do seu tio António Pedro Brito, infelizmente também já desaparecido, numa comemoração do Ponto SJ, de que o Zé tinha sido fundador.

Mas o que considero que pode ficar como legado é a última frase que ele deixou na sua página de FB: "Abnegar-se é também não permitir à dor que tenha a última palavra".
Parece terrivelmente premonitório vinda de quem vem, mas é ao mesmo tempo uma frase de resistência, de esperança e obviamente de abnegação. Além de todo o trabalho, acções, exemplos e recordações que o Zé Maria Brito nos deixou, que esta frase nos fique em momentos em que a dor parece sobrepor-se a tudo, como este. E que sirva acima de tudo de amparo e força à sua Mãe e ao seu Irmão.
Abnegar-se é também não permitir à dor que tenha a última palavra...





domingo, abril 21, 2024

Portugal retro-futurista

Poor Things (Pobres Criaturas) é provavelmente o primeiro filme de grande distribuição internacional em que o nome das duas principais cidades portugueses é referido. Veja-se: Lisboa é um dos locais da acção, o seu nome é aludido, ao mesmo tempo que uma personagem pede um Port(o). Depois, a imagem da foto mostra-nos uma Lisboa retro-futurista, a lembrar aqueles projectos de como no Séc. XIX se imaginava que seria o futuro, com enormes geringonças a vapor pelos céus. Mas olhem para os edifícios à direita na foto: em primeiro plano, o Convento do Carmo. Atrás aparece claramente a Sé do Porto. Uma imagem de uma Lisboa alternativa em que o Porto não fica de fora.



quinta-feira, abril 18, 2024

Notre Dame recordade e reconstruída

Esta semana revi um filme de há apenas dois anos sobre um acontecimento ocorrido há cinco: Notre Dame Brûle, no original. Na altura não me lembrei logo que passavam 5 anos do pavoroso incêndio da igreja-mãe dos franceses. O filme assou discretamente nas salas, apesar de ser de um cineasta consagrado, Jean Jacques Anaud, e é pena. Com emoção e adrenalina q.b., mostra todo o processo do incêndio e as dinâmicas dos intervenientes: dos bombeiros para apagar as chamas sem provocar o colapso de todo o edifício, embora não evitando a destruição da flecha central, dos responsáveis de conservação para salvar as relíquias lá guardadas (com algumas cenas burlescas, como a vinda desesperada do curador para apanhar um comboio suburbano para Paris), das autoridades e das decisões difíceis a tomar, dos parisienses e a sua angústia e dos fiéis e a sua fé, reunidos em vigília e orando frente à catedral.

 
Lembro-me de, quando se abriram as portas, a nave central estar coberta de escombros, cinza e água, mas de se ver nitidamente a cruz do altar-mor. Ainda pairou o receio de as estruturas cederem e a fechada colapsar, e, optimisticamente, esperava-se uma reconstrução possível para quase dez anos. Macron prometeu que seriam cinco. Entretanto, o desastre deu origem ao filme descrito supra e até uma série francesa na Netflix.
 
E a verdade é que 5 anos depois as obras estão mesmo a ser concluídas e a abertura da catedral totalmente reconstruída está prevista para 8 de Dezembro, dia da Imaculada Conceição, com a presença do Papa. Os cinco anos cumpriram-se e até já há nova "flecha" a substituir a erguida por Violet le Duc. Houve projectos de inovações no edificado, alguns de fugir, mas contra as previsões mais pessimistas e as sensações apocalípticas desse 15 de Abril de 2019, Notre Dame de Paris vai recuperar a imagem que tinha antes do incêndio, e espero, o seu coro magnífico e os sons do  Emmanuel (o enorme sino, não o Macron). Até parece milagre.


Notre Dame em obras, Maio de 2022.

sexta-feira, abril 12, 2024

A homenagem a Sven Goran Eriksson

O jogo de ontem com o Marselha valeu por uma escassa vitória com sabor agridoce. Mas valeu muito mais por causa disto. Homenagear a tempo os que nos honraram é uma regra moral básica. Tivemos de novo o treinador que há 34 anos comandou o Benfica na mítica vitória "manual" contra o mesmo Marselha nas meias finais da TCE, com 120 mil nas bancadas.

Obrigado, grande Sven-Goran! Sempre um de nós.

terça-feira, abril 09, 2024

Identidade, família e liberdade (?)

O novo livro "Identidade e Família" tem atraído as atenções por servir de pretexto a Passos Coelho para um novo discurso político mas também porque colheu vitupérios bizarros, havendo logo quem o associasse à extrema-direita e ao conservadorismo político (que não são só são diferentes como muitas vezes se excluem, coisa que os ignorantes políticos desconhecem). Pelo que apurei, o conteúdo é muito diverso, tal como os seus autores - tenho sérias dúvidas de que Bagão Félix, Manuela Eanes, Frei Fernando Ventura, Vasco Magalhães ou Guilherme de Oliveira Martins sejam sequer próximos da extrema-direita - e há matérias que se aproveitam e outras que se dispensam.


Mas as reacções é que são de espantar. Uma delas, vinda de uma das zelotas de serviço, é de se tratar de "inimigos da liberdade". Uma jornalista chegou a insinuar que uma vez consagrados na lei o aborto e a eutanásia, opinar contra seria "ilegítimo". Ora se há uma manifestação de liberdade que se veja é precisamente a de expressão, livre opinião e debate de ideias. Ataque à liberdade é o que praticam algumas das críticas, que se pudessem proibiam o livro. E ainda dizem defenderem os "ideais de Abril". Nota-se. Até por isso a sua edição é bem vinda.


quarta-feira, março 27, 2024

O primeiro dia

As cenas ontem no Parlamento lembraram muito aqueles primeiros dias na escola.

Vimos os meninos a levantarem a sacola com os livros de estudo (entre os quais uma CRP e um Regimento da Assembleia), meninos para quem realmente era o primeiro dia e não conheciam os corredores; antigos alunos de visita à escola, emocionados com os velhos tempos a ver a placa do CDS-PP a ser reaparafusada; eleições para delegado de turma bloqueadas, com uns meninos a dizer que não havia acordo, outros a dizer que tinham sido desrespeitados e a retorquir "quem diz é quem é" (perdão, "não é não"), e os novos nomes de delegados a ser "cozinhados" na hora de recreio, que durou até mais tarde, por ordem do delegado interino, um aluno mais velho que pertence até a uma turma de meninos mais veteranos e que já quase não tem alunos

sábado, março 23, 2024

Acontece na Rússia

Os atentados na Rússia tinham na cara o modus operandi dos jiadistas, foram reivindicados pelos jiadistas, mas o habitual bobo de serviço, Medvedev, veio logo dizer que tinham sido os ucranianos.

Lembra os atentados de Madrid, em 2004, em que o governo da altura acusou a ETA quando já se tinha percebido que tinha sido a Al Qaeda. E pagou por isso nas urnas.
A sorte dos governantes russos é que as eleições já passaram (e daí talvez não, porque o resultado seria igual)

quinta-feira, março 21, 2024

O Chega não é o PRD. Mas também pode ser.

Nas reacções aos elevados números alcançados pelo Chega nas legislativas veio logo à memória o PRD - que, em 1985, acabado de nascer, teve logo 18% e 45 deputados - seguido de numerosas negações das semelhanças, começando, como seria de esperar, por elementos do próprio Chega ou terceiras figuras do PSD que desejam a coligação com este último, mas também da parte de colunistas, como um recente artigo de João Miguel Tavares.

E, de facto, há inúmeras diferenças: o tempo é outro, a ordem internacional é completamente diversa, o PRD era uma organização muito personalizada no General Eanes (que aquando desse estrondoso resultado nem podia estar no partido por ser o Presidente da República em exercício), ideologicamente pouco consistente (andaria ali pelo centro-esquerda e muitos elementos vinham do PS) e surgiu em pleno governo do Bloco Central, que tinha de gerir mais uma intervenção do FMI e uma austeridade talvez pior que a dos anos 2011-2014. Além disso, o PSD entrou em ruptura com o dito governo, de que fazia parte, com um novo e disruptivo líder, Cavaco Silva.

Mesmo nos resultados há diferenças, já que o Chega teve números ligeiramente melhores. Além disso, o crescimento do Chega insere-se numa onda de partidos nacionais-populistas de direita, ainda que com objectivos e dinâmicas diferentes, coisa que os renovadores não tinham nos anos 80. André Ventura, antigo comentador de futebol, não tem a aura de Eanes, do militar que enfrentou e venceu o PREC, mas tem uma vantagem: a de querer conquistar mais votos e não se fazer de rogado. O General, quando finalmente liderou o PRD, como que se intimidava no apelo ao voto. Talvez por ser demasiado honesto para o fazer. O PRD podia talvez ser considerado radical, mas de centro, como mais tarde o seria o italiano Movimento Cinco Estrelas, hoje também em refluxo.


Sim, vivemos num tempo e em circunstâncias diferentes e o Chega é programática e ideologicamente muito diferente do PRD. Mas também tem semelhanças óbvias. Começa logo na excessiva personalização do partido na figura do "líder", apesar das diferenças entre Eanes e Ventura atrás mencionadas. Depois, o voto de ambos é extremamente heterogéneo: no Chega cabem saudosistas do Estado Novo, adeptos de um sistema presidencialista à americana, exilados oportunistas do PSD e do CDS, elementos de "boas famílias" ligados a correntes mais conservadoras do catolicismo e aficionados aos touros, e muitos, muitos descontentes e muitas pessoas frustradas, sobretudo nas áreas suburbanas e no sul do país, que não olhando para Ventura como um salvador, votam mais por raiva, dizendo, nalguns casos mais lúcidos, que votam não para dar o poder ao Chega mas para pressionar os partidos do "centrão" à prática de melhores políticas.

No PRD votavam trânsfugas do PS ou ex-reformadores da AD, antigos esquerdistas, adeptos de um regime mais presidencialista e muitos descontentes com a terrível fase de austeridade e desesperança que se vivia. Ou seja, tirando as referências ideológicas, que aqui são as que menos contam, o tipo de eleitorado é muito parecido. Mesmo geograficamente não andam longe um do outro: se o Chega conseguiu lugares em Trás-os-Montes e na Beira Interior, ganhando no Algarve, o PRD, sendo mais fraco no interior Norte, tinha grande predominância no Ribetejo (como o Chega) e na Beira Baixa, de onde provinha o General Eanes, e ambos ganharam muitos votos nos subúrbios de Lisboa, do Porto e na Margem Sul do Tejo. 

Ou seja, o grosso dos votos vem por descontentamento das políticas seguidas e dos políticos que exercem o poder e menos por razões doutrinais. Vejam-se outras semelhanças, embora talvez mais por coincidência: o PS, antes no poder, é o que mais perde, vendo fugir boa parte do eleitorado; o PSD, agora em versão AD redux, ganha novamente com menos de 30% e terá de governar na corda bamba da minoria. E dizer-se que os eleitores já não prezam a estabilidade é uma falácia: há pouco mais de dois anos, quando o BE e o PCP chumbaram o orçamento do PS, deram-lhe uma inesperada maioria absoluta, perdendo inúmeros votos e lugares.

O apreço pela estabilidade e a "paga" em menos votos por quem derruba governos por perrice continua a ser norma. André Ventura sabe isso e por essa razão vem dizendo que tudo fará para conservar um governo estável e de quatro anos. Pedro Nuno Santos, embora na oposição directa, também dá mostras de não querer ficar com a culpa de um derrube precoce. Ainda assim, se o futuro governo se mostrar minimamente competente e Montenegro gerir a situação com habilidade, qualquer passo em falso vindo da oposição poderá ser fatal.

É por isso que não acredito que numas próximas eleições o Chega caia para os 4,9% e os escassos sete deputados que calharam ao PRD em 87, com Eanes na liderança directa, nem parece que Montenegro tenha o êxito de Cavaco (que colheu os frutos da austeridade e da entrada na CEE). Ainda assim, e com 50 deputados, alguns deles de duvidoso préstimo e comportamento, o Chega não só pode não subir mais como pode mesmo levar uma queda apreciável. Demasiado tacticismo e sede ao pote do poder conduzem a erros. Por isso, o Chega não é o PRD, mas também o é em parte.

Já agora, tecendo comparações com os partidos de meados de 80 e aproveitando a nova biografia de Francisco Lucas Pires, de Nuno Gonçalo Poças, recordo que o então líder do CDS foi o pioneiro do liberalismo político do pós-25 de Abril, e, depois dos mini-estados gerais da direita liberal que foram as sessões do Grupo de Ofir, viu o seu projecto diminuído e secundarizado pela entrada de rompante do PRD e, mais importante, de Cavaco Silva. Isto devia fazer pensar a Iniciativa Liberal, um pouco herdeira desse pensamento (embora Lucas Pires fosse mais liberal-conservador), que também estagnou nesta eleição e se encontra também ela num caminho incerto.

Sim, não estamos em 1985, mas 1985 não é assim tão completamente diferente.


Adenda: de qualquer forma, no lançamento do livro, estará um dos herdeiros políticos mais directos de Lucas Pires, Paulo Rangel, seu antigo assistente universitário em Ciência Política, e que me lembrou agora que no dia em que fiz o exame a essa cadeira, Pires, o seu regente, se filiou no PSD.