segunda-feira, outubro 04, 2004

Opiniões sobre um estado crítico

Mais uma vez menciono João Pereira Coutinho, a propósito das suas visões, exprimidas este fim-de-semana no Expresso (sem link). Na sua crónica semanal, Estado Crítico, JPC discorre sobre a eleição de Sócrates para Secretário-Geral do PS, apontando não os seus méritos mas o "fim do prazo de validade " dos seus adversários, "desde 1989". Mas não se limitando ao passadismo de Soares e Alegre vai mais longe: "o ano de 1989 representa o fim de todo um ideal "igualitário", iniciado duzentos anos antes nas tropelias de Paris". Eis de novo a Revolução Francesa posta em causa por mais um colunista (não, não me esqueci do prometido post sobre o anti-francesismo, só que leva tempo), uma vez entre muitas. JPC, que se arroga de importantes estudos sobre os grandes movimentos sociais e políticos não devia cometer erros históricos tão apressados. Pesem todas as violências, prepotências e abusos cometidos pela Revolution, ninguém de bom senso pode apoucar a enormíssima importância social do acontecimento, e das consequências que trouxe para a Humanidade. Embora muitos queiram nomear a Revolução Americana (e a inglesa!) como pioneira dos modernos regimes democráticos, o certo é que as suas bases surgiram precisamente em 1789, com os fundamentais príncípios de "Liberté, Égalité, Fraternité" e o surgimento da política tal como a conhecemos hoje em dia, com as consequentes divisões esquerda/direita - embora este conceito esteja em crise.
A liberdade e o estado democrático em que vivemos foram, repito-o, directamente derivadas da França revolucionária, e relembro-lhes que é um monárquico quem escreve estas linhas. Por muito que isso custe a JPC, os seus efeitos não se esgotaram em 1989, ao contrário dos da Revolução Russa. Mudaram, irreversivelmente, a História e o Mundo, mesmo que nem sempre a prática seguisse a teoria. Não é preciso ser um seguidor de Robespierre para perceber isso.

A seguir, o ex-Infame refere a situação desesperada de Kenneth Bigley, refém do bárbaro grupo do famigerado Al-Zarqawi. Escreve JPC : "ninguém é capaz de parar com os actos criminosos de Al-Zarqawi (...)Segundo opinião geral, o drama (...) é responsabilidade imediata de Blair ou de Bush (...) Pior: se não houvesse ocupação do Iraque, o terrorismo estaria quieto e manso (...) As vozes de acusação só servem para ilibar os responsáveis objectivos." Pois bem, há que dizê-lo: apesar dos assassínios (e não execuções, como lhes chamam) serem perpetrados por criaturas da laia do dito jordano, Bush e Blair tiveram uma imensa culpa nisto tudo. Será demais repetir que ao invadir o iraque, sob argumentos falsos e jogos de bastidores, não só massacraram todo um país como permitiram o caos e a entrada de terroristas da pior espécie, que só esperavam pela guerra para fazer do Iraque o seu quartel-general? A mortandade diária e a anarquia que reinam na Mesopotâmia são da inteira responsabilidade de quem resolveu brincar ás guerras sem o menor projecto nem ideia de organização do território quando derrubasse o regime vigente; o resultado está á vista, com os culpados lavando as mãos na suposta "guerra contra o terrorismo". Como se tal insensatez não fosse um tremendo tiro no pé. A impotência dos ocupantes vê-se quando JPC afirma não ser possível parar Zarqawi. Se assim for é porque não estão minimamente preparados para uma operação de captura eficaz, salvo despejar bombas do ar. O cronista confessa-o, algo inconscientemente: as forças da coligação perderam todo o controlo da situação. E o demónio anda á solta no Iraque, destruíndo-o a cada dia que passa.

Por fim, e destoando da opinião que mantive sobre as anteriores partes da coluna de JPC, há que reconhecer a pertinência do que ficou escrito a propósito dos 100 anos do nascimento de Graham Greene e da sua opção pelo catolicismo, ainda na sua juventude. Diz-se então: "Escolher Deus é escolher também as suas desumanas exigências: a forma como o imperativo moral pende sobre as nossas patéticas carcaças, sempre dispostas à errância e à mundaneidade".
Aqui assino por baixo: a recusa do vazio para abraçar Deus é algo de francamente difícil, ainda que serenamente ponderado. Reconhecer os princípios que sabemos próprios do Criador, ou de uma crença que o represente, e estar consciente das nossas limitações como seres humanos, e portanto imperfeitos logo pecadores, mais pesado se torna. A opção de Greene, numa altura em que todos os totalitarismos se erguiam das sombras, é assim ainda mais admirável. Por isso, pode não ter sido um modelo de virtudes cristãs (teve mais de um caso extra-conjugal), mas tentou respeitar os seus mais fundos princípios, e mais que isso, transpô-los para os livros, que criou de forma admirável, embebidos ora num fundo de espionagem em paragens longínquas ora num clima de romantismo comovente, tão insuperável como as suas páginas.

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