terça-feira, abril 12, 2022

O Kosovo da Rússia

Notícias dos últimos dias dão-nos conta de que a Ossétia do Sul vai “iniciar o processo legal para se tornar parte da Rússia” através “de uma consulta popular”. Não é propriamente uma surpresa. Este é um procedimento que já vamos conhecendo: uma dada população está a ser atacada pelas forças governamentais, as tropas russas intervêm para a auxiliar, ocupam a região “em missão de paz”, organiza-se um “referendo” em poucos dias, e a população vota pela separação e, eventualmente, para se tornar parte da Rússia. Aconteceu antes e volta a acontecer.

Um dos argumentos utilizados é o precedente do Kosovo, saído da esfera da Sérvia, país próximo da Rússia. A região era habitada por uma maioria albanesa que sofreu uma tentativa de limpeza étnica por parte de Slobodan Milosevic e dos seus apaniguados, com currículo na matéria na Bósnia, como tristemente se sabe. A intervenção da NATO impediu-o, expulsando os sérvios e colocando o Kosovo sob protecção da ONU, até que em 2008 os kosovares proclamaram a independência, prontamente reconhecida pelos Estados Unidos e por mais uns quantos estados (Portugal incluído, meses depois, mas não Espanha, por razões óbvias). Criava-se assim, pelo menos de facto, um novo estado, como que uma segunda Albânia, de duvidosas capacidades para se manter e directamente arrancado à Sérvia, que nunca o aceitou (interpondo uma ação perante o Tribunal Internacional de Justiça, que não lhe deu razão). Nem a Rússia, que daí em diante aproveitaria o “precedente do Kosovo” nos casos da Crimeia, Donbass, e, logo em 2008, nos da dita Ossétia do Sul e da Abecásia. Mas estes últimos casos já vinham de longe.

No início dos anos noventa, o desmoronamento da URSS conduziu à independência das suas 15 repúblicas federativas. Algumas já se tinham entretanto separado, o que apressou o fim daquela federação. Era o caso da Geórgia, outrora um reino independente que vinha de tempos imemoriais, e que declarou independência em meados de 1991, depois de um referendo. Mas ao mesmo tempo, aproveitando o caos reinante e fazendo ressurgir velhas questões, outras subdivisões aproveitavam para reivindicar a sua autonomia. Aconteceu isso mesmo na Ossétia do Sul, um exíguo território a norte, separado do resto do resto do Cáucaso por enormes montanhas, e da Abecásia, uma faixa de território do noroeste da Geórgia, ao longo do Mar Negro, parte da “Riviera Soviética” e que se reclamava herdeira da mítica Cólquida, que se separou do território georgiano.

As duas aproveitaram para declarar a independência, o que originou uma reação dos georgianos. Estes, por sua vez, já andavam divididos numa guerra civil desde o derrube do presidente Zviad Gamsakhurdia, primeiro chefe de estado da Geórgia independente, e as suas forças não primavam pela capacidade bélica ou tecnológica. Para mais, as repúblicas rebeldes tiveram apoios externos. A Ossétia conseguiu a sua autonomia depois de meses de dura luta. Com a Abecásia seria mais demorado.

Aquela pequena república declarou a independência no verão de 1992, liderada por Vladislav Ardzinba, um académico especializado em civilizações da antiga Mesopotâmia, e que tentava o reconhecimento por todos os meios, tendo mesmo apoiado o golpe contra Gorbachov em Agosto de 1991. Os georgianos intervieram, sob pretexto de incidentes provocados por independentistas, e controlaram a maior parte do território, remetendo o governo da Abecásia para um pequeno espaço a Norte, perto o suficiente para conseguir receber reforços. Não o fizeram sem que as suas tropas, em parte eram regimentos semi-amadores, cometessem diversos crimes, entre os quais a destruição de preciosos arquivos, como aqui nos relata Thomas de Wall, então jovem jornalista lá estacionado para fazer uma reportagem sobre os gregos do Ponto (que foram  em boa parte resgatados por uma operação naval da Marinha Grega a que sintomaticamente chamaram Operação Velo de Ouro).

Os rebeldes abecásios receberam o apoio activo de uma miríade de guerrilheiros de várias partes do Cáucaso, chamada sintomaticamente Confederação dos Povos de Montanha do Cáucaso, que se deslocou para o território qual guerra santa. A maior parte eram islamitas, e entre os seus comandantes contava-se Shamir Basayev, que começaria aqui a sua carreira de atrocidades antes de se tornar mais conhecido pelos pelo seu papel nas guerras da Tchétchénia e pelos atentados contra a Rússia nos anos 2000, sendo o mais conhecido o massacre da escola de Beslan, vitimando inúmeras crianças, e o atentado ao teatro moscovita Dubrovka.  A estes juntaram-se voluntários arménios locais, que se diziam descriminados pelos georgianos, ossetas, cossacos e militares voluntários russos. Entre combates, avanços e recuos e algumas atrocidades de parte a parte, obteve-se um frágil cessar-fogo, mediado pela Rússia, que tinha um papel dúbio desde o início. Os georgianos baixaram então a guarda, apenas para serem surpreendidos por uma investida dos abecásios e seus aliados, que em poucos dias tomaram a capital, Sukhumi, com apoio indirecto russo, que lhes forneceram boa parte do armamento. Shevardnaze, que tinha ido pessoalmente à capital da Abecásia para dar moral à população, teve de fugir apressadamente de avião, o último a sair em segurança, já que os voos que se lhe seguiram, transportando civis em fuga ou soldados, foram abatidos pelos rebeldes sobre o Mar Negro. Seguiu-se a mortandade da população georgiana, incluindo o assassínio todas as autoridades da cidade, e a fuga de dezenas de milhares de pessoas para a Geórgia (ocasionalmente foram navios russos que levaram alguns civis para Sochi). A limpeza étnica tirou metade da população à Abecásia e a maior parte da população a Sukhumi.  


A guerra da Abecásia não teve grande repercussão no ocidente, já que na altura os acontecimentos eram dominados pela guerra na ex-Jugoslávia e a crise institucional na própria Rússia, que acabaria com o bombardeamento do parlamento, onde estavam barricados inúmeros opositores nacionalistas, estalinistas e o próprio vice-presidente rebelde Rutskoy, pelas forças de Yeltsin, a que se seguiriam eleições atribuladas que dariam a vitória ao ultra-radical Zhirinovsky, morto esta semana. Passou por isso relativamente despercebido o papel dos russos nesta guerra, já que embora só tivessem contribuído com soldados voluntários do lado dos abecásios, deram aos rebeldes não só armamento como todas as condições para progredirem, nunca tendo intervindo, antes pelo contrário, para fazer respeitar o cessar-fogo. Menos evidente são as razões porque o fizeram: se ainda por vingança pela separação da Geórgia, se porque a sua própria situação interna, minada por nostálgicos da URSS, não permitia grandes desvios. A verdade é que permitiu não só a secessão daquelas regiões e a limpeza étnica dos georgianos, de forma trágica, como deu força a que os rebeldes do Norte do Cáucaso iniciassem pouco depois uma guerra sangrenta pela independência da Tchétchénia e inúmeros grupos radicais islâmicos que deixariam um rasto de atentados violentos na Rússia.

Uma dos poucos chamadas de atenção para esta guerra é o filme Tangerinas, nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2013, passado com a guerra da Abecásia em fundo e a comunidade local de letões, e que esteve nos cinemas em Portugal e que já passou na RTP2.


A Geórgia terminaria a sua própria guerra civil no fim de 1993, com a morte, oficialmente por suicídio, do sitiado Gamsakhurdia. Em Agosto de 2008, aproveitando a distração com os Jogos Olímpicos de Pequim, a Geórgia, num período pós-Shevardnaze, liderada por Saakashvili, tentou reaver aqueles territórios, mas os planos foram gorados pelas forças armadas russas, que, agora directamente, rechaçaram os ataques e ainda entraram em território georgiano, num episódio relembrado agora com a invasão da Ucrânia. Logo a seguir, invocando o precedente do Kosovo desse mesmo ano, a Rússia agora de Putin reconheceu a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul. Mais tarde, e para justificar a actual guerra movida contra a Ucrânia, reconheceu a independência das “repúblicas” de Donetsk e Luhansk, que previsivelmente copiarão a “vontade” da Ossétia em se juntar aos russos, tal como aconteceu em 2014 com a Crimeia. Não se sabe se o mesmo poderá acontecer à Transnístria, ocupada por uma guarnição russa, mas é possível. 

Não deixa de ser curioso como a Rússia se queixa constantemente do “cerco” da NATO ao mesmo tempo que durante anos cercou a Ucrânia na maior parte do seu território – a leste e a Norte, assim como a Bielorrússia, a sul, com a base de Sebastopol, cedida aos russos para sediar a base da frota do Mar Negro, a leste, com a dita Transnístria, e até a Noroeste, se considerarmos o enclave armado de Kaliningrado/Konigsberg.

Quanto à Abecásia, tem uma posição diferente: embora agradecida à Rússia, não se pretende juntar a ela. No entanto, está absolutamente dependente do gigantesco vizinho, que tem lá forças estacionadas. A economia depende da produção de tangerinas e do turismo balnear russo, sendo um destino mais barato que a vizinha Sochi. A população ficou reduzida a metade, com a limpeza étnica dos georgianos (e a fuga de outras etnias, como os gregos e os letões). A região parece parada no tempo, quase sem infraestruturas, ao contrário do resto da Geórgia, que progrediu consideravelmente. O próprio parlamento permanece devoluto, mais de 25 anos depois de sofrer estragos de guerra, como uma ferida aberta no centro de Sukhumi, uma ilustração do estado daquela terra. A secessão serviu para retalhar a Geórgia, sem dar um futuro melhor à Abecásia, e para que os radicais islâmicos se espalhassem com os resultados consequentes. Sim, a Rússia já teve os seus "Kosovos". E os seus "Bin-Ladens". A Rússia de Yeltsin permitiu-o. A de Putin, hostil com os vizinhos que querem sair da sua órbita, reafirmou-o, diminuindo a riqueza étnica e cultural da região e condenando os respectivos povos a uma inimizade permanente.