sexta-feira, dezembro 31, 2021

O resumo da blogosfera lusa



Nos últimos dias do ano entretive-me com este pequeno livro, da colecção Francisco Manuel dos Santos, que resume a história da blogosfera portuguesa. Trouxe-me à memória anos (sobretudo entre 2003 e 2011) de posts, leituras, discussões e personagens até então desconhecidas, muitas das quais chegaram a postos de grande visibilidade, seja nos jornais, na TV ou até no governo, como Ricardo Araújo Pereira, Pedro Mexia, Rui Tavares, João Galamba, Daniel Oliveira, Luís Aguiar Conraria, além dos já consagrados Pacheco Pereira e Vasco Pulido Valente, entre outros que se dignaram a blogar. Os blogues serviram para que quem tivesse alguém coisa a dizer, nem que fosse pela arte de bem escrever e não tinha acesso aos meios tradicionais, o pudesse fazer, com grande ganho de causa. Não vou agora enumerar nem "linkar" exemplos da blogosfera, que de resto o livro cumpre, mas para quem está dentro do meio é uma visita gratificante e um pouco nostálgica, além da escrita bem humorada do autor nos permitir alguns sorrisos e mesmo algumas gargalhadas.

Infelizmente, as redes sociais tiraram muita da riqueza discursiva e um certo jargão que existia na "comunidade blogosférica". Em todo o caso, recordei pessoas e discussões que há muito não me vinham à memória. O livro não é exaustivo mas é completo. Eu não consto da extensa lista de bloguistas enumerados, mas o Delito de Opinião, onde continuo a escrever, sim, a par deste espaço chamado A Ágora, em que vos escrevo e que está quase a chegar à maioridade. Posso dizer que é um livro que gostaria de ter escrito, mas que o autor, Sérgio Barreto Costa, cumpre muito bem.

Posto isto, um 2022 melhor que 2021 (e 2020) e que os blogues, mesmo sem a importância de outrora, continuem.

quarta-feira, dezembro 29, 2021

O exorcismo de Jorge Jesus

Há uns tempos que não falava aqui do Benfica. Confesso que pelo plantel que temos e depois da saída de Vieira, esperava bem mais desta época. Afinal de contas, a única grande diferença para a anterior é o acesso e a passagem aos oitavos de final da Liga dos Campeões. Tudo o resto permanece igual. Ou permanecia, até ao dia de hoje, em que finalmente acabou um projecto feito à pressa apenas para servir de troféu eleitoral a Luís Filipe Vieira. Não lhe serviria de muito. A contratação de Jorge Jesus demonstrou ser um erro desde o início. O "catedrático da bola" sai sem honra nem glória, apenas com o consolo de ter superado o são tão admirado Barcelona - o que, convenhamos, não é uma proeza por aí além nos tempos que correm. Deixa o Benfica apenas depois de transbordado o copo, com uma derrota vergonhosa com o Porto e por causa de conflitos com os jogadores, e logo Pizzi, que ele próprio trouxe para a Luz. Ainda por cima o Flamengo estava disposto a dar dinheiro pela sua contratação, e agora é o Benfica que tem de pagar o salário até ao fim da época, coisa que não deverá acontecer. Nos últimos dias, e esfaimados por um técnico português, os urubus rubro-negros viraram-se para Paulo Sousa, de que provavelmente já se arrependeram (e Sousa fica mal visto na Polónia, coisa que não é propriamente incómodo para um benfiquista), mas é crível que Jesus volte ao Brasil, noutras paragens.

O Benfica fica agora à guarda de Veríssimo, que na outra experiência como interino não mostrou lá grande coisa. Para mais assume o cargo depois de saber da morte da mãe. Tente-se então continuar a época com o que resta de dignidade, a começar por novo jogo em casa do Porto, mas convinha pensar na próxima temporada e em quem a assumirá. Então, poder-se-á pensar igualmente em negociar Pizzi e Almeida, e eventualmente Cebolinha, se não melhorar, e em não renovar com Taarabt. Sangue novo precisa-se, e nesse ponto talvez Veríssimo seja importante. Do mal o menos, definitivamente conseguiu-se exorcizar o fantasma de Jorge Jesus, que antes tinha assombrado Vitória e Lage. Agora já não assombra mais ninguém.

quinta-feira, dezembro 23, 2021

Uma colectividade de bairro de uma cidade transmontana

As pequenas colectividades contam muitas vezes a história dos locais que representam. Como a do Bairro Latino, clube desportivo do bairro dos Ferreiros, que desce abruptamente desde a imponente ponte metálica até à velha ponte de Santa Margarida, de pedra, ambas sobre o Corgo. Diz-se que um conjunto de estudantes de liceu locais encontrou algumas semelhanças entre o Quartier Latin de Paris e o seu bairro dos Ferreiros, zona de artesãos e, dizia-se, de casas de má fama, e impulsionados pelo Dr. Otílio de Figueiredo, Pai do Professor Eurico de Figueiredo (sim, o líder mais radical da greve estudantil de 1962 e mais tarde deputado do PS antes de passar a outros partidos, como o PDR e o MPT), resolveu criar um clube com o nome de Bairro Latino, dando conta que a rua principal e as ruelas que a ladeavam eram tantas como as línguas latinas. Apesar de muito eclético e de ter várias modalidades de salão e exteriores nunca teve um campo de jogos próprio nem nunca conseguiu ombrear com o vizinho maior, o SC Vila Real, que não lhe permitia jogar no mítico campo do Calvário. O Bairro Latino quase desapareceu, mas voltou a conseguir sede própria, próxima da antiga (onde ao que parece as francesinhas estavam ao nível das do Cardoso, lá em cima na "bila"), onde hoje funciona a Agência de Ecologia Urbana, mesmo à entrada da velha ponte sobre o Corgo (e por baixo da metálica), símbolo maior do velho bairro que representa.

O SC Vila Real, pelo contrário, além de campo próprio (agora até tem dois, ambos com nomes curiosos, Calvário e Monte da Forca), possui o seu próprio bar/loja no espaço nobre do centro da cidade (última foto) e continua a ser a principal agremiação desportiva da cidade.

Seja em aldeias, lugares, vilas ou bairros de cidades, as pequenas colectividades, constituídas em associações, grupos, agremiações e uniões acrescentados dos inevitáveis "desportiva", "recreativo", cultural", etc, constituem um elo de ligação das comunidades, uma oportunidade para a prática desportiva, para difusão cultural ou de informação ou o simples convívio, que no fundo é o que mais importa. São absolutamente essenciais em qualquer sociedade e para todas as idades. Quando desaparecem, extinguem-se também com elas ligações, amizades, práticas rotineiras, exemplos de vida e sobretudo muitas histórias. Quando isso acontece, é a antevisão do declínio das sociedades locais que representam, a não ser quando outras as substituam com sucesso.

                                             As duas pontes: a de Santa Margarida e, lá em cima, a ponte metálica




Vista do bairro, do rio  e da velha ponte desde a ponte metálica

O bar/loja do SC Vila Real

O mítico campo do Calvário, há meia dúzia de anos, depois de ser relvado

terça-feira, dezembro 14, 2021

Frederico e o legado que Hitler destruiu


Agora que há um novo chanceler na Alemanha e que Angela Merkel deixa o cargo que tanto tempo ocupou, é uma boa ocasião para falar de leituras recentes. Li há pouco tempo a biografia de Frederico II, o Grande, por Nancy Mitford. Aconselho vivamente, embora seja uma edição complicada de encontrar em português, dado que era dos Livros Cotovia, editora desaparecida há pouco tempo. A autora, ela própria proveniente de um conjunto muito biografável de irmãs, acedeu aos então pouco acessíveis arquivos das antigas RDA e Checoslováquia, obtendo um conjunto de documentos notável para a construção da vida do homem que reinou sobre o Brandeburgo-Prússia durante quase meio século.


Sempre achei que Frederico fosse a personalidade mais interessante do século XVIII. Conhecia, entre outras coisas, a sua enorme capacidade na guerra, a sua habilidade política, os seus interesses e contribuições para a filosofia e para a música, os anos que Voltaire passou na corte prussiana, a terrível relação com o seu pai, a sua sexualidade ambígua e o seu tão personalizado lar de Sans-Souci, que visitei há já muitos anos. Mas desconhecia outros elementos do seu pensamento e da sua política que não são aqueles que normalmente se atribuem à Prússia.

Era o modelo de Déspota Iluminado, é certo. Ainda assim, poucos estadistas da sua época se atreveriam a dizer que "sendo o soberano faço o que me apetece, e o povo diz e reza a quem lhe apetece". Assim, todos os livros eram livremente vendidos na Prússia, quaisquer que fossem as suas ideias. As discussões eram livres e a liberdade de culto também. Sendo um dos líderes mais importantes do protestantismo, embora pouco religioso - na realidade, mais deísta que religioso - Frederico não via com bons olhos o catolicismo, mas para mostrar a sua tolerância e acolher migrantes católicos, mandou construir uma enorme igreja católica no centro de Berlim, que ainda hoje lá está. Uma das políticas era precisamente a de acolher gente de fora para povoar os territórios pouco povoados da Prússia Oriental, ou de novos territórios adquiridos. Desta forma, e seguindo uma política iniciada pelo seu pai, Frederico Guilherme I, acolheu protestantes fugidos do Sacro Império, sobretudo de Salzburgo, mas também católicos, judeus, diversas seitas cristãs, e a todos deixou construir os seus templos. Chegou a afirmar que se fosse preciso, permitiria migrantes muçulmanos vindos da Turquia e construir-lhes-ia uma mesquita (uma ideia que antecedeu em duzentos anos a imigração turca para a Alemanha).

Frederico defendia também a mistura de raças. Achava que era fundamento de civilização e que produzia pessoas inteligentes. É certo que a necessidade é que originou tanta imigração, já que perto de um décimo da população do reino tinha perecido com a terrível guerra dos Sete Anos. No fim do seu reinado, um sexto dos súbditos nascera no estrangeiro.

Também promoveu sérias reformas em termos de direitos e de sanções penais. Era ele que ratificava as penas de morte, que nunca eram numerosas, e nunca condenou mulheres. Aliás perdoou a um criado que tentou envenenar a sua bebida, e castigou-o enviando para o exército. Numa ocasião, passando nas ruas de Berlim, reparou numa caricatura sua no alto de m poste. À sua chegada, os transeuntes pararam logo de rir, atemorizados, ao que frederico disse para colocarem o boneco mais abaixo pois assim poderiam vê-lo melhor. Logo no início do reinado aboliu as torturas civis, que considerava cruéis e inúteis. A excepção era o exército, onde havia castigos severos, como chicotadas.

O mais espantoso disto é que tendo sido Frederico a tornar a Prússia numa potência europeia e a lançar as sementes do nacionalismo alemão, que fariam cem anos mais tarde os estados alemães juntar-se ao reino dos Hohenzollern, formando o Reich, aquela tenha ficado com uma tal fama militarista e bárbara que tenha mesmo acabado por ser extinta após a II Guerra. Para mais, é frequentemente ligada a Hitler, tal como o espírito alemão. O mentor do nazismo comparou-se nas campanhas que o levaram a chanceler, a Bismarck e a Frederico II. 


E no entanto, como se verificou, era precisamente o oposto do monarca prussiano. Frederico recebia gente de toda a Europa e defendia a mistura de raças. Hitler defendia a superioridade racial alemã e usou a solução final contra judeus e outros povos (o prussiano não morria de amores pelos judeus, mas nunca os perseguiu). Frederico autorizava todos os livros e toda a circulação de ideias, recebia os maiores pensadores da época e a sua corte de Potsdam era famosa como centro de discussão filosófica e de apoio às artes e letras, em especial a música (o próprio Frederico era exímio como flautista e escreveu obras valiosas, como O Anti-Maquiavel e a Histoire de la Guerre des Sept Ans, nunca editada mas considerada um dos melhores testemunhos narrativos daquela guerra). Hitler afastou ou obrigou à fuga de milhares de artistas, pensadores e intelectuais, organizou sessões de autos-de-fé de livros e reprimiu a chamada "arte degenerada" (e a liberdade de expressão nem se fala). Por fim, quando Frederico morreu, depois de 46 anos de reinado, a Prússia passara de uma reino bem administrado mas vassalo e subserviente a uma potência militar continental temida e duplicara território e população. Quando Hitler desapareceu ao fim de 12 anos, a Alemanha estava em ruínas, perdera milhões de habitantes, entre mortos, exilados e prisioneiros, tornara-se pasto dos seus inimigos, o seu nome estava manchado pela infâmia e ficara sem os seus territórios mais a leste (incluindo a Prússia originária e a capital, Konigsberg), territórios esses que, curiosamente e na sua maioria, fora Frederico a adquirir.

As únicas semelhanças serão talvez algum ímpeto guerreiro e de conquista, que levaram o rei da Prússia a vitórias brilhantes mas a algumas duras derrotas, como quando russos e austríacos ocuparam Berlim, duzentos anos anos anos de os primeiros o voltarem a fazer, com mais êxito. Também Dresden sofreu um primeiro bombardeamento arrasador, mas aí efectuado pelos próprios prussianos. De resto, Frederico contou muitas mais vitórias que derrotas e revelou-se um hábil diplomata quando teve de o demonstrar, reconciliando-se com os seus inimigos nos últimos anos, em especial a sua grande adversária Maria Teresa de Áustria.

É incrível como é que a Alemanha se viu enredada naquele pesadelo totalitário e apocalíptico quando um dos seus grandes obreiros tinha ideias absolutamente opostas. Como se o século XX tivesse regredido para níveis que no século XVIII achariam intoleráveis. O que mostra que o carácter e a cultura dos povos não é sempre igual nem se pauta sempre na mesma direcção. Há heranças que se quebram e que se esquecem. Há rumos que degeneram povos. Que o povo alemão tenha tido um Frederico e mais tarde um Hitler, que destruiu o legado do primeiro e que era em tudo o contrário (embora felizmente os chanceleres do pós-guerra também fossem completamente diferentes), aí está para o provar e para afirmar que certos ferretes que se colam estão longe de ser justos.


sexta-feira, dezembro 03, 2021

Florença e Gondomar

"Florença ao domingo é como Gondomar sem estátuas."

Ouvido hoje, por ocasião de uma conferência para recordar os 120 (e um) anos do nascimento de Ruben A. que escreveu tal coisa num dia em que estava aborrecido com o período do Renascimento e com a confusão na Piazza della Signoria.
Tanto pode servir de dissuasor para ir a Florença como de cartaz turístico para Gondomar. Se construirem mais umas estátuas ainda melhor. Comecem já a pensar nos moldes de Valentim Loureiro, Júlio Resende (o pintor, não o músico), Pedro Barbosa e Fernando Rocha.