quinta-feira, outubro 17, 2019

A exumação de Franco (e uma sugestão para o substituir)


Já é oficial. Depois de anos de contendas, discussões políticas e recursos judiciais vários, os restos mortais do generalíssimo Franco vão mesmo ser exumados. Dentro de dias, proceder-se-á à complicada operação de tirar a pesadíssima laje do altar-mor da basílica do Vale dos Caídos e levar a urna para o jazigo de família, onde repousará ao lado de Carmen Polo, sua mulher de sempre.

A operação, exigida por familiares de vítimas do regime franquista e por grupos de esquerda, além do próprio governo de Pedro Sanchez, em conformidade com uma alteração à controversa Lei da Memória Histórica, esteve sucessivamente adiada. Não é caso para espanto. Uma tal decisão, tomada finalmente pelas instâncias judiciais superiores espanholas, nunca poderia ser levada a cabo de ânimo leve. Porque mesmo que tenha passado sem problemas nas Cortes, sem votos contra, não deixou por isso de atrair a crítica dos partidos de centro e de direita, apesar da sua abstenção, de que era uma operação sem qualquer carácter de urgência e que poderia desenterrar (literalmente) ainda mais velhas feridas de guerra.

É verdade que há boas razões para que o "Caudilho" saia dali. Desde logo a razão jurídica, porque a intenção era a de albergar os restos mortais das vítimas de guerra, dos dois lados, e Franco, ao contrário de José António Primo de Rivera, que jaz ao seu lado, não o era. Depois porque o próprio Franco nunca manifestou vontade de ser levado para ali depois de morto. E sobretudo porque o mentor de uma longa ditadura de décadas, responsável por boa parte das mortes da guerra, incluindo as de alguns ali sepultados, nunca poderia ser considerado um factor de reconciliação. Sejamos justos: o Vale dos Caídos é antes de mais um altar ao triunfo dos nacionalistas, e não, como oficialmente se pretendeu, à reconciliação da Espanha "una, grande y libre".

Também há razões contrárias atendíveis: os espanhóis têm mais com que se preocupar além da exumação, remexer nas feridas da guerra, de que quase não restam sobreviventes, não prima pela sensatez, além do gosto duvidoso e dos custos da operação e da entrada de máquinas num recinto religioso. E é sabido que para alguns grupos, como o Podemos, bom era dinamitar todo o conjunto do Vale dos Caídos, Cruz, basílica, abadia, etc, e exumar antes os milhares de corpos que lá se encontram, como se isso fosse tecnicamente possível. Contrariando a norma de que "a história é feita pelos vencedores", a da Guerra Civil de Espanha é cada vez mais feita pelos vencidos.

Este ano logrei finalmente ir ao Vale dos Caídos, aproveitando uma ida a Madrid. Para quem vem de longe nem sempre é tarefa fácil, já que fecha relativamente cedo, e desde a entrada do parque há que fazer alguns quilómetros até ao santuário propriamente dito. O conjunto é impressionante, com a colunata, em frente a um amplo terreiro de onde se avista Madrid ao longe, a guardar o enorme pórtico que dá acesso à basílica. Em cima, dominando o conjunto, a emblemática e colossal cruz de granito, que se vê a muitos quilómetros de distância, com 150 metros de altura. No templo propriamente dito, escavado sob a montanha, obra que se diria construída por ciclopes, uma comprida nave conduz ao altar-mor, onde (ainda) se podem ver os túmulos de Franco e de Primo de Rivera. Há inúmeras capelas adjacentes. Numa delas rezava-se missa segundo o "rito antigo", com o padre virado para o altar. É expressamente proibido tirar fotografias lá dentro.



Tudo isto num estilo totalitário-cristão, que se não fossem os símbolos poderia perfeitamente fazer parte dos planos de Albert Speer ou da Moscovo estalinista.  A abadia que se esconde atrás da montanha é mais modesta e harmoniosa, mas ainda assim de grande dimensão. A sensação é de temor, admiração e algum desconforto. Não se vai a um tal monumento de ânimo leve. Até porque afinal de contas se trata de uma necrópole, e sob ela jazem quase trinta e cinco mil vítimas da guerra.

Franco vai sair dali, não restam dúvidas. Mas ainda que sem o "caudilho", o carácter do Vale dos Caídos permanece igual, sem que os ânimos estejam apaziguados. Houve propostas para se mudar também Primo de Rivera, mas é extremamente improvável. Fica portanto um vazio no altar-mor. É certo que já não se enterram pessoas nas igrejas, mas não se poderia pensar em substituir o espaço vazio com um símbolo de verdadeira reconciliação? Para isso, teria de ser alguém do lado dos vencidos. Mas alguém que além de vítima de guerra, fosse digno de estar ali. Seria estranho enterrar num templo católico um anticlerical. Haveria uma escolha perfeita. Digo "haveria" porque também nunca se encontrou o seu corpo.

Falo, evidentemente, de Federico Garcia Lorca, fuzilado por falangistas (que o conseguiram subtrair a outros falangistas, num processo ainda hoje obscuro), enterrado numa vala comum ainda hoje por descobrir. Lorca, o maior poeta do seu tempo, era odiado por Franco e outros do seu "lado", mas recolhia igualmente a admiração de muitos nacionalistas, a começar por Primo de Rivera, com quem se dava e que apreciava imensamente a sua obra. Liberal, homossexual e boémio, Lorca não era evidentemente apoiante do lado nacionalista. Mas também estava longe dos radicalismos republicanos, comunistas ou anarquistas que dominavam o outro lado. Era no entanto, segundo o próprio, "católico, comunista, anarquista, libertário, tradicionalista e monárquico", e "espanhol integral".

Lorca seria a peça ideal em falta para a reconciliação na basílica do Vale dos Caídos. Também ele um "caído" por aquilo em que cria, uma vítima da guerra, um liberal cosmopolita e cristão, os seus restos mortais poderiam repousar ao lado no altar-mor do templo, ao lado de Primo de Rivera, morto pelos mesmos dias pelo bando oposto. Seria o remate perfeito e simbólico do fim da guerra, cuja memória continua a envenenar Espanha. Talvez um dia os seus despojos sejam encontrados e se possa proceder ao enterro digno a que nunca teve direito. Se isso acontecer, quem sabe se as memórias desses anos de chumbo não ficam apaziguadas.

quinta-feira, outubro 10, 2019

Leitura sectorial das legislativas


Por razões infelizmente mais relevantes não pude dar no momento a atenção que as eleições mereciam. Mas não deixei de olhar bem para os resultados, e logo à partida, antes das previsões da Geringonça, da resistência do PSD, do desastre do CDS e da multiplicação dos PANs, reparei na entrada dos três novos partidos no parlamento, das diferenças entre eles e das semelhanças.
Um é libertário/liberal clássico, outro de direita musculada e populista e outro de esquerda europeísta (e agora africanista) e semi-radical. São por isso muito diferentes, ideologicamente falando. Mas têm em comum não terem grandes figuras mediáticas, mesmo se o Chega tinha um comentador da bola; e se repararmos bem, o Livre, há quatro anos, tinha carradas de gente conhecida e falhou com estrondo. Desta vez o Aliança, comandado por um dos políticos mais conhecidos deste país (e que anda há dois anos era o mais desejado pelo PSD para a disputa da câmara de Lisboa), teve um resultado patético para as expectativas a que se propôs. Também o RIR e o PDR, com candidatos mediáticos, falharam nos seus intentos. No caso do último, a inclusão de Pardal Henriques nas listas de Lisboa redundou em menos de 2000 votos.
A outra grande semelhança entre os que entraram na AR é que quase não têm sigla nem a palavra "partido" no nome. Nenhum deles. É significativo quanto ao prestígio dos partidos tradicionais e das designações mais simples que os substituem.

sexta-feira, outubro 04, 2019

Freitas do Amaral 1941 - 2019


O Professor Diogo Freitas do Amaral teve um percurso original nesta 3ª república portuguesa. Colheu ódios ideológicos de várias partes em diferentes períodos e era visto não raras vezes como um incoerente político. Disso e de outras coisas o acusaram nos últimos anos. Mas é preciso ver que nunca teve um caminho fácil nem grande sorte na sua vida política.
Primeiro criou o CDS num período muito turbulento, em que era pouco aconselhável fazê-lo, dado o radicalismo esquerdista em que a sociedade portuguesa estava imersa, e isso viu-se por exemplo no cerco ao primeiro congresso do partido no Palácio de Cristal por forças da extrema-esquerda (os ascendentes do BE e de outros grupúsculos que foram desaparecendo). Anos mais tarde, já no poder, com a AD, a tragédia de Camarate e a morte de Amaro da Costa e de Sá Carneiro, que vitimaram os seus amigos e aliados e o seu governo. Depois, a sua candidatura à presidência, em que teve o triunfo à vista, e que falhou por escassos milhares de votos, e que depois de uma dispendiosa campanha, o PSD de Cavaco abandonou vilmente com imensas dívidas na mão (Marcelo RS vingou-o de certa maneira pregando uma partida aos ministros do PSD. É o que consta da biografia do PR). Deu-se o regresso ao CDS num tempo em que o cavaquismo engolia quase toda a direita e o centro, e a sua saída do partido que fundou, já noutra onda que não a dele, quando não colhia grande simpatia do Independente.
A verdade é que ele sempre se disse um democrata-cristão centrista e nunca se afastou muito disso; a sociedade e os partidos é que mudaram. Terá havido oportunismo e jogo de cintura - apostou sempre nos candidatos que viriam a ser primeiros-ministros, pelo que esse seu dom profético fará falta. Mas ainda assim, órfão politicamente e sem aliados, manteve-se activo, ainda que com equívocos, como a ida para o governo de Sócrates, que a seu tempo corrigiu. É bom pensar que desde os anos 90 presidiu à Assembleia-Geral da ONU, envolveu-se contra a invasão do Iraque, fundou a faculdade de Direito da Nova de Lisboa, que tanto contribuiu para novas formas do ensino jurídico em Portugal, escreveu peças de teatro, ensaios, livros de história, e as suas memórias, de que o terceiro e último tomo saiu há poucos meses, quase que profeticamente. Uma vida plena e marcante, portanto. Pela minha parte, que só o conheci de cumprimentar de passagem e de breves palavras, devo-lhe, ainda que indirectamente, a minha ida para Lisboa, que muito me ajudou. Que, como cristão convicto que era, tenha descoberto a paz que lhe faltou durante tantos anos.

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PS: vi-o numa foto de há quinze dias, já muito caído, no enterro de André Gonçalves Pereira. Curiosamente, este tinha sido o seu sucessor nos Negócios Estrangeiros. E assim, em duas semanas, desaparecem duas antigas figuras de primeiro relevo da AD.

PS2: quando Assunção Cristas proferiu as primeiras palavras acerca do fundador do partido via-se Telmo Correia atrás. Não pude deixar de recordar o hilariante despique político no Parlamento, quando Correia acusou o na altura MNE de "vergonha de viver em democracia" por causa da questão das caricaturas de Maomé num jornal dinamarquês (Freitas dissera que era necessário distinguir "liberdade de licenciosidade"), ao que este respondeu:" ainda o senhor não era nascido ou andava de cueiros e já eu lutava pela liberdade em Portugal. É preciso topete!"