Deixa-me intrigado, a forma como está a ser aplicada a Resolução 1973 da ONU, aprovada há menos de duas semanas. O que nela constava era a imposição de uma zona de exclusão área, que impedisse a aviação líbia de bombardear os insurgentes, a protecção dos civis e o embargo de armas. Como se vê de há 15 dias para cá, a coisa é um bocadinho mais extensiva do que isso. A zona de exclusão aérea foi decretada, impedindo que a aviação kadhafiana continuasse a bombardear os revoltosos. Depois, as esquadrilhas combinadas de França, Reino Unido e Itália desbarataram as colunas de blindados que se preparavam para o assalto a Benghazi, impedindo um longo cerco, uma dura batalha e um provável banho de sangue. A rebelião/revolução agradeceu. Desde aí, a aviação multinacional tem bombardeado constantemente Tripoli e as forças do regime, sejam terrestres, navais ou aéreas. Kadhafi, que estava prestes a desbaratar o inimigo interno (depois de todos profetizarem o seu fim próximo), teve de recuar e assistir ao rápido avanço dos rebeldes, cobertos pela aviação em seu socorro. A sua cidade natal de Sirte, que lhe permaneceu fiel, esteve quase a cair, mas resistiu. Ao mesmo tempo, reocupou Ras Lanuf, que tinha sido tomada pelos rebeldes, caído de novo em poder "verde" e reconquistada pela revolta.
No meio desta confusão sangrenta, que certamente não poupará as cidades líbias da quase destruição, a NATO e a Liga Árabe têm tomado posições ambíguas. Uns acham que é suficiente a vigilância aérea; outros, que há que prestar auxílio mais eficaz aos rebeldes. Há mesmo uns que defendem uma intervenção terrestre, directa, se bem que esta posição seja posta de parte pela maior parte dos estados envolvidos. Não admira: as intervenções na Afeganistão e sobretudo no Iraque tornaram este tipo de acções muito impopulares (e no mundo árabes mais ainda), e a crise económica não permite muitas aventuras custosas. Mesmo que se argumentasse com uma interpretação extensiva da resolução 1973 e o apoio da Liga Árabe. Seria o primeiro passo para uma violenta retaliação.
O que é irónico é que os que bombardeiam o regime de Tripoli sejam precisamente os que tinham relações mais próximas com o Mad Dog. Ver Sarkozy, os britânicos, e acima de tudo a Itália (quando Berlusconi outrora andava de braço dado com Kadhafi) declarar que o seu regime é ilegítimo e que é preciso "negociar a saída", ao mesmo tempo que reconhecem o novo "conselho de Transição" líbio, é demonstrativo da mais despudorada realpolitik e de uma fuga para a frente pessimamente disfarçada. Até se percebe. Quando viram a rebelião às portas de Tripoli, pensaram que o regime estava por dias, e aproveitando a sua feroz repressão, apressaram-se a apoiar os "desejos de mudança", "respeito pelos direitos humanos e pela democracia", etc. Só que vos ventos mudaram, e observando a recuperação dos homens de Kadhafi no terreno, ao mesmo tempo que as tribos reafirmavam a lealdade ao "Guia da Revolução", deram-se conta de que as coisas se complicariam doravante nas relações diplomáticas com a Líbia, e que a sua confiança foram definitivamente minada. Como reagiria Kadhafi áqueles que lhe retiraram o apoio, depois de esmagada a revolta? Virar-se-ia ainda mais para o resto de África, ou pra a China? Retomaria o apoio ao terrorismo? Seria sempre uma situação demasiado embaraçosa para a NATO (que assumiu o comando das operações, para grande alívio dos Estados Unidos) e Liga Árabe.
Por essa razão, interessa acima de tudo dominar o regime verde e acabar com o poder da família Kadhafi na Líbia. Os ataques aéreos cumpriram a sua parte, mas se isso, só por si, não for suficiente - e pela desorganização dos rebeldes, parece não ser - o mais provável é que se comecem a distribuir armas mais eficazes, mesmo que os destinatários não as saibam usar devidamente. Com o apoio dos meios da NATO, que não dos efectivos, os revoltosos têm francas possibilidades de derrubar o regime, sabendo-se que Kadhafi nunca se renderá. Mas com a conquista e reconquista sucessiva do território, isso arrisca-se a levar umas boas semanas. Entretanto, a cotação do petróleo vai subindo.