Um cinco de Outubro em Guimarães
A proclamação de lealdade a D. Duarte, em Guimarães, no dia em que se (deveria) comemora(r) o Tratado de Zamora, em em que as entidades oficiais, mais do que o povo, celebra o "5 de Outubro" de 1910, foi talvez o acto mais marcante dos movimentos monárquicos desde a homenagem às vítimas do Regicídio, em 2008.
(Fotos recolhidas da Guimarães TV)
Fiquei um pouco temeroso à chegada ao Paço dos Duques de Bragança, porque quase só via turistas, até encontrar os primeiros traços do evento e perceber que estavam todos no pátio e salas daquele edifício construído pelo filho de D. João I e fundador da Casa que viria a reinar em Portugal. Não consegui quase ouvir as palavras de D. Duarte, com toda aquela gente, mas acompanhei a marcha que precedeu o momento mais solene. Nela seguia um pouco de tudo: pessoas mais vestidas a rigor, com os seus melhores trajes (alguns com o habitual "bigode retorcido" à finais de oitocentos), outros com um estilo mais fashion, outros ainda de t-shirt com as armas reais; a bandeira azul e branca do liberalismo e as da Restauração; anciãos, jovens, crianças, gente com ar mais institucional ou mais "activista": em suma, para ouvir as palavras do Duque de Bragança estavam pessoas de todo o tipo e de várias zonas do país.
Há já vários anos que não ia a Guimarães (coisa indesculpável para quem vive a apenas cinquenta quilómetros), mas tencionava lá ir antes de 2012, quando a Cidade-Berço for Capital Europeia da Cultura. Surgiu a oportunidade no melhor dia possível. E reconheça-se que é a urbe ideal para uma manifestação monárquica. Todo o enquadramento do centro histórico ajuda, com as suas apertadas ruelas de traço medieval, as casas brasonadas, o granito a espreitar sempre. Os nomes e decoração de alguns bares e restaurantes também ("El-Rei", "Cara e Coroa", etc). Mas a quantidade de bandeiras de D. Afonso Henriques em janelas e varandas espanta; nalguns casos, via-se a bandeira com a cruz de Santiago. As tabuletas com os nomes de alguns estabelecimentos comerciais pareciam estar ali de propósito, com inúmeras alusões aos reis, às armas, etc. E ao espanto inicial dos transeuntes que vinham à janela ver que marcha era aquela começaram a chegar as primeiras palmas e "vivas".
O cortejo continuou até ao largo da Oliveira, onde se ergue o Padrão do Salado, mandado construir por D. Afonso IV para recordar a vitória que lhe deu o cognome de O Bravo, e a Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, obra do tempo de D. João I, em agradecimento à vitória de Aljubarrota. Mas naquele espaço, dos mais característicos da cidade, também existe, numa das esquinas o edifício dos antigos paços do concelho, e sob a suas arcadas, que dão para a Praça de Santiago, havia uma mini-exposição da república organizada pelo PCP local. Como os bolcheviques normalmente só apreciam "monarquias" do jaez da Coreia do Norte, uma meia dúzia de camaradas desatou aos berros, dando vivas à república ou contra as "provocações". A marcha acabou aí, com uma evocação à Senhora da Oliveira, e talvez tenha sido a altura ideal, por causa de algumas discussões que se levantaram entre os "provocadores" e os "provocados". Naquele momento, mais uma vez se revelava a tolerância tão democrática dos defensores de 1910, e mais ainda, dos vencidos de 1975. Uma tresloucada fazia exclamações vitoriosas sobre o Regicídio, e um indivíduo com ar de quem trabalha em duvidosas actividades nocturnas inquiria sobre a "legalidade" da manifestação; claro que quando lhe perguntaram onde estava a legalidade das alterações ocorridas em 1910, respondeu com tíbias referências ao "povo".
Acabada a marcha e as histerias que nem por isso a estragaram, andei um pouco por aquela cidade que tanto diz a Portugal. A região tem sido das mais afectadas pelo declínio da indústria portuguesa, há já largos anos, mas conserva a altivez das suas pedras e é prodigioso observar como está arranjada. Do Toural ao Castelo, passando pela alameda de S. Gualter, tudo está limpo e organizado, e por toda a parte se encontram plantas do centro histórico e informações sobre os monumentos relevantes. Antes de partir, ainda vi um traço da cerimónia protagonizada por D. Duarte: uma coroa de flores aos pés da estátua de D. Afonso Henriques. Para muitos vimaranenses, soube-o nesse dia, a nacionalidade nasceu com a batalha de S. Mamede, ali ao lado. Mas a verdade é que se não houvesse o reconhecimento por parte de Castela em Zamora, o país provavelmente não teria passado daí. Deve-o a esse tratado, firmado num longínquo 5 de Outubro.