É possível que os jornais estejam mais virados para assuntos da actualidade, como o orçamento de estado, a questão com os novos corpos sociais da CGD, o rescaldo das eleições presidenciais nos Estados Unidos e a a batalha por Mossul. Mas nas efemérides que constantemente aparecem, não teria sido pior se houvesse referência a uma situação internacional de enorme relevo que acabou há precisamente 60 anos: a Crise do Suez.
Em Julho de 1956, prosseguindo uma política de pan-arabismo e de exaltação nacionalista desde o golpe de estado que afastara o Rei Faruk do trono do Egipto, Gamal Abdel Nasser anunciou a nacionalização da Canal do Suez, detido e administrado por uma companhia pertencente desde a abertura daquela enorme obra de engenharia a franceses e britânicos. O direito de passagem estava garantido até em tempos de guerra e garantia a neutralidade do canal. Em 1936, em boa motivados pela invasão italiana à Etiópia, o Reino Unido e o Egipto tinham celebrado um tratado permitindo que tropas britânicas se mantivessem na área adjacente ao canal. A duração era de vinte anos, ao fim dos quais as forças britânicas aí estacionadas sairiam do Egipto, o que efectivamente aconteceu. E logo a seguir, o anúncio da nacionalização.
A reacção do governo britânico foi de choque, apesar das desconfianças sobre Nasser, e de indignação. Eden chamou ao presidente egípcio "Mussolini do Nilo" e estabeleceu comparações entre a nacionalização do canal e a reocupação militar da região do Reno pela Alemanha, vinte anos antes, pretendendo que a opinião pública britânica visse uma repetição dos anos trinta em versão árabe. Eden era defensor da ideia do Império Britânico, mas se por um lado tinha seguidores ainda mais acirrados nesse propósito (que argumentavam que a independência da Índia seria a contrapartida da manutenção do controlo do canal), outros não queriam pensar em nova guerra, frescas que estavam as recordações da década anterior.
Em posição idêntica encontrava-se a França, que já perdera a Indochina e parte do norte de África, mantinha a custo o porto de Djibuti, no "Corno de África", e estava numa guerra com as forças independentistas da Argélia, apoiadas por Nasser. O primeiro-ministro francês, o socialista Guy Mollet, simpatizante da Inglaterra, sustentava Eden na ideia de que Nasser poderia ser um perigo semelhante a Hitler. E por razões de inimizade com o Egipto e receio de que a sua passagem fosse definitivamente interdita, também Israel via a nacionalização com o maior receio.
Realizaram-se imediatamente conferências para sentar à mesa as partes interessadas, mas por mais que os Estados Unidos tentassem resolver o diferendo pela negociação (e ao mesmo tempo atrair o Egipto, que se aproximara da URSS, para a sua esfera de influência), a intransigência não permitiu que se chegasse a qualquer acordo.
Na sequência do falhanço das negociações, altas esferas do Reino Unido, Faça e Israel reuniram-se secretamente em Sèvres para delinear um plano de reacção militar, que seria também uma prova de autoridade. Israel entraria no território egípcio sob o pretexto de combater os fedayeen que constantemente atacavam o seu território. A França e o Reino Unido exigiriam de Israel e do Egipto que recuassem numa linha de vários quilómetros do canal, contando obviamente com a recusa deste último para intervir militarmente. O plano correu como o esperado, com Israel a entrar pelo Sinai e a ocupar vários pontos estratégicos (incluindo os que no no golfo de Aqaba, à entrada para o Mar Vermelho, ameaçavam o tráfego marítimo até Eilat), mas parando antes do Suez. Ante a recusa do Egipto em recuar, em fins de Outubro forças francesas e britânicas, que tinham sido já deslocadas em grande número para as bases que o Reino Unido tinha em Chipre e Malta, bombardearam maciçamente posições egípcias, usando uma novidade para a época, os helicópteros, permitindo que tropas pára-quedistas fossem ocupando pontos importantes, apesar da forte resistência dos locais, que fecharam o Suez à navegação e o bloquearam com navios. Mas a operação militar conjunta resultou num enorme êxito, para mais com poucas baixas.
Contudo, se militarmente as coisas corriam como previsto, no plano político os planos saíram furados. Os Estados Unidos, com eleições à porta, temiam que os aliados árabes do Egipto provocassem uma crise no abastecimento do petróleo e a consequente subida dos preços, em plena ascensão do American Way of Life. Ao mesmo tempo, a URSS intervinha na Hungria, para esmagar e tentativa de mudança de regime, e aproveitou a situação no Egipto para desviar as atenções e os protestos que se faziam sentir. Nikita Krushev ameaçou as forças intervenientes no Suez, usando até a ameaça nuclear, com a possibilidade de usar bombas atómicas contra Paris e Londres. Perante estes cenários, e perante as hesitações de França e Reino Unido, os Estados Unidos de Eisenhower conseguiram que a Assembleia Geral da ONU votasse a favor de um cessar-fogo e ameaçou com operações monetárias contra a libra esterlina. Sob pressão de todos os lados, O Reino Unido teve de assinar um cessar-fogo a 6 de Novembro, e a França não pôde fazer outra coisa senão seguir os mesmos passos, e em Dezembro as forças de intervenção eram substituídas por elementos da ONU.
A aventura do Suez começou com o optimismo inconsciente das ex-grandes potências e terminou com a sua derrota e humilhação. De facto, tratou-se da última grande intervenção dos impérios coloniais cessantes, e uma passagem de testemunho simbólica para as novas superpotências, EUA e URSS. No Reino Unido, Eden demitiu-se, sendo substituído por MacMillan, que, pragmático ante o fim do império, inflectiria a política externa fazendo com que os britânicos se tornassem nos mais leais e duradouros aliados dos Estados Unidos. Do lado da França, seria também um prenúncio do fim definitivo do império colonial, da Vª República corporizada em De Gaulle e do afastamento dos anglo-saxónicos e no incremento da CEE, que se formaria menos de um anos depois, em Roma (como retorquiu Konrad Adenauer a Guy Mollet, "a Europa será a vossa vingança"), e onde, enquanto De Gaulle viveu, o Reino Unido não teve lugar, uma atitude que se reflectiu também no afastamento dos franceses da NATO, embora os gaullistas receassem igualmente a União Soviética.
Os Estados Unidos viram confirmado o seu estatuto de superpotência, e a URSS mais ainda, pois não só manteve a Hungria sob o seu domínio como conseguiu fazer do Egipto um aliado próximo, tendo sido engenheiros soviéticos a projectar a Barragem de Assuão, além de fazer recuar nações como a França e o RU.
Por outro lado,o Egipto conseguiu transformar uma derrota militar numa enorme vitória política: manteve o domínio do Suez e Nasser afirmou-se como líder árabe e do "Terceiro-Mundo". Israel, embora tivesse de recuar às fronteiras originais, obteve liberdade de passagem no canal e no Mar Vermelho e mostrou o que valia militarmente, o que reafirmaria mais tarde, na Guerra dos Seis Dias. Além disso, reforçou os laços com britânicos e franceses
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A crise do Suez, acontecimento maior dos anos 50, definiu a Guerra Fria: confirmou as novas superpotências, demonstrou a decadência militar dos europeus, deu incremento à descolonização e definiu também as tendências do Médio Oriente para os vinte anos seguintes. Agora que se avista o pós-pós Guerra Fria e um multilateralismo imprevisível, talvez não fosse pior relembrar as lições de crises passadas e tomá-las em conta para prevenir as que possam ou estejam a surgir. Sessenta anos não é assim tanto tempo.