quinta-feira, julho 16, 2020

Comparações úteis com o passado


Já ouvi não sei quantas vezes comparações da pandemia do Covid-19 com a Gripe Espanhola de há cem anos, que matou milhões pelo Mundo e dezenas de milhar em Portugal, por causa da possibilidade de uma "segunda vaga" mortífera. Mas do que percebi poucas comparações se podem estabelecer. A Gripe Espanhola aconteceu sobretudo como consequência da Grande Guerra, com os parcos sistemas de saúde e as economias destruídas, numa época em que as pessoas não tinham os meios de higiene, a nutrição ou os meios hospitalares que têm hoje. Os soldados vinham das trincheiras num estado deplorável  traziam com eles a epidemia. Ainda por cima a doença veio com uma carga bacteriológica num tempo em que não havia antibióticos. Ou seja, uma tempestade perfeita.
O covid será provavelmente mais próximo da dimensão da Gripe Asiática de 1957/58, de que os nossos pais e avós se lembram. Começou na China, depois veio pela Austrália, Irão, entrou na Europa pela Itália, França...tal como agora, com a diferença de que chegou no fim do Verão. O início das aulas teve de ser adiado, tal era a quantidade de alunos doentes, e as fábricas ficaram a meio gás. Segundo os dados oficiais, morreram mil e tal pessoas em Portugal, embora como não houvesse os testes nem o SNS como o conhecemos esse número esteja com toda a certeza subavaliado. Em França contabilizaram-se na altura onze mil e tal mortos, mas nos anos recentes chegou-se à conclusão de que seriam bastante mais, assim como no Reino Unido, com mais de trinta mil na altura. Nos Estados Unidos passaram os cem mil. Isso numa altura em que havia menos população, a média de idades era mais baixa e havia por isso menos "comorbilidades". Mas ainda em 1957 criou-se uma vacina, que diminuiu muito a intensidade da pandemia, e meses depois praticamente desapareceu. Ao todo, terá deixado perto de dois milhões de mortos em todo o mundo.
Quais as diferenças? Provavelmente o facto de não haver tanta informação instantânea (pouca gente tinha televisão, por exemplo), de não circular tão depressa entre os vários continentes e da Ásia ser mais subdesenvolvida e portanto ter sofrido mais. E também dos sintomas durarem menos dias que o actual covid (a minha Mãe, que na altura era miúda, esteve cinco dias de cama). Talvez por isso os países não se tenham fechado tanto e a economia tenha sofrido menos. Mas o Mundo não acabou, a Europa e os EUA continuaram prósperos e os anos sessenta seriam animados. Além disso, demonstrou-se que uma vacina não precisava de anos e anos para ser concebida. Ou seja, esta pandemia do Covid é um assunto sério, mas não apocalíptico, mais ao nível da Gripe Asiática (ou da de Hong Kong, dez anos depois) e menos com a fulminante Gripe Espanhola. A importância da História é que nos ensina com a experiência passada.
Deixo-vos com alguns links em francês e inglês, com mais informação:

Today, we refuse to accept sickness and death” - Linköping University

segunda-feira, julho 13, 2020

Quando a abstenção decide eleições


Três meses e meio depois a França lá conseguiu realizar a segunda volta das eleições municipais, que tinham ficado a meio por causa da pandemia, depois da polémica primeira volta (por não ter sido adiada). Como resultado, os ecologistas tiveram vitórias retumbantes, conquistando Bordéus, Lyon, Besançon, Tours, Poitiers, tomando parte na manutenção de Paris por parte da esquerda e na sua conquista de Marselha. O Partido Socialista resiste à queda na irrelevância mantendo Paris, com apoio dos ecologistas, como se viu, e ainda Montpellier, Rouen, Rennes, Lille e parte da banlieue da capital. Depois de anos terríveis, com a perda da presidência, de quase todos os deputados e até da histórica sede da rue Solférino, e da sangria de militantes, os herdeiros de Mittérrand e da SFIO ganham aqui algum fôlego. A direita tradicional gaulista dos Republicanos ganha muitos municípios mas de escassa importância, com excepções como Toulouse ou Metz, e revela também um declínio crescente, depois de durante décadas ter sido a grande força política françesa. À esquerda do PS mantêm-se alguns bastiões tradicionais do PCF à volta de Paris e no Sudoeste. A extrema-direita ex-FN mostra que as municipais também não são o seu terreno favorito, conservando alguns municípios no Sudeste. E por fim o centro, dominado pela Republique en Marche, do Presidente Emmanuel Macron, revelando fracos resultados e escassa implantação local, confirmando que é um movimento ultra personalizado na figura do(s) seu(s) líderes. Teve como escasso sucesso a eleição de Édouard Philippe por Le Havre e pouco mais.

Dois factores fulcrais nesta eleição, um que não é surreendente, e outro que sendo-o, talvez se relaccione com o outro. O primeiro é a abstenção, esperada dada a prevalência da pandemia, embora num clima menos pesado do que o da primeira volta. O segundo são os resultados extraordinários dos ecologistas. Poderá a abstenção ter jogado a seu favor? É bem possível. Note-se a queda dos Republicanos, por exemplo, e a perda de importantes domínios municipais. É um partido assente em eleitores normalmente mais velhos, fieis ao partido ou às suas sucessivas existências. O mesmo se poderá dizer do Partido Socialista, que até sofreu uma sangria em forma de pequenos movimentos formados pelas alas mais jovens. Quanto à ReM, como se disse, está demasiado centrado em Macron e tem escassa representação local. Assim, e por causa do receio da epidemia, muitos eleitores mais velhos optaram por não votar. Os ecologistas recebem por norma um voto mais jovem, e com a ida às urnas de gerações mais novas, é bem possível que a balança se tenha inclinado para o seu lado. Neste caso, o receio da situação terá levado a que parte do eleitorado se abstivesse, permitindo assim uma mudança política (e em parte geracional).

É uma nota interessante e ao mesmo tempo ligeiramente inquietante: pode uma situação extra-política levar a uma alteração numa eleição? Há o caso de Espanha em 2004, quando o PP, já pronto a ganhar as eleições, acabou por perdê-las na sequência dos atentados de Atocha e da forma como o seu governo geriu a situação. Mas aí ainda dependia dos próprios. Aqui não, uma situação alheia influencia uma parte do eleitorado e dá azo a alterações políticas de alguma monta. Repare-se que nas eleições dos últimos dias na Polónia (presidenciais) e em Espanha (regionais) a votação até subiu e ganhou quem já lá estava. O oposto do que se passou em França. É por isso razoável pensar que um evento extra-politico pode mesmo mudar o curso de uma eleição, seja porque é retumbante e altera o sentido de voto, seja porque leva a que uma parte do eleitorado não vote.

Entretanto, fica a nota, os ecologistas ajudaram a esquerda a conquistar Marselha, antes reduto dos Republicanos. Mas na cidade da Provença a figura que domina as atenções da cidade não é nenhum político, nem sequer a nova maire. Nestes tempos de epidemia, o infecciologista e académico Didier Raoult, dos mais reputados na área, tem ganho uma especial proeminência, pelas suas declarações pouco ortodoxas, por ser um dos teóricos do tratamento à base de hidroxicloroquina e pela sua figura bizarra, que lhe valeu a alcunha de Panoramix. Se se candidatasse à chefia do município de Marselha, ganharia decerto com enormíssima maioria. Até já serve de motivo para tatuagens.

Actualités | Le 18:18 - Le professeur Raoult toujours dans le cœur ...

quarta-feira, julho 01, 2020

Bruno Lage


O futebol nacional já me andava a atrair pouco, e agora, transformado em jogos-treino para cumprir calendário, é que não me interessa minimamente. Vou sabendo dos penosos resultados do Benfica quase a rir-me, porque se há ano em que não custa perder o título é precisamente este. Mas soube ontem que Bruno Lage se tinha demitido, depois de péssimos resultados qeu já vinham de antes da interrupção. Estranho: Lage há um ano era um treinador vitorioso, elogiado por todos, que tinha reconquistado o título quando isso já era impensável e que apresentava uma atitude e uma disposição rara num técnico do nosso sofrível desporto. Tudo passou. Os resultados voltaram a ser maus, Lage parecia à deriva, o que transparecia na equipa, e o discurso passou a ser redondo, repetitivo, sem chama, a lembrar os últimos tempos de Rui Vitória, e no fim até perdeu um pouco a compostura. Ainda se pensou que resistia ao fim da época, mas nem isso. Não percebo bem o que falhou, se Lage, se a direcção, ao não lhe dar o que ele pretendia, ou os dois. As saídas de Jonas e de Félix não justificam os erros clamorosos na defesa. E depois há aquele suspeita de que a equipa não estava com ele, e quando assim acontece, é fatal.


Seja como for, não me esqueço do espírito de conquista que Bruno Lage trouxe à equipa, da sua honestidade e bonomia, da reconquista do campeonato, a que pude assistir, e até agora, quando pôs o lugar à disposição. Só me resta mandar-lhe um abraço e desejar-lhe todas as felicidades.

Bruno Lage: "A minha intenção é ver o jogo no meio dos adeptos ...