Candidatos, regressos e razõesPassadas as autárquicas, o assunto de que se fala são, inevitavelmente, as presidenciais, em especial o fim longo do tabu (mais um) do professor Cavaco, em confronto com as inúmeras candidaturas de esquerda. Bem sei que não devia falar muito do assunto, uma vez que, para quem leu o pequeno texto ali no cabeçalho, saberá que a minha vontade seria fazer referência a El-Rei de Portugal e não ao Sr. Presidente da República. Mas é neste regime que vivemos, e como o regresso da monarquia ainda não é para já, detenhamo-nos para falar um pouco dos senhores que vão ocupar a chefia de Estado nos próximos anos.
Antes de mais, esclareço: ao contrário da maioria dos monárquicos, eu voto nas presidenciais. Por uma questão cívica mas também pelo simples facto de que não há actualmente bases - populares, leia-se - para haver monarquia em Portugal; assim sendo, e como não quero ver isto entregue aos bichos, voto para que seja escolhido o representante da Nação e da (argh) República, apesar de não deixar de compreender aqueles que se abstêm de ir às urnas.
Como já é tradição acontecer, os partidos mais afastados da função governativa (e mais nas margens do regime democrático) apresentaram os seus candidatos, ou seja, os respectivos líderes, para lhes emprestar uma maior áurea de seriedade. A tarefa não parece colher muito êxito, quer pelas forma despudorada com que fazem a colagem candidato/partido (veja-se a apresentação de Jerónimo de Sousa, em que o próprio anunciou a sua cabdidatura como se de um terceiro se tratasse), quer pelo objectivo único a que se propõem, que é o de "impedir a direita de conquistar a presidência". Outro fim poderia passar por uma desistência para beneficiar um candidato de esquerda melhor posicionado; como ambos recusam esse cenário, fica-se com a impressão de que não concorrem para muito mais e que os seus votos virão do núcleo duro do seu eleitorado. O mesmo se pode dizer de Garcia Pereira, com menos atenções que há cinco anos, embora tenha uma postura mais rebelde e menos "aparelhística". A luta, poré, é a mesma, e o lema é, como sempre, "ousar lutar, ousar vencer".
Agora sim, os pesos pesados. Soares é o que se sabe: "pai do regime", conhece os cantos à casa de Belém como nenhum outro e continua a respirar política. Os argumentos relativos à sua "provecta idade" são um disparate pegado, típico de gente que ainda não aprendeu que Soares é a última pessoa que se deve substimar. Mas será razoável pensar-se que alguém que já ocupou todos os cargos políticos relevantes devia deixar definitivamente lugar a novas pessoas, e por consequência, a novas ideias. A eterna figura de "Pai da Nação" não o favorece desta vez, e além do mais o país é bem diferente do que era em 85. Agitar o fantasma da direita revanchista não leva a lado nenhum, até porque candidato algum pertence a esse segmento político. Atacar esses mesmos candidatos é um tiro pela culatra que atingirá inevitavelmente o pé, sobretudo pela forma desabrida com que o fazem, como de resto é bem visível
pelos textos destes senhores, que se lembram de falar de toda a gente envolvida nestas eleições menos do candidato que apoiam. Esta candidatura, em suma, é mais um reflexo do ego de Soares e da infinita admiração que alguns lhe têm do que um movimento de grande necessidade ou rasgo, como em 85, ou de pacífica consagração, como em 91. Soares avança porque se vê como um político imprescindível, porque não confia em Cavaco nem na sua falta de "humanismo", porque apesar de toda a sua astúcia e instinto ainda não entrou realmente no Séc. XXI.
Manuel Alegre é um caso bastante diferente. O nosso vate favorito, com aquela pose meio aristocrática meio republicano de 1910 (no fundo é um cruzamento dos dois), resolveu fazer meia-volta e mergulhar de cabeça nas presidenciais, sem grandes apoios nem partidos embevecidos, proque "é republicano". Confesso que apesar desta última razão quase dei um salto ao ouvirem directo a declaração de candidatura de Alegre, em Águeda, fazendo justiça à sua proverbial frontalidade. Para aumentar a confusão presidencial temos agora um candidato sem grandes tropas mas também sem os costumeiros aparelhos partidários atrás. É o mesmo que dizer que traz uma lufada de ar fresco (quando fizerem a comparação com Zenha, lembrem-se que ele tinha atrás de si o PRD e o PCP) à batalha eleitoral.
Po fim, Cavaco Silva, o professor regressado que acabou enfim com outro tabu, porventura o mais longo. A sua eleição é um dado quase adquirido (embora, como em todos os casos, merecesse alguma prudência, que eu penso que o professor tem). As sondagens atribuem-lh largo favoritismo, a imprensa está com ele, a esquerda moderada adoptou-o, o PSD rejubila,
a direita resigna-se ao que há. Parece ser o sucessor mais óbvio de Sampaio. E não admira, não só pela restante oferta como pela maneira messiânica e simultaneamente conciliadora e apaziguadora com que se apresenta, numa estratégia em que nada parece ter sido deixado ao acaso. Entusiastas não lhe faltam, desde aqueles que julgam que Cavaco irá logo dissolver a AR por causa "do governo ilegítimo" e da "armadilha de Sampaio", como é o caso do semper-cavaquista Vasco Graça Moura ( e muito surpreendentemente por Miguel Veiga, a avaliar pelas suas declarações recentes), até aos que acham que será um complemento perfeito do governo de Sócrates, e um garante de estabilidade, caso de Belmiro de Azevedo, entre outros. Espera-se pela clarificação das ideias de fundo da candidatura, das quais até agora só houve um ligeiro esboço.
Os dados estão lançados, e à excepção do muito provável vencedor, tudo o resto (quer dizer, os pontos secundários) será avaliado em Janeiro. Como eu gostaria que isto acabasse? Sim, como os demais, com Cavaco eleito. Mas só à segunda volta, com Manuel Alegre como adversário directo.
Agora espero não voltar a falar deste assunto até ao ano que vem.
Só para completar o que acima disse de Soares: apesar de considerar essa candidatura como o seu maior disparate político de sempre (como aliás lho disseram alguns dos seus fieis amigos de outras tendências), não é por isso que me esqueço que se vivemos em Democracia e temos eleições, a ele se deve, assim como o facto de pertencermos à União Europeia, e tantas outras coisas (como a importância e utilidade do Bloco Central, o governo mais injustamente sub-valorizado de sempre). E também não é nenhum senil nem nenhum pobre velhinho, como alguns pseudo-comentadores de fraca sabedoria andam para aí a ronronar. São atitudes que consigo conceber vindas da extrema-esquerda otelista ou do PC, ou da extrema-direita saudosista do 24 de Abril, mas nunca de sectores pretensamente democráticos. Assim, temos de ouvir incongruências dessa irrelevância política que é Nuno Morais Sarmento, ou daquele lunático fossilizado que volta e meia escreve no DN coisas dignas de uma novela mexicana, um não sei quantas Mendia, admirador confesso da época colonial, para quem "Soares é muito pior que Pinochet". É pena que a memória seja curta, a ignorância tão vasta e a mediocridade tão consentida. Mas é o preço a pagar por vivermos num regime livre, o mesmo que Soares ajudou a construír.