segunda-feira, dezembro 27, 2010

Duas gerações de Harlan



Já passou algum tempo, mas a notícia da morte de Thomas Harlan, em Outubro passado, num sanatório da Baviera onde já se encontrava há uns anos, só foi anunciada semanas depois e passou despercebida. O nome não será dos que mais facilmente virá à memória. Harlan era um realizador alemão, politicamente engajado na extrema-esquerda, que depois da 2º Guerra e de servir na Kriegsmarine, estudou em Paris e tornou-se amigo de Klaus Kinsky, mais tarde o actor fetiche de Werner Herzog. Viajou pela Polónia, atrás de nazis fugidos, por Itália e por inúmeros países, dentro e fora da Europa, onde colaborou com diversos movimentos de extrema-esquerda. Como tantos outros intelectuais esquerdistas, não perdeu a oportunidade de vir a Portugal em 1975 (na altura um destino turístico para activistas do gênero) para observar, estudar e filmar algumas acções mais simbólicas do PREC. Acabou por realizar um documentário sobre a ocupação das terras do Duque de Lafões, perto da Azambuja, por trabalhadores agrícolas, no processo de colectivização de latifúndios, documentário esse que ficou conhecido como Torre Bela, e que teve exibição comercial entre nós apenas em 2007. Na altura, algumas cenas de um realismo burlesco acabaram por ganhar alguma notoriedade, como a da "comprativa". A ocupação terminaria algum tempo depois, mas o filme tornar-se-ia um bom testemunho dos loucos meses do PREC.

Porém, a notoriedade de Thomas Harlan não se fica pela sua obra ou militância. Esta será antes um complemento dos antecedentes familiares. O seu pai era também ele realizador de cinema. Mas ao passo que o filho era activista da extrema-esquerda, Veit Harlan terá sido o mais famoso cineasta do III Reich, a par de Leni Riefenstahl. A autora de O Triunfo da Vontade ficava com o quinhão onde se difundia a glória e superioridade da "raça ariana", enquanto Harlan se encarregava do cinema "negativo", ou seja, da propaganda contra as "raças inferiores", particularmente os judeus. Realizou o tristemente célebre Jud Süß, o expoente máximo do anti-semitismo filmado (todo esse processo foi narrado num filme alemão deste ano, que ignoro se terá distribuição comercial em Portugal, embora torça para que venha).


A família Harlan personifica os sentimentos radicais de duas gerações alemãs. A do pai aderiu ao Nacional-Socialismo e colocou-se à sua disposição, oferecendo os seus talentos na depuração anti-semita. O filho, que conviveu de perto com altas figuras nazis, escolheu a barricada do lado oposto, abraçou as causas de extrema-esquerda, como tantos outros da sua geração (e alguns da seguinte, que nos anos setenta revelavam "simpatia" pelo grupo terrorista de Baader-Meinhof), que combatiam os resquícios da ideologia dos pais, tentando desinfectar a Alemanha de qualquer rasto de nazismo, e faziam-no recorrendo por vezes à violência armada, ao crime e à traição. Não sei se antes algum avô combateu nas trincheiras da Iª Guerra, mas em todo o caso os Harlan, com uma geração de extrema-esquerda sucedendo a outra de extrema-direita, são a face trágica da Alemanha dos últimos oitenta anos. Um e outro corresponderam a respostas desesperadas às catástrofes sofridas pelo seu país por responsabilidade das gerações anteriores. Nenhum o conseguiu. Acabaram por se confundir com o que de mais violento e fanático havia nas respectivas épocas no seu país. A morte discreta de Thomas Harlan dá-se numa altura em que os excessos de violência urbana dos anos setenta contra a próspera República de Bona foram esquecidos, e em que a Alemanha volta a afirmar-se como potência política, para a qual todos se voltam, e não já só económica.

sexta-feira, dezembro 24, 2010

A causa dos dias correntes

«Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto para ser recenseada toda a terra.
Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino governador da Síria. Todos iam
recensear-se, cada qual à sua própria cidade. Também José, deixando a cidade de Nazaré, na
Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e linhagem de
David, a fim de se recensear com Maria, sua esposa, que se encontrava grávida. E, quando
eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho
primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para
eles na hospedaria. Na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos
campos, guardando os seus rebanhos durante a noite. Um anjo do Senhor apareceu-lhes, e a
glória do Senhor refulgiu em volta deles; e tiveram muito medo. O anjo disse-lhes: «Não
temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de
David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor. Isto vos servirá de sinal:
encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.» De repente, juntouse
ao anjo uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo: «Glória a Deus nas
alturas e paz na terra aos homens do seu agrado.»
Evangelho de S. Lucas, 2, 1 - 14




quarta-feira, dezembro 22, 2010

Voou


O divórcio entre o Benfica e Juan Bernabé e a águia Vitória é um caso triste e dispensável. Estive no jogo de Sábado e não imaginava que ao mesmo tempo se davam confusões envolvendo seguranças e advogados. E as versões das partes são contraditórias. O tratador diz que o impediram de entrar no estádio e que há "sportinguistas" infiltrados nos corpos dirigentes. A SAD afirma que o espanhol é que agrediu um guarda e que há tempos que vinha demonstrando "comportamentos menos próprios". Não sei quem está mais próximo da verdade. O que é certo é que o magnífico voo da águia Vitória, revelado há sete anos na inauguração da nova Luz, não voltará ao estádio. Diz-se que se vai contratar um novo tratador, que virá uma nova águia, etc. é possível, mas ainda falta tempo. E nunca será a águia original, aquela que voou sobre o estádio no seu primeiro jogo, contra o Nacional Montevideu. Muitas vezes vi esse número, com uma criancinha a fazer o chamamento de sempre ("Vitória, vem!"), e com os visitantes, particularmente os estrangeiros, estupefactos e deslumbrados. Numa ocasião, salvo erro contra a Naval, quando eu ainda estava a chegar ao estádio, alguma coisa assustou a ave, que esvoaçava em volta dos prédios vizinhos da Luz.
Ao que parece, o conflito estará relacionado com o facto de Bernabé ter oferecido os seus serviços a outros clubes que usam aves no símbolo, como a Lázio (ver vídeo abaixo) e Flamengo. Esperemos agora pelo sucessor, mas com saudades da original, e mágoa por este caso acabar assim.







PS: Pôncio Monteiro sempre me irritou, com o seu fanatismo e as suas tiradas despropositadas. Mas há que confessar que sem ele aquele pequeno Mundo tão mediatizado do comentário futebolístico televisivo fica muito a perder, sem o seu estilo inconfundível, as suas atoardas e a sua pronúncia com "zs". E recorde-se também o desaparecimento de Aurélio Márcio, um dos mais isentos e justos comentadores que me habituei a ouvir na rádio (assim reconhecido por todos), e um dos históricos fundadores de A Bola.

terça-feira, dezembro 21, 2010

De Yaoundé ao Monte Ararat

Apoula Edel é um guarda-redes nascido nos Camarões, que cedo se mudou para o Pyunik Yerevan, clube da capital da Arménia, e que depois de alguns anos se naturalizou arménio, passando a defender a baliza da selecção daquele estado do Cáucaso. Passou ainda pelos romenos do Rapid de Bucarest, antes de desembocar no Paris Saint-Germain. Actualmente é titular na equipa da capital francesa.


Dificilmente conseguirei encontrar melhor caso para exemplificar a globalização. Perfeito era que o keeper passasse ainda pelo Atletico de Cali, da Colômbia, pelo South Perth, da Austrália, antes de acabar a carreira no Qatar. Isso sim, era O futebolista global (ou sem pátria, se quiserem) por excelência. Mas assim como está já é bom.


Só mesmo o futebol, para nos mostrar arménios nascidos nos Camarões, que trocam a humidade do Equador pela sombra do Ararat. Também assim se comprova a beleza deste desporto.
A Esperança encontra-se até nas filas à chuva

Como em tudo na vida, há momentos de azar. Estar na bilheteira do estádio a apanhar chuva e perder dois golos dos nossos é um exemplo entre milhões de outros. Mas conseguir ainda ver outros cinco (três dos quais dos nossos) já é uma reviravolta da sorte, sobretudo se o bilhete estiver a preço reduzido. Não sei se isto contribui para a esperança do leitor destas linhas, mas a intenção também era essa. Afinal, estamos no Natal, e os sentimentos cristãos, como a Fé e a Esperança no Advento, são para ser invocados nestas alturas.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

E assim aconteceu...


Além de grande promotor da cultura em Portugal, com o inesquecível Acontece (o tal programa que, segundo Nuno Morais Sarmento, o seu coveiro, custava tanto que "dava para pagar uma volta ao Mundo a cada português"), e de jornalista facilmente reconhecível, Carlos Pinto Coelho divulgou também as novidades da África lusófona, a sua paixão pela fotografia, e acabou por inspirar Carlos Filinto Botelho, uma das personagens mais antigas de Herman. Também por esse humor indirecto, mas não só, que descanse em paz e que não seja esquecido.


In dubio contra Assange

Falou-se tanto nestas últimas semanas sobre o WikiLeaks e o seu mentor, Julian Assange, que pouco ficou para dizer. Há opiniões contra, a favor e assim-assim. Falar de todo o caso tornou-se um exercício quase repetitivo. O que é que se pode dizer do fenómeno? Que tanto pode ser útil e realmente justo, como quando denuncia delitos praticados por estadistas, fraudes monumentais e crimes encobertos, como demagógico e perigoso, ao desvendar tudo quanto os diplomatas enviam nas suas missivas. Faz com que a tensão cresça desnecessariamente entre os estados. Os defensores furiosos do WikiLeaks referem a "hipocrisia" dos diplomatas; custa-me a crer que tenham sempre dito na cara o que realmente pensam das pessoas, que nunca tivessem dito nada de menos abonatório na ausência do visado ou que não se importem de ver a caixa de correio devassada.
Quanto a Assange, o homem do momento (e do Ano), é óbvio que a sua prisão por "delitos sexuais" não convence nem a velhinha do 3º Direito e é uma desculpa esfarrapada para o deter. Mas aquela face aparentemente calma desvenda um auto-intitulado profeta da informação verdadeira, uma espécie de pregoeiro messiânico da net, anunciando o pior dos tempos aos americanos, e apenas a esses. Alguém que acha que tem uma missão atribuída por sabe-se lá que divindade e a quer levar a cabo contra a Babel americana, desprezando a diplomacia e as relações internacionais. Esse homem, evidentemente, é um fanático. A maioria dos fanáticos messiânicos apresenta uma figura calma e uma voz melíflua (Hitler era uma excepção). Na dúvida, estou do lado contrário ao dele.
PS: ao menos o caso serviu para alguma coisa: por exemplo, para ganhar ainda mais consideração pelo actual MNE, que soube conservar as alianças sem deixar cair princípios básicos. Sim, falo dos voos americanos.

terça-feira, dezembro 14, 2010

Escatologia na porta da net
Há tempos, falava-se aqui da literatura escatológica de porta de casa de banho. Mas isso são marcas que se vão apagando com o tempo. A escatologia escrita (e a rasquice em geral) permanecem e até se expandiram, mas alojaram-se completamente em tudo quanto é fórum ou caixa de comentários da net. É ver para crer. As maiores taras, os ódios mais ressabiados, as frustrações mais dissimuladas, a estupidez mais incontroladas, acabam todas ali, em especial quando o assunto toca bola, questões de fé ou ódios ancestrais. Nisso o Sousa Tavares tem toda a razão.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Mais um disparate ultrapassado


A famosa "candidatura ibérica" suportada pelas federações futebolísticas de Espanha e Portugal perdeu. Ainda bem. Quando ouvi o nome do vencedor pela rádio fiquei satisfeito (mas não surpreso, porque nos corredores da FIFA já se sussurava que a Rússia tinha ganho). Como já aqui escrevi há mais de um ano, estava totalmente contra este projecto, pela mentira inicial - a de que serviria para aproveitar os estádios menos usados construídos para 2004 - pela subserviência a Espanha, como atesta a pouca importância votada aos recintos de Portugal, que nem o jogo inicial receberiam, e até o termo "ibérico", que conduz directamente ao país vizinho - e também pela razão moral de que se um país (neste caso, dois) atravessa uma grave crise financeira e económica, não se deve lançar em mega projectos desta natureza para o futuro. Além de que assim o TGV já pode ficar adiado sine die (o Mundial seria um bom pretexto para se avançar com a sua construção).


Ao mesmo tempo, já tinha tomado partido pela Rússia. A candidatura da Bélgica/Holanda já estava de fora, e os ingleses, como é tradição desde Francis Drake, fizeram uma autêntica acção de pirataria mediática, lançando através dos seus influentes jornais suspeitas sobre todos os outros candidatos. No fim, saíram pela porta pequena, e nem a presença do cómico Boris Johnson lhes valeu para que o football comes home. Terão de esperar mais uns anos antes de tentarem repetir a proeza concedida em 1966.

Assim, a velha pátria dos czares vai ser a anfitriã em 2018. Embora tenham organizado os Jogos Olímpicos de 1980 (os do ursinho Mischa, boicotados por meio mundo), não têm grande experiência na matéria, mas julgo que, ao contrário do que imaginam os perspicazes Zapatero e Sócrates, a causa da sua vitória é mesmo a possibilidade de um grande país ter a oportunidade de organizar um evento destes partindo do zero e erguendo novas infra-estruturas. Não precisaram de Putin nem de Medvedev na cerimónia para nada, e por via disso houve quem suspeitasse logo de subornos e rublodólares por baixo da mesa, não se sabe se com informações fidedignas ou se por inveja. Certo é que novos e grandiosos estádios surgirão em Moscovo, São Petersburgo e Kazan, com o apoio da Gazprom, e circular-se-à pelas imensas estepes entre estas cidades em comboios gratuitos (promessa da organização). Se não for antes, até pode ser um bom motivo para conhecer finalmente o país de Pedro O Grande.

sábado, dezembro 04, 2010

4 de Dezembro


A cada 4 de Dezembro, e mais ainda de dez em dez anos, é-se bombardeado com a memória de Sá Carneiro (e mais modestamente, Amaro da Costa). Discute-se se a tragédia que os levou se tratou de acidente ou atentado, milhentos barões e respectivos assessores falam na "herança de Sá Carneiro", mostram-se enésimas imagens dos amores felizes do fundador do PPD e de Snu Abecassis. Não vale a pena discutir essa avalanche, porque é uma fatalidade conhecida, e as fatalidades são imunes a qualquer discussão. Saúdam-se no entanto as novas biografias de Sá Carneiro, entre as quais uma reedição do livro de Maria João Avilez, muito embora a de Amaro da Costa me pareça uma obra epistolar que pouco revela da sua visão do Mundo. Mas podia-se então aproveitar para mudar boa parte da toponímia urbana que se apoderou de praças tão respeitáveis como a Velasquez e a do Areeiro. Dê-se o nome de Sá Carneiro a novos arruamentos e retomem-se os nomes originais (isto vale para o aeroporto de Pedras Rubras, cujo nome oficial parece uma brincadeira de mau gosto). Quanto a Amaro da Costa, julgo que não haverá grandes alterações a fazer, embora o Largo do Caldas seja conhecido assim por todos, a começar pelas gentes do seu partido. Mais útil seria recuperar o seu arquivo, perdido nalguma sede partidária do CDS do distrito de Beja, onde como se sabe, são às centenas...

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Ernâni Lopes 1942 - 2010


Desapareceu hoje, vitimado pela doença que já em tempos o apoquentara, o melhor Ministro das Finanças das últimas décadas, um dos poucos que não escondeu a situação caótica das contas públicas aos portugueses. Exerceu o cargo no mais impopular governo da III República, o do Bloco Central. Teve de recorrer ao FMI, adoptar uma autêntica política de austeridade e tomar medidas draconianas. Foram tempos atribulados, mas graças a ele e à entrada de Portugal na CEE, com os fundos subsequentes, seguiram-se anos de prosperidade e estabilidade como o país já não se lembrava. Cavaco Silva deve-lhe uma fatia de leão das suas maiorias absolutas pela trabalho realizado, mas lamentavelmente sempre o ignorou. Numa altura em que atravessamos uma grave crise financeira, económica e moral, não é apenas triste perdermos homens assim: é desolador.