Estrunfes, Smurfs e a sua utopia estalinista
A silly season deste ano justificou amplamente o nome. Fosse porque era preciso abstrair da crise, fosse porque o executivo mudou, houve discussões que circularam entre o disparate e o humor. A medida da ministra Assunção Cristas, por exemplo, de dispensar os funcionários de levar gravatas durante o verão para os ministérios que tutela, exceptuando situações mais formais, levou a uma intensa discussão sobre se a gravata estava na moda, se estaria em declínio, ou se era um símbolo fálico que anunciava uma decadente masculinidade. Aproveitando este último mote, houve mesmo uma ex-secretária de estado da "igualdade" que aproveitou a deixa para exprimir o desejo que aquelas simples orientações se traduzissem "na emergência de novas masculinidades", que seriam "fundamentais para mudar de paradigma" e para uma "nova civilização", para além das "diferenças reprodutivas e biológicas". Que alguém que ache que entre homens e mulheres não deva haver diferenças (ou que se transformem em seres hermafroditas) chegou ao governo provoca alguns arrepios. Espero que não tenha muitas seguidoras, ou veremos nova vaga de feminismo radical, e do histérico.
Um dos casos mais curiosos da estação foi a indignação, seguida de uma vaga de saudosismo, com a estreia do filme
Os Smurfs. Devo dizer que partilho de ambos, ou não tivesse tido uma imensa dificuldade em escrever o nome dos duendes azuis com aquela designação anglo-saxónica, usada também no Brasil, tão longe do original, e que ao que parece se deve ao facto dos detentores dos direitos dos bonecos quererem "uniformizar" os nomes em cada língua, o que significa que em Espanha eles têm mais do que uma designação,
como nos conta Ricardo Araújo Pereira . Por azar, impingiram-nos a designação que os brasileiros usam, como se já não bastasse o famigerado Acordo Ortográfico, em lugar de fazer o contrário, isto é, pôr os brasileiros a usar o nosso Estrumpfe, que ao fim e ao cabo segue o original francês Schtroumpfs. Chamemos-lhes estrunfes, já que ainda podemos usar a nossa língua.
A afronta pode-se medir pela quantidade de artigos em jornais (além do supracitado do RAP) reclamando contra a nova designação e sobretudo contra o ataque à infância de toda uma geração, que por acaso também é a minha. Confesso: ver os estrunfes de sempre serem agora apelidados de smurfs revolve-me as vísceras. Seria como mudarem-me o nome de João para Jeremias. Se alguém acha o exemplo exagerado, pode sempre imaginar os nomes de Tintin, Astérix ou Lucky Luke alterados e ver a diferença. Ou ver o cómico exemplo da Estrunfina, agora chamada...Smurfina.
Mas a polémica desta nova versão é apenas mais uma num ano atribulado para as criaturas azuis. Não sei se por coincidência ou por estranho golpe publicitário em ano de filme, em Junho
surgiu um pitoresco estudo de um ensaísta francês, de seu nome Antoine Buéno,que concluía que os bonecos azuis representavam uma "utopia estalinista e totalitária", além de exprimirem "anti-semitismo". Tudo porque "cada um se veste da mesma maneira, tem uma casa igual à do seu vizinho, e exerce a profissão mais adequada às suas habilidades, não sendo conhecidos pelo seu nome mas sim pela sua função na sociedade. Eis o velho jargão de Marx "de cada um as suas capacidades..." usado para caracterizar a aldeia dos estrunfes, juntamente com a homogenia arquitectónica e das vestes. Sempre pensei que as casas-cogumelos fossem um delicioso pormenor da série, mas afinal há quem pense que não. Assim como seria complicado desenhar as criaturas de forma diferente (é verdade que eles nem se distinguem), mas apanhar nomes para cada um deles seria tarefa complicada e desnecessária. A única coisa que noto vagamente aparentado com o marxismo é algum utilitarismo.
Outras comparações que o estudioso faz é a do Grande Estrunfe (com as suas barbas e o seu barrete vermelho) com Estaline, ou a dos Estrunfe dos Óculos com Trotsky. Aqui, a pressa é visível: o Grande Estrunfe é tudo menos um tirano, apesar da sua autoridade e dos seus poderes alquímicos, e o dos Óculos está longe de ser um opositor, sendo antes um seguidor até ao limite do primeiro da aldeia, seguindo à risca (e de forma particularmente graxista) as suas ordens. A ausência de propriedade e de iniciativa privada, bem como de "mercados", é outra coisa que não faz espécie à maior parte dos mortais, mas alguém se lembrou disso, como se os autores não tivessem mais nada que fazer.
As acusações de anti-semitismo são mais compreensíveis. O inimigo mortal dos estrunfes, Gargamel (na antiga versão, Gasganete), tem nome e fisionomia judias, com o típico nariz adunco, e o seu malvado gato chama-se Azrael. Poderiam ser reminiscências sub-conscientes do anti-semitismo que atravessou a Europa até aos anos quarenta? É possível. Hergé também sofreu acusações semelhantes. Mas nunca, na minha infância, ao ver os seus desenhos animados e os álbuns dos estrunfes, essa ideia se me introduziu no espírito. Já as acusações de racismo e colonialismo por causa do álbum Os Estrunfes Negros é mais palha para alimentar a discussão do que outra razão qualquer. Numa história centrada numa epidemia com elementos vampíricos (ou da mosca tsé-tsé), teria o mesmo impacto se se tornassem brancos? Ou vermelhos? A juntar a isso, a pobre da Estrunfina leva por tabela, por ser loura, ou seja um modelo "ariano". Em criaturas azuis, convenhamos que louro sobressai mais. Uma estrunfina morena jamais teria semelhante impacto.
O filho de Peyo, o criador belga dos bonecos, já veio desdramatizar a polémica. Ao que parece, o pai nunca esteve ligado à política, nem demonstrou grande interesse. Mas os editores com quem trabalhava, em especial o co-autor Yvan Delporte, tinham algumas simpatias anarquistas, que como se sabe nunca se deram bem com a disciplina estalinista (vide a Guerra de Espanha). Em todo o caso, o livro colheu alguma polémica, que poderá até ser um veículo para o filme. Mas pensar que os estrunfes seguiam aquele modelo de sociedade e que Peyo tinha secretas intenções de construir na BD a sua utopia colectivista e totalitária já parece demasiado rebuscado. Lembra aquelas desconfianças em relação a Vasco Granja, de que ele estaria a doutrinar as criancinhas com os seus bonecos do Leste. Bom seria retirar essa hipotética (e absurda) carga ideológica e as teorias da conspiração que se levantaram e considerá-los os bonecos divertidos e desastrados que sempre foram. Se quiserem, atribuam-nas aos "smurfs". Mas nunca aos estrunfes.