sexta-feira, novembro 30, 2018

Um desporto francês


Muita gente fica admirada com a "violência" das manifestações dos "Coletes Amarelos" em França, como se fosse um fenómeno raro por aqueles lados. O caso é sério, mas não é exactamente o Maio de 68 e menos ainda a Revolução Francesa. Manifestar-se com certa agressividade é uma velha tradição no hexágono: desde a Jacquerie da Idade Média, continuando com a Fronda, a Comuna, e claro, as referidas Revolução Francesa, que realmente mudou o país, e o Maio de 68, e muitíssimas outras pelo meio, é quase um desporto nacional, ao lado do ciclismo e do futebol.
Aí em meados da década passada assisti a uma manifestação bem no centro de Paris., perto da Ópera Garnier Eram bombeiros, com umas exigências quaisquer. Vinham de uniforme, capacete, e em alguns casos de machado em punho. A impedir a sua marcha, barreiras policiais e camiões de água. Quando se lançaram os jactos de água actuaram e conseguiram travá-los por uns momentos. Mas logo os bombeiros voltaram à carga e aí a polícia não esteve com meias medidas e usou o gás lacrimogêneo. Eu andava a fotografar os acontecimentos e apanhei em pleno com aquilo. Garanto-lhes que a experiência não é nada aconselhável. Refugiado no átrio de um edifício vizinho, a lavar a cara num bebedouro que julguei na altura oportuno (pior a emenda que o soneto), junto a uns japoneses atemorizados, ouvia ao lado um veterano com ligeiro ar tardo-anarquista, desdenhoso: "isto não é nada, jeunne homme. Eu estive no Maio de 68, e aí é que era".

Os jornais do dia seguinte deram umas breves notícias ao acontecimento. Era mais um entre tantos outros semelhantes.


quarta-feira, novembro 21, 2018

O inclusivo



Pedro Filipe Soares, o infeliz líder parlamentar do Bloco, escreveu ontem no Público um artigo a louvar a "linguagem inclusiva", sendo exemplo disso a expressão que ele usou na convenção do seu partido: "camaradas e camarados". A esse tipo de linguagem, para "mudar mentalidades", já George Orwell lhe deu um nome no "1984": chamou-lhe novilíngua. Seja como for, não deixa de ser estranho vermos alguém afirmar-se "inclusivo" dias depois de afirmar que "não fala da direita porque esta não conta para o futuro do país". E Pedro Soares, conta para o quê, para além da invenção de novos termos?

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quarta-feira, novembro 14, 2018

Cobras e bonsais


Tocar nos clássicos é tarefa delicada. Fazer sequelas muitos anos depois é um caminho provável para a catástrofe. Mas se forem retomados sem se levarem demasiado a sério, para mais com os protagonistas originais, e se estes envelheceram bem (ou o suficiente para voltar ao sítio onde foram mais ou menos felizes), podem surgir daí resultados interessantes. Ah, e se os papeis do "herói" e do "vilão" levarem ali umas voltas e se confundirem, melhor ainda.

Trinta e tal anos depois do início, Karaté Kid está de volta, agora em forma de série do Youtube. Com os protagonistas agora cinquentões (finalmente o Ralph Macchio tem um aspecto parecido com a real idade dele), as filosofias de vida e de guerra, e todos os paradoxos ligados à pertinente questão "afinal quem é o bom e quem é o mau".


quinta-feira, novembro 01, 2018

Voluntariado ao frio


À porta do cemitério, já perto da hora do fecho, e no alto da escadaria de granito na base da qual estão inúmeras bancas de venda de flores, três ou quatro voluntárias da Liga Portuguesa contra o Cancro cumprem a sua missão, pedindo donativos em "troca" do autocolantezinho da instituição. Estão claramente enregeladas, porque está um tempo desagradável de quasi-chuva, mas mesmo assim não perdem o sorriso e a modéstia, enquanto conversam e vão mostrando os seus smartphones umas às outras (também é preciso passar o tempo). Já ali estão há umas horas e não recebem nada por isso, excepto gratuitidade nos transportes públicos (só hoje e ontem, desde que com identificação da campanha). E lembra-me quando há muitos anos passei pela mesma experiência, antes de achar que tinha outras coisas que fazer, porventura bem menos importantes.
Ao contrário do que dizia a outra, o voluntariado não é treta nenhuma. Treta é inventarmos muitas vezes desculpas para não o cumprirmos.