domingo, março 31, 2019

As amnésias de Constâncio


Só hoje vi melhor as figuras de Vítor Constâncio nas suas respostas à comissão parlamentar sobre as suas responsabilidades nos anos em que exerceu o cargo de presidente do Banco de Portugal. Constâncio não tem qualquer memória da sua actividade de dez anos naquela cadeira e nem tem memória dos aviso que recebeu e das pessoas com quem falou de assuntos delicados. A mesma atitude de "não me lembro de nada" e "não tenho ideia" que já tínhamos visto a Zeinal Bava e Ricardo Salgado, e já agora, ao ainda titular Carlos Costa. A conclusão a que chego é que aquelas salas têm uma propensão para a amnésia. É melhor fazerem as audições noutro lado.

É bom recordar que Constâncio, tido como "genial" e "brilhante" (se vivesse 100 anos antes seria a inspiração directa para o "talentoso Pacheco", de A Correspondência de Fradique Mendes, de Eça), era líder do PS em 1987. Cavaco Silva ganhou as legislativas desse ano com 50% dos votos. O PS, liderado pela ex-Presidente do BdP, teve 22%, e a CDU de Álvaro Cunhal, já sem o MDP-CDE, ligeiramente mais de 12%. Ramalho Eanes e Adriano Moreira, respectivamente à frente do PRD e do CDS, e hoje tidos como referências morais da política portuguesa, não chegaram em conjunto aos 10%. Antes de estarmos sempre a verberar os políticos, que não caem do céu nem surgem por magia, podíamos antes questionar as escolhas dos eleitores portugueses. 

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quarta-feira, março 27, 2019

Acre, cobiçada por todos, pertencente a muitos


Não sendo imune ao chamamento das grandes metrópoles, tenho uma particular atracção pelas cidades médias ou pequenas, que tantas vezes fogem ao roteiro dos guias turísticos e às campanhas das agências e das companhias aéreas. E sobretudo as que têm uma amálgama de influências culturais diversas e uma historia respeitável.

Acre cumpre totalmente esses requisitos. Está ali na ponta da baía de Haifa, com essa cidade portuária do outro lado, dominada pelo monte Carmelo, e o Líbano a poucos quilómetros a norte. Vem de tempos imemoriais, e desde a Antiguidade que é um dos principais portos do Levante. Por ela passaram fenícios, persas, egípcios, judeus, gregos, macedónios, romanos, bizantinos, árabes, cruzados europeus, turcos, ingleses e de novo judeus. Sofreu inúmeros cercos e conquistas. O mais famoso terá sido o de 1291, quando era o último bastião do Reino Latino de Jerusalém, e caiu nas mãos dos mamelucos egípcios. Os vestígios cruzados nunca desapareceram totalmente, mas a arquitectura e a configuração da cidade alteraram-se bastante com os seus novos ocupantes, e sobretudo com os turcos, que se lhes seguiram. Napoleão também tentou apoderar-se daquele ponto estratégico, no seguimento da campanha no Egipto, mas o seu cerco não surtiu efeito e os otomanos resistiram. Acre passaria ainda para as mãos dos ingleses, no decorrer da Grande Guerra, que a mantiveram durante o Mandato Britânico da Palestina, e estava incluída no território palestiniano projectado com a divisão do território planeada pela ONU, mas o primeiro conflito entre os países árabes e o novo estado de Israel determinaria que ficasse no território deste.

A cidade novo de Acre, moderna e sem graça, é habitada por judeus. Ultrapassada a primeira cintura de muralhas, já do tempo dos turcos, entra-se numa cidade quase exclusivamente árabe e turca. Mas os vestígios do passado pré-muçulmano estão lá. A antiga cidadela dos Hospitalários impõe-se e recebe os visitantes no seu comprido refeitório, nas suas torres e na praça de armas desta ordem que depois de andar séculos entre ilhas do Mediterrâneo com a "casa às costas, converteu-se na actual Ordem de Malta. O edifício serviu já no século XX de prisão de rebeldes judeus que combatiam o Mandato Britânico da Palestina.


A partir daí começa a cidade árabe, com a esplendorosa mesquita turca El Jazzar, e segue-se o miolo urbano formado por ruelas serpenteantes que se desdobram em mais ruelas, num labirinto interminável e algo espantoso numa cidade de dimensão reduzida. Ao contrário do resto do país, as placas estão quase todas em árabe, não em hebreu, nem são bilingues. Sucedem-se pequenos souks ou lojas de rua. Mas mais uma vez a herança cruzada (já) não está totalmente escondida. Nos anos noventa, um banal problema de terrenos levou à descoberta de um túnel subterrâneo, com centenas de metros de extensão, pertencente aos antigos templários, que se acolhiam do lado ocidental da cidade, quase junto ao mar. O túnel começa precisamente junto às muralhas já a tocar na água e desemboca num dos muitos becos do centro. Nalgumas extensões não ultrapassa o metro e meio de altura e naturalmente a humidade invade-o. Nas paredes de blocos graníticos, e entre os arcos de ligação, podem-se ver algumas explicações gráficas da obra, enquanto uma gravação nos tenta explicar os contornos daquela construção. Hélas, está em hebraico e os esforços são inúteis. Mas imagina-se o afã dos cavaleiros do Templo em tempo de cerco.


Pelo bairro, pelas muralhas batidas pelas ondas, no pequeno ancoradouro, outros nomes trazem-nos as memórias de antigos detentores do burgo: praça dos genoveses, praça dos venezianos, bairro dos templários, porto pisano, etc. Os baluartes defensivos são já quase todos do tempo dos turcos, mas pode-se imaginar, até em pequenos troços do seu tempo, os cruzados a defender tenazmente o último bastião do condenado Reino Latino. Será mais fácil pensar que aqueles mesmos muros resistiram às tentativas inúteis de Bonaparte de tomar a cidade. Os canhões que ainda lá estão decerto testemunharam este episódio. Agora são testemunhas de um belíssimo pôr-do-sol, com a silhueta de Haifa do outro lado da baía.





Se os templos são quase todos muçulmanos, avista-se também uma ou outra igreja, como a maronita encostada à muralha. E além da arquitectura militar e religiosa, há outros edifícios notáveis, como o Khan al-Umdan, o único caravançarai em território israelita que se pode arrogar desse título, uma construção imensa com um amplo terreiro rodeado de arcos, e rematada por uma torre do relógio, que domina a vizinha Praça dos Venezianos. Diz-nos a sempre prestável Wikipedia que neste edifício é que Bahá 'u`lláh, refugiado da Pérsia, começou a divulgar as suas ideias religiosas numa escola para o efeito, começando aí a pregação da fé Bahai, cujos principais templos podem ser encontrados à volta de Acre e sobretudo em Haifa. Nas redondezas há ainda os banhos turcos e a Khan al Sawarda, uma praça mercantil rectangular com uma curiosa fonte no meio, de arquitectura indiscutivelmente otomana. Tudo isto a dois passos do porto, outrora comercial e de guerra, hoje mais ligado à pesca e ao turismo, a única parte que não está rodeada de muralhas. Acre, a antiga cidade dos cruzados que pertence a Israel mas que permanece árabe/turca; a comprová-lo, a voz do muezzin ouve-se nos altifalantes das mesquitas ao fim da tarde e ecoa sobre todas aquelas memórias.

Nota: talvez o muezzin fosse novo, já que ocorreu há pouco tempo uma curiosa história: o responsável pelo chamamento dos fieis da mesquita El-Jazzar era reconhecido como tendo uma voz "que nem em Meca se encontrava uma tão bela". Mas dedicava-se também à musculação e ao bodybuilding, e tinha até representado Israel em competições internacionais da modalidade. Ora o responsável ministerial pelos assuntos religiosos considerou que tal prática não era compatível com a de muezzin, até pela exposição pública com pouca roupa, e determinou a sua demissão do posto. A decisão despoletou vários protestos entre os muçulmanos de Acre, que consideraram que as duas coisas não eram incompatíveis, e que pediam ao menos uma segunda oportunidade, mas tudo leva a crer que será em vão. Resta ao inconformado ex-muezzin dedicar-se agora em exclusivo ao seu próprio ginásio. 

quarta-feira, março 06, 2019

Sobre o festival e a criatura vencedora


Posso dizer, com elevadíssimo grau de probabilidade, que não vou mudar a opinião que tenho do vencedor do último festival da canção, essa grande instituição. Desde o início que embirrei severamente com Conan Osíris, desde o nome até à figura, contando obviamente com a música. Aos primeiros acordes achei logo que aquilo não era nada. E a crescente popularidade sempre me pareceu um hype exageradíssimo com fortes suportes externos (como por exemplo, actuar na Casa da Música em plena noite de visita livre. Não havia mais ninguém?). Depois de ouvir a "canção" vencedora fiquei ainda mais com essa impressão (e ainda não tinha ouvido o discurso "bué da cool" da criatura). Não, aquilo não é música, não tem piada, a letra não é subtil, e podendo ser original, é o exemplo cabal do que é original mas não é bom.
É verdade que à partida não gostei da música de Salvador Sobral, que a interpretação e imagem me causavam estranheza, e que depois mudei de opinião. Mas aí estamos a falar de um músico a sério, cuja imagem era prejudicada por graves problemas de saúde. Aqui, ou o tipo está a gozar com o pagode - a começar pela "classe artística" que o anda a incensar e a compará-lo com o Variações (há mesmo um que diz que "é parecido mas mais afinado"!!!) e que demonstrará quão ridícula pode ser - ou é um dos actos de propaganda mais estranhos de que tenho memória. Em todo o caso, a mim não me convencem, nem que ganhe o festival. E se aquela israelita a cacarejar vestida de japonesa ganhou, não é impossível que este consiga fazer o mesmo.