O meu post anterior era uma paródia suave a uma Roménia que cabe dentro daquilo que imaginação colectiva ocidental idealizou sobre os países balcânicos. Por falta de arte e engenho, e também de tempo, acabou por não ser uma coisa descabelada e alucinante, perceptível à primeira vista. Trata-se de um relato misturando factos reais, outros mais exagerados e algumas invenções.
O aeroporto não é assim tão rudimentar (e só levava bagagem de mão), não andei de táxi, pelo que a imagem dos taxistas é decalcada da caricatura portuguesa, não vi colunas armadas ou salteadores de estrada; as cidadelas estão apesar de tudo recuperadas e não há famílias ciganas lá a viver (aí, confesso, recordei-me das famílias africanas que se instalaram nos edifícios construídos nas cidades moçambicanas, como o Hotel Polana); os resorts não apontam quaisquer restrições étnicas. Não há muitos petroleiros mesmo à vista à beira-mar, como é óbvio, embora haja lanchas e jet-skis, e as únicas advertências quanto a indumentária respeitam a restaurantes que proíbem a entrada a gente em fato-de-banho (ainda por cima a maioria dos homens usa tangas). E já agora, o que escrevi sobre Bucareste é obviamente um exagero, embora não totalmente afastado da realidade (o problema dos cães era real mas está atenuado).
No entanto, e
como diz António Teixeira no comentário a esse post, muitos dos que se referem a Portugal como "a cauda da Europa" poderiam ir dar uma volta à cintura de Bucareste, só para não se afastarem muito, ou à região da Moldávia (não ao país com o mesmo nome) para se tornarem mais benevolentes com o nosso país.
Quem tente ir de carro do aeroporto Optopeni, que serve a capital, a Constança, terá muitas dificuldades em chegar à auto-estrada, porque as indicações são nulas. Com algum azar, seguirá na direcção contrária, rumo a Oeste. Se se orientar, percorrerá a cintura de Bucareste em direcção à via pretendida, mas terá de ser paciente com as filas de pára-arranca por causa das obras; no tempo despendido, poderá admirar os inúmeros stands, barracões e estabelecimentos pré-fabricados de carácter comercial que se alinham junto à estrada, muitas vezes servidos de caminhos de terra. Pelo meio, na estrada e nas margens, passam cães de todo o tipo. Os indígenas é que nem sempre têm muita disposição para esperar e muitos ultrapassam celeremente as filas para se reenfiarem lá mais para a frente; o chico-espertismo português pede meças à forma de conduzir romena.
A auto-estrada que conduz à região do Mar Negro é boa, até porque atravessa a extensa planície da Valáquia, mas infelizmente ainda não está concluída, pelo que atravessado o Danúbio se tem de ir por estrada normal, com imenso trânsito à frente; na margem das estradas somam-se os tascos, restaurantes e bares, aguardando por locais ou camionistas.
Depois, a costa romena, pouco extensa. Constança, a capital natural dessa região, deve a sua importância ao facto de ser o grande porto do país (e o maior do Mar Negro), mas faz gala do passado grego e romano. a memória da cidade recorda Ovídio, o poeta exilado nestes lados. A referência da cidade é a praça com a sua estátua, atrás da qual há um museu de arqueologia e um conjunto de mosaicos romanos.
A Praça Ovídio
Mas a grande atracção de Constança é o soberbo casino, debruçado sobre o mar, a meio da corniche. Infelizmente está fechado; acredito que seja para remodelação, porque de outro modo não se entende como se desperdiça uma pérola semelhante, como casino propriamente dito ou como centro de recepções, festas ou celebrações. Não é difícil imaginar, na Belle Epoque, o rei Carol II, acompanhado pela sua Magda Lupescu, e dignitários romenos e convidados estrangeiros, nos salões e nas varandas debruçadas sobre o mar, antes dos ventos que sopravam na Europa e ameaçavam o país.
Além do casino e dos vestígios romanos, há ainda perto o farol genovês, uma mesquita e algumas igrejas dignas de nota e variados museus. Mas Constança, a antiga Tomis dos gregos, parece algo maltratada, apesar do seu estatuto de estância balnear e de aí afluir muita gente no Verão. Mas os tratos - pisos quebrados, cabos eléctricos pendentes por toda a parte, quais lianas, casas com valor arquitectónico abandonadas e quase a cair - não devem ser muito diferentes no resto do país.
Para sul, a costa está povoada com aqueles resorts artificiais do tempo do regime comunista, com nomes de planetas (ou Deuses) como Saturn, Jupiter ou Neptun. Alguns blocos de apartamentos, restaurantes perto do mar e praias semi-concessionadas. Ao que julgo saber, noutros tempos, Cunhal passou férias nestas bandas. Uma das praias parece o Nordeste brasileiro, tal a afluência de gente, o comércio de bugigangas e os pronto a comer nos caminhos de terra que levam ao areal. Ainda mais para sul há estaleiros e uma base naval, até se atingir a fronteira com a Bulgária, para lá da qual se estendem campos de cultivo, que imediatamente recordam a antiga propaganda soviética da produção cerealífera.
A Norte de de Constança fica a mais selectiva zona de Mamaia, uma península estreita ladeada de hotéis e alamedas, com a praia logo atrás. Há um cuidado maior nesta zona. O comércio é florescente e há até uma portagem para se lá entrar. Lembra um pouco mais "a Europa civilizada".
Toda esta região do Mar Negro sofreu bastante a influência otomana. Por isso, nas aldeias e pequenas cidades que se encontram ao longo da estrada, como Babadag - o nome é claramente turco - vêem-se invariavelmente mesquitas, e gente de tez mais morena do que o comum dos romenos. Muitas casas são de madeira, e nalgumas aldeias têm todas poços à sua frente, com bermas fundas na estrada, que indiciam saneamento muito básico (ou inexistência do mesmo). Mulheres de idade com lenços coloridos à cabeça conversam nos umbrais das portas. E há três coisas com que se pode contar sempre: cães, carroças puxadas por burro ou cavalo e carros de modelo Dacia 1200.
Esses sinais estão igualmente presentes em Tulcea, a última cidade em terra firme antes do Delta do Danúbio, uma enorme região natural formada por canais braços de rio e lagunas, por onde se espalha o grande rio. Uma zona bastante procurada por turistas, tanto que a cidade, estendida numa curva do rio, vive muito dessa actividade, para além de alguma indústria e do porto e comércio fluvial. Há barcos, barquinhos e vapores que levam os visitantes pelo três braços do Delta, entre os pântanos e os bosques, e os ecossistemas naturais, até à fronteira da Ucrânia, quase ali ao lado, ou mesmo a Sulina, a pequena cidade costeira, onde é quase impossível chegar por terra e que marca o fim do grande rio. Pelo meio, as aldeias desse povo expatriado e quase anfíbio, pescadores de origem russa e de longas barbas que são os lipovenos, descendentes dos que em tempos fugiram por quererem conservar os ritos da velha Igreja Ortodoxa Russa.
Para Oeste da região do Delta fica a Moldávia romena. Em Braila, que tal como a sua vizinha Galati é uma cidade de gruas e fábricas, procura-se a ponte para se atravessar o Danúbio, sempre omnipresente com os seus vários canais. Não há: tem de se cruzar o rio no transbordador de ocasião e perde-se um tempo imprevisto. Passam barcaças carregadas de sucata e madeira. Tem de se atravessar Braila, com os seus prédios decrépitos, os seus rails metálicos e as suas avenidas mal empedradas. A paisagem que se deixa para trás recorda-nos inevitavelmente os filmes de Kusturica.