Já tinha decidido que não ia escrever nada sobre o assunto, mas ao ouvir hoje de manhã a Antena 1 colocar no seu "fórum do ouvinte" o assunto da "emigração dos jovens quadros" por causa da "carta de um jovem enfermeiro que emocionou o país", mudei furiosamente de ideias.
Não sei que país é esse que ficou emocionado, para além dos editores da rádio, mas eu não me conto nessa mirífica terra. A princípio, achei tudo isso um pouco cabotino. Mas ao encontrar
mais e
mais notícias sobre o assunto, comecei a fartar-me, e sobretudo encontrei dos aspectos detestáveis no Portugal dos estranhos dias de hoje.
Antes de mais, os factos: um jovem enfermeiro de 22 anos, não tendo encontrado colocação em Portugal, partiu para o Reino Unido, mais precisamente Northampton, com mais 24 portugueses, onde vai ganhar 2000 euros mensais, com condições de progressão na carreira. Antes da partida, largamente coberta pelas TVs (previamente avisadas, com certeza), enviou uma carta de despedida a Cavaco Silva, dizendo-se "expulso do seu próprio país", pedindo-lhe para "odiar este país" e "chorar, por não poder sentir o cheiro da comida (...)e dos campos da aldeia", e por fim suplicando " para que não crie um imposto sobre as lágrimas e a saudade".
Para além do estilo lamechas com laivos de provincianismo (é portuense e fala "da sua aldeia"?) e da inutilidade do pedido, como se o PR tivesse quaisquer competências em matéria fiscal, revolta-me a imensa acomodação de alguns pós-universitários, que acham que a profissão lhes deve cair aos pés mal transponham a soleira da faculdade. Sim, isso acontece nalguns casos, sobretudo com os melhores alunos dos respectivos cursos, mas é cada vez menos regra. O que se passa aqui é o costumeira ideia de que por se tirar um curso superior, surge por artes mágicas um direito a ganhar-se de imediato um emprego, de preferência dado pelo Estado, ainda que não seja necessário. Caso contrário, "estão a ser expulsos do país". Note-se que o autor da missiva tem 22 anos, não andou provavelmente meses ou anos à procura de emprego e a aturar ofícios precários. Com essa idade já tem contrato de trabalho e um ordenado que a esmagadora maioria das pessoas com a sua idade não tem (com o desconto de o custo de vida nas ilhas britânicas ser maior). Talvez preferisse permanecer em Portugal. É compreensível e está no seu absoluto direito,e partir muitas vezes é duro. Mas fazer um drama porque vai para o Reino Unido com contrato de trabalho, na era do skype, das redes sociais e das viagens low-cost, que levam um pessoa do Porto a Londres por poucos euros?
O outro aspecto absolutamente deplorável é a cobertura maciça da comunicação social a esta não notícia, sobre "a carta que emociona o país". Isto vindo de orgãos ligados ao estado e aos principais jornais, não aos Correios da Manhã desta vida. Não é jornalismo, é cronicazinha de costumes com pretensas historietas de faca e alguidar (que nem são). Nem emocionou "o país" nem espelha o menor drama, talvez apenas o exemplo da actual emigração inter União Europeia. E só. Está ao nível das revistas de novelas que querem é criar a lagrimazinha fácil e vender o mais possível. Bem sei que a imprensa atravessa maus momentos, mas tudo tem critérios.
O caso e o seu acompanhamento ainda é mais revoltante num país que tanto viveu da emigração, que viu dezenas de milhares de portugueses partirem nos anos sessenta das suas aldeias para ir viver nos bidonvilles de Paris, em Genebra, em Estugarda, no Luxemburgo, sem saber o que os esperaria, que trabalharam nas obras e conseguiram subir na vida e dar aos filhos aquilo que nunca tinham recebido. Para não falar dos milhares e milhares que há cem anos cruzavam o Atlântico rumo a um desconhecido chamado Brasil ou América, de onde poucos voltaram, e dos quais quase nenhum reviu a família, não só de Portugal, mas de Espanha, de Itália, da Irlanda...Eu próprio tive um bisavô que partiu, e que teve a sorte de voltar. Tive em tempos a oportunidade de visitar o museu da emigração de Ellis Island, em Nova York, porta de entrada de milhões de emigrantes de todos os pontos do globo na América. No meio da vastidão de memórias e de objectos, encontrei também traços dos portugueses que ali chegaram. Pessoas do continente, da Madeira, e sobretudo dos Açores, a maioria com a roupa do corpo e uma pequena trouxa, e por vezes uma imagem religiosa da sua devoção, como o Senhor Santo Cristo, que lhes daria forças para enfrentar a nova terra e a vida futura. E emocionei-me com essas imagens de tantos anónimos lusos acabados de chegar ao Novo Mundo, vindos do mar, sem saber o que os esperaria.
Qualquer comparação destas pessoas, que nunca enviaram carta alguma ao soberano, até porque nem deviam saber ler, e que partiram rumo ao desconhecido, e este enfermeiro que em duas horas chegou ao seu destino e que poderá comunicar todos os dias por telemóvel com ligeiro acréscimo no roaming, é pura imaginação de uma época em que a tecnologia superou tudo o se havia imaginado e em que se acha que "em pleno século XXI" a Humanidade caminharia para o pleno emprego, direitos satisfeitos ao minuto e em que as crises seriam uma recordação. Não são. Felizmente ainda há alternativas razoáveis, em países próximos e civilizados. Haver quem considere isso uma tragédia e chame a comunicação social para atirar a culpa para "os políticos" é um sinal de que parte deste país pensa que nada mudou ou que nasceu nos anos noventa e que continua a expor-se ao ridículo. Ainda bem que os portugueses que embarcavam nas naus da Índia em busca de um futuro melhor não se lembraram de carpir mágoas ao Rei pelos pregoeiros oficiais.
Ford Madox Brown,
A última vista de Inglaterra