As eleições legislativas servem para eleger os deputados, ouve-se incessantemente em toda a parte. Um equívoco formal. Se assim fosse, o poder executivo não estaria condicionado pelo Parlamento nem os líderes partidários se apresentariam como candidatos a primeiro-ministro.
Se até à revisão constitucional de 1982 podia haver governos de maioria presidencial, como aconteceu em fins dos anos setenta, a partir daí essas hipóteses esvaziaram-se. Caso algum PR tivesse essa veleidade, ela seria imediatamente chumbada no parlamento, tal como o governo que agora tomou posse deverá ser. Apenas Eanes nomeou governos por sua iniciativa. Todos os outros depois dessas experiências saíram directamente de eleições, com excepção do de Santana Lopes, em 2004. Todos os governos minoritários viram passaram o seu programa quando apresentado na AR.
É precisamente a nomeação de Santana de que me recordo quando vejo tantos adeptos da "maioria de esquerda" dizerem que "a maioria parlamentar é o único garante dum governo estável". Será? Quando o presidente Jorge Sampaio tomou a decisão em mãos, tinha toda a legitimidade para dissolver o Parlamento e convocar eleições. Durão Barroso tinha saído abruptamente, com a popularidade em baixa e o pretexto perfeito, e impôs para o seu lugar o então presidente da câmara de Lisboa, que nem eleito deputado tinha sido, ao invés de propor Manuel Ferreira Leite, Ministra de Estado e das Finanças e nº2 daquele governo. A solução mais avisada e que colhia mais apoios era a convocação de eleições, mas Sampaio preferiu chamar o actual responsável pela SCM de Lisboa para formar governo. Uma solução controversa e duvidosa, mas ainda assim legítima. Boa parte da esquerda, acusou-o de traição (à esquerda), Ferro Rodrigues demitiu-se furioso com a decisão, e ouviram-se coisas como "a democracia está em perigo", ou "o 25 de Abril acabou" (desse vulto da liberdade chamado José Saramago), para não falar de tiradas de mau gosto relacionando a morte súbita de Maria de Lurdes Pintassilgo (horas depois) com a decisão presidencial. Porquê? Porque, segundo diziam, aquele governo não tinha sido sufragado pelo povo, ainda que o fosse por uma maioria parlamentar (além da "traição" de Sampaio, aos ideais de esquerda). Precisamente o argumento oposto ao que utilizam hoje. Isso e o de que Cavaco teve um discurso de "líder de uma seita de direita". O discurso do PR revelou-se muito longe de quem pretende ser o chefe de estado de todos os portugueses, é verdade. Mas muitos dos que o criticam hoje queriam que Sampaio tivesse tido idêntica atitude no sentido inverso.
A ideia de que um governo é efectivamente eleito não só resulta de uma convenção tácita mas também da própria CRP, que impede na prática a constituição de governos de iniciativa presidencial e dispõe que eles são formados com base nos resultados eleitorais. Acresce o facto do sistema eleitoral português ser pouco favorável a maiorias absolutas. Como defende a direita agora e defendeu a esquerda há onze anos, o governo resulta das eleições e sobretudo da formação mais votada. É pela ambição desmesurada de poder a todo o custo que se dão estas crispações políticas. Não que elas não sejam necessárias e por vezes desejáveis. Mas escusavam de surgir no meio destes golpes palacianos. Ao menos em momentos como a questão do aborto defendiam-se valores a sério, por maior que fosse a discussão. Aqui, vemos o cinismo da direita, à beira de perder o escasso poder que ganhou nas eleições, embatendo na hipocrisia da esquerda, que já acha que as maiorias parlamentares têm valor absoluto e que se permite que pessoas como Catarina Martins façam declarações como "este governo acabou", como se fosse a ela que lhe competisse dizer isso. Pelo meio, a extraordinária declaração de que "empossar um governo de Passos Coelho é uma perda de tempo", contrastando com o tão apregoado respeito pelo parlamento, como se estivesse tudo definido antes do programa de governo ir a plenário, e demonstrando um total desrespeito pelas instituições, o que só demonstra que a esquerda radical permanece igual a si própria, e que na luta pelo poder, não é melhor do que a direita a que tanto se atira (nalguns casos até é pior, como quando vem a sua "superioridade moral").