O tão anunciado governo da esquerda já aqui está. Em primeiro lugar, e também como primeira crítica, há que dizer que está longe de ser o governo da "maioria de esquerda", de que tanto se falou como o "sonho" próximo e o "cumprimento de Abril". O seu processo de formação, demorado, sinuoso e dependente de acordos ambíguos e alianças duvidosas, enfraquece ainda mais a sua legitimidade política: trata-se de um governo exclusivamente do PS, do partido que ficou em segundo lugar nas eleições, com a anuência (para já) dos partidos mais à esquerda. O objectivo era tão só o de impedir que PSD e CDS voltassem a governar. O "governo de esquerda" é, como se podia imaginar, uma ficção: mais uma vez, o PCP (e o seu apêndice PEV) e o Bloco ficam fora de um governo, por sua vontade, desresponsabilizando-se dos problemas que o novo executivo venha a encontrar ou com os erros que possa vir a cometer. Preferirão sempre o protesto e assumir uma condição moral que manifestamente não têm. Definitivamente não conseguem assumir responsabilidades reais, mas agora já não podem arguir que não tiveram a sua oportunidade.
Mas apesar de tudo, e já que a maioria dos deputados assim o quis, é o governo que temos e com que teremos de viver. Não se sabe por quanto tempo, mas imaginar que um futuro presidente vá a correr dissolver o Parlamento se não houver razões plausíveis para isso só cabe na cabeça dos mais atarantados. Mas com os frágeis suportes que o sustentam, não é improvável que a legislatura não dure quatro anos.
Analisemos a sua composição. Passando António Costa, que finalmente chega ao cargo para o qual se preparou nos últimos anos (com alguns truques à mistura), temos alguns nomes esperados e algumas surpresas (nem todas agradáveis). A primeira delas desagradou-me francamente: Augusto Santos Silva. Estava curioso para saber quem seria o novo inquilino das Necessidades, sabendo de antemão que não seria Seixas da Costa. Desfeita a dúvida, sobram muitas mais. Santos Silva é um político arguto e culto, e não se lhe conhece qualquer historial de casos menos lícitos. Mas o seu perfil conflituoso e quase persecutório e o seu historial pouco amistoso e de progressiva agressividade verbal (sobretudo nos governos Sócrates) fazem dele a pessoa menos indicada para estar à frente da diplomacia portuguesa. Veremos, mas para já não é um bom sinal.
Mário Centeno é o menos inesperado dos nomes. O rosto do programa económico-financeiro do PS era já o ministro-sombra de costa, assim como Caldeira Cabral. Nada de novo, a não ser o magno pormenor do seu programa ter sido desvirtuado com os acordos à esquerda.
Azeredo Lopes é, de todo o elenco governamental, o que melhor conheço, mesmo que seja dos menos mediáticos (embora tenha tido a responsabilidade de regular os media). Conheço-o de há muito das aulas de Direito Internacional Público na UCP do Porto e de vários seminários que organizou. Especialista em DIP, comentador televisivo de assuntos internacionais, colunista do JN, antigo presidente da ERC, era ultimamente, além das funções académicas que exercia, chefe de gabinete de Rui Moreira na câmara do Porto, depois de ter sido porta-voz da sua candidatura, chega agora ao governo, e logo numa pasta com alguma visibilidade. Nem sempre sendo de trato fácil, terá de se socorrer dos seus conhecimentos de política internacional em tempos de choques entre potências, contestação da NATO, terrorismo e secessões (o tema da sua tese de doutoramento). E terá também de gerir os cacos e os conflitos deixados pelo seu antecessor.
Depois, velhos conhecidos de anteriores governos socialistas que voltam aos lugares onde foram mais ou menos felizes, como Vieira da Silva, Capoulas Santos, e, de certa forma, Manuel Heitor e Maria Manuel Leitão Marques. Destaques para a nomeação de uma magistrada, a discreta Francisca Van Dunen (embora o facto de ser a primeira negra num governo português e das suas funções em tempos da prisão de Sócrates lhe dar algum destaque), e de João Soares, que chega finalmente ao cargo de ministro, no caso da cultura, depois de ser falado para a pasta da defesa. Não é de estranhar: ocupa uma vaga governamental para o soarismo e a área não lhe é exactamente estranha - recordar, por exemplo, que era vereador da cultura em tempos da Lisboa Capital da Cultura 94, antes de se tornar presidente do município - além de que se afastam os sempre salivantes "agentes culturais" que se atiravam ao cargo, não dando azo a tantas invejas.
De Matos Fernandes (ambiente) e de Constança Urbano de Sousa (administração interna) apenas posso dizer que ouvi excelentes referências. E para além de Santos Silva, o nome que mais se assemelha a equívoco é o de Tiago Brandão Rodrigues: chamar um académico, um investigador científico de 38 anos, que há 15 estava no Reino Unido para a sempre difícil pasta da Educação não lembra ao diabo. Compreendia-se se fosse para a ciência e ensino superior. Para a educação, ficamos a pensar que os restantes candidatos ao cargo seriam péssimos.
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